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Luciane Buriasco

Luciane Buriasco - Diz o que eu quero ouvir: é afinidade ou interesse?

Magistrada Luciane Buriasco Isquerdo - 08 de maio de 2017 - 10:20

Luciane Buriasco - Diz o que eu quero ouvir: é afinidade ou interesse?

Todos os dias temos que estar alerta aos discursos que nos chegam: elogios no trabalho podem advir de algum interesse na manutenção do emprego, promoção, etc.; elogios ou de qualquer forma pessoalizar a relação comercial pode ser interessante para garantir mais vendas - agora há contatos via WhatsApp com o cliente, para ficar com cara de amizade; negócios são facilitados por jantares; na noite, até quem não é, ouve que é linda, especial. A lista é enorme. O interesse move o ser humano que, carente, gosta dessa pessoalização, e vive sendo assediado por pessoas cujo interesse nem sempre é o mesmo que o seu. Pensa que é afinidade, mas é interesse. O mesmo no meio político. O candidato quer agradar e diz o que seu público alvo, de regra a maioria da população, às vezes lideranças dessa população, quer ouvir. Isso se chama demagogia, mas o termo que tem sido usado é populismo.

Populismo iniciou com o sentido de quem tinha por interesse o bem das massas, do povo, daí um certo sentido de esquerda. Quer dizer também relacionamento direto com as massas, sem mediação de instituições ou partidos. Mas tem sido muito falado na mídia com o sentido de discurso político que agrada as massas, mesmo que seja só para atrair seu voto. A eleição de Donald Trump chamou a atenção do mundo para o fenômeno. Como um homem rico, com negócios no mundo todo, e que portanto se beneficia da globalização e de custos mais baixos no exterior, de origem estrangeira, casado com uma estrangeira, de repente se torna defensor da classe trabalhadora, classe média, ameaçada pela perda de emprego para o estrangeiro, prometendo protecionismos e muros com o exterior? Pelo interesse no voto. Só por isso.

E a prática? Embora tenha tentado com seus decretos barrar a entrada de árabes no país - que vieram a ser, os decretos, por sua vez, barrados pela Justiça -, o fato é que o balanço de seus 100 primeiros dias é de que não segue amigo da Rússia, atacou a Síria; não criou problemas com a China, pelo contrário, já recebeu o Presidente em jantar; nem travou guerra nenhuma com as elites, como assinala o jornal The New York Times (1).

O susto causado por ele foi tão grande que a França passou um medo danado de eleger sua versão populista, Marine Le Pen, que significaria, com seu discurso de isolamento, o fim da União Européia, já abalada pela saída do Reino Unido do bloco. Ontem ainda foi anunciada sua derrota, embora tenha tido uma votação histórica e chegado ao segundo turno. Holanda também não votou em sua versão populista. Parece que o mundo aprendeu a lição. Lula e Bolsonaro, nossas versões populistas de esquerda e direita que se cuidem.

No filme Café Society, de Woody Allen, que abriu o Festival de Cannes no ano passado, e assisti anteontem, um jovem casal de Los Angeles diz ter sonhado com a fama dos artistas de Hollywood e as casas de Bervely Hills, mas que preferem restaurantes mais simples, sujinhos, apartamentos próximos à praia ou de poetas para viver, vendo naquele mundo da fama uma superficialidade com a qual não se identificam. Mas na verdade sua afinidade era justamente uma certa disfunção entre discurso e prática. Ela não se tornou atriz, mas se casou com um agente mais velho e influente. Ele não se tornou roteirista, mas gerente de uma casa noturna que recebia a sociedade em Nova York, o Café Society. Ambos prosperaram rodeados por este mundo que diziam abominar. Não viveram juntos, mas nunca se esqueceram.

Nós nos enganamos todos os dias, seja com os discursos dos outros e seus interesses para conosco como com nossos próprios discursos e interesses. O alerta da política, dessa forma, serve tanto para ficarmos espertos com práticas e discursos incoerentes entre si e votar em pessoas por nossa afinidade com o que são e não porque dizem o que queremos ouvir, como em nossos relacionamentos com as pessoas e, pasmem, até conosco mesmo e nossas escolhas profissionais e afetivas, tendo claro para nós quais são nossos gostos, opiniões e o que queremos, para podermos ser o que a psicanálise chama de fiéis aos nossos desejos, chave para a felicidade.

(1) https://www.nytimes.com/2017/04/29/us/politics/trump-presidency-100-days.html?smprod=nytcore-iphone&smid=nytcore-iphone-share

Luciane Buriasco Isquerdo é Juíza de Direito em Cassilândia, Mato Grosso do Sul, membro do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, IBCCRIM – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e bacharel em Direito pela UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina.

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