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Luciane Buriasco

Luciane Buriasco - Prender ou soltar?

Magistrada Luciane Buriasco Isquerdo - 26 de fevereiro de 2018 - 08:20

Luciane Buriasco - Prender ou soltar?

O Diretor de filmes Fritz Lang diz que o maior medo do ser humano é o de sofrer violência física, daí seus filmes na mesma linha de Alfred Hitchcock, em que uma pessoa aparentemente normal, como um vizinho, tornar-se de repente um assassino. Muitas de nossas leis, já mencionei nesta coluna, parecem ser fruto desse medo, que de fato nos assombra, mais do que o medo do que possa ocorrer após a morte, como destaca Fritz Lang.

Dentre elas, a dos crimes hediondos, que aumentou penas e restringiu benefícios. A própria Lei Maria da Penha, que já enrijeceu, passando a prever prisão em flagrante e levando os crimes para a Justiça Comum, inclusive com Varas especializadas, numa luta feminista digna de aplauso, embora de duvidosa solução pela via penal. O crime de dirigir alcoolizado também foi se enrijecendo, com prisão em flagrante e um tipo que já não exige bafômetro, para que a falta desse não leve à absolvição. Há quem chame esse movimento de da Lei e da Ordem.

Mas há um outro movimento, mais velado e cujo nome desconheço, que sistematicamente cria situações de soltura na legislação, à revelia do anseio popular. É o caso da última reforma no Código de Processo Penal (Lei n. 12.403/2011), que impediu, entre outros expedientes desta natureza, a prisão provisória de crimes com pena até quatro anos, como o furto, tão odiado pela sociedade. Se preso o ladrão, deve ser imediatamente solto, para que responda o crime em liberdade. No mesmo sentido, a Lei n. 13.257/16, que modificou o art. 318, do Código de Processo Penal, estabeleceu que poderá ser dada prisão domiciliar a mulheres grávidas ou com filhos de até doze anos ou deficientes. Na semana passada, o Supremo Tribunal Federal concedeu habeas corpus determinando essa modalidade de prisão na espécie.

É certo que há toda uma questão humanitária digna de proteção e que norteou o julgamento, mas não seria mais digno que as prisões fossem mais dignas? Ocorre que nem a sociedade, nem os governantes, parecem gostar da ideia de se gastar dinheiro com presídios. Pedem cadeia, mas cadeia custa caro e não consentem em se gastar dinheiro com isso, mormente num país em que falta dinheiro para setores como saúde e educação. A maior parte das mulheres presas o são por tráfico e boa parte delas, não tenho os dados, deve ter filhos com menos de doze anos.

Infelizmente, a solução dada pela lei de 2016, e que se quer se torne a regra, pode ter sido motivada mais pelos custos de encarceramento que pela sensibilidade com a maternidade. O que é certo é que sua aplicação pode criar um verdadeiro mercado de trabalho para essas mulheres no tráfico e garantir um exército de trabalhadoras para grandes traficantes, ocultos patrocinadores de quem faz tais leis, na linha do filme Tropa de Elite 2, que tanto tem me vindo à mente.

Chico Buarque, na música Caravanas, do novo álbum com mesmo nome, fala ironicamente em "gente ordeira e virtuosa que pede pra polícia despachar de volta o populacho pra favela, ou pra Benguela ou pra Guiné", lembrando essa infeliz coincidência, ligada à escravidão, de que nosso negro de regra é pobre. E vive na prisão, fazendo uma relação entre as caravelas que trouxeram os escravos e nossas prisões. Essa gente ordeira e virtuosa diz que "tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria. Filha do medo, a raiva é mãe da covardia". Sugere que o sol embace a razão dessas pessoas, que por fim chama de gente tão insana. Essa raiva de bandido seria, portanto, filha do medo e mãe da covardia, sem contar a incoerência dessa gente que quer a cadeia do outro não ser na verdade tão ordeira e virtuosa assim.

Soma-se a esse dilema do juiz a informação vinda dos estudos de psicanálise de Winnicott de que a delinquência venha não de privações sociais, como somos levados a crer por aqui, de falta de escolas e políticas públicas assistenciais, embora evidentemente seriam bem vindas, mas de privação de afeto, especialmente por parte da mãe na infância, o que explicaria os crimes das classes mais altas, como nossa malfadada corrupção, lavagem de dinheiro, grandes traficantes.

Entre prender e soltar, diante de leis em sentidos opostos, fica a balança do juiz. E aqui evidentemente não me refiro à privação de afeto do juiz corrupto, mas ao dilema do juiz que quer aplicar a lei, quer dar uma resposta à sociedade que tem medo, que aliás também tem medo, embora possa se apiedar das razões que levaram o delinquente a delinquir. Há que se avaliar o crime, como se foi praticado com violência, a pena prevista para ele, se é a primeira prisão ou não daquela pessoa, se o trabalho da polícia foi bem feito e há ali ao menos um início de prova convincente da prática daquele crime. Assim diz a técnica. E, sempre correndo o risco de desagradar, ora a polícia, ora a sociedade, ora o preso e sua família, aplicando leis em sentidos opostos, feitas por razões com as quais nem sempre concorda, como o medo incoerente ou a economia com prisões, decidir seu dilema pela prisão ou soltura, caso a caso. Assim diz a vida.

Luciane Buriasco Isquerdo é Juíza de Direito da 2.a. Vara Cível e Criminal de Cassilândia-MS, apresentadora dos programas de rádio Culturativa (http://www.radiopatriarca.com.br/culturaativa.asp) e Em Família, na Rádio Patriarca. Siga-a no Tweeter: @LucianeBuriasco

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