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Luciane Buriasco

Luciane Buriasco - Decisões judiciais são como obras literárias

Magistrada Luciane Buriasco Isquerdo - 14 de agosto de 2017 - 15:46

Luciane Buriasco - Decisões judiciais são como obras literárias

Em capítulo do livro Uma Questão de Princípio, Ronald Dworkin - filósofo do Direito falecido há poucos anos, crítico do positivismo, especialmente de H.L. Hart, a quem veio substituir na Universidade de Oxford, na Inglaterra, sendo considerado pós-positivista – compara o Direito à Literatura, de maneira um tanto quanto sui generis .

Segundo ele, as decisões judiciais, especialmente aquelas difíceis, controversas, para as quais não há uma resposta simples na legislação ou um precedente idêntico a se seguir, a interpretação que é feita, seja da lei aplicável, seja do precedente que se assemelhe, não deixa de ser como interpretar Hamlet, por exemplo, de Shakespeare. Pouco adianta inquirir acerca do que Shakespeare tenha pensado ao criar o personagem (era louco ou fingia-se de) ou, como chamamos no Direito, a intenção do legislador. Seja porque não deixaria de ser uma especulação, seja porque não há como fugir do fato de que interpretar algo não deixa de ser criar algo. Não do nada. Mas há sempre algo de quem interpreta no trabalho que desenvolve.

Achamos normal isso na literatura. Acrescento que também nos filmes, peças de teatro, quadros, ou seja, na arte. Tanto que vamos tendo preferência pelo Diretor, responsável pela trilha sonora, pela montagem do cenário, pintor. Gostamos da maneira como nos representam aquela realidade. Não temos dúvida de que há também valoração, e não somente descrição, em seus trabalhos. Segundo Dworkin, “na literatura foram defendidas muito mais teorias da interpretação que no Direito, inclusive teorias que contestam a distinção categórica entre descrição e valoração que debilitou a teoria jurídica[1]”.

Sua hipótese estética é a de que “a interpretação de uma obra literária tenta mostrar que maneira de ler (ou de falar, dirigir ou representar) o texto revela-o como melhor obra de arte[2]”.

É evidente que há uma distinção, para a qual Dworkin alerta, entre interpretar e modificar uma obra. Ele dá como exemplo os romances de Agatha Christie. Nunca serão um tratado sobre a morte e sim sobre mistério. Não se pode alterar a natureza da obra. Da mesma forma, um(a) juiz(a), ao julgar um caso, interpretando a lei ou um precedente, construirá uma interpretação que não pode romper totalmente com aquilo que interpreta, alterando sua identidade e tirando a solução de sua cabeça e concepções pessoais de justiça.

Comparando com romancistas escrevendo capítulos em cadeia de um só romance, afirma que decidir casos controversos no Direito seja como continuar a história do que foi julgado a respeito, identificando o que se assemelha ao caso atual, os motivos, o ponto crucial das decisões anteriores, momento em que, fazendo sua interpretação no caso, estará dando continuidade à obra de arte da jurisprudência. Isto especialmente no sistema de precedentes, que ora de certa forma adotamos, no Novo Código Civil, mais como um dever de coerência, ou mais ainda como uma obrigação de seguir os tribunais superiores. Mas pode ser pensado também na interpretação à lei.

É certo que o Direito seja um empreendimento político e não artístico e que as consequências dessas interpretações afetarão diretamente a vida das pessoas (embora de forma silenciosa, sem que nos demos conta, a arte também o faça), havendo-se que assegurar justiça nas relações interpessoais.

Mas é extremamente importante o abandono “da esperança de resgatar a objetividade na interpretação[3]”.

Nem na ciência já se sustenta tal objetividade. Ora o cidadão se depara, para dar um exemplo do cotidiano, com a afirmativa científica de que não se deve comer mais que um ou dois ovos por semana; ora com a de que pode comer muitos e recomenda-se que o faça. Ora a margarina é melhor que a manteiga, ora a manteiga melhor que a margarina. Ora o óleo de côco tem ingestão incentivada, ora desaconselhada. Sabe por que isso ocorre? Porque a ciência não passa de estudos feitos por pessoas, com bases em pesquisas que interpretam.

Como seria possível, portanto, no Direito, que juízes diferentes decidam igualmente casos controversos? Como é possível que construam sempre a mesma interpretação? Será que algum filme ou peça de teatro é igual a outra? Se pedirmos a pintores diferentes que pintem determinada coisa, não o farão de forma diferente?

Pode não trazer sensação de segurança o que se afirma. Pode ser como dizer a um romântico como de fato se dá o amor que se transmuda em convívio íntimo humano. Aliás, Dworkin chama de ceticismo esse dizer “a real” do marxismo ou da psicanálise, um pela via da economia, outro pela via do inconsciente. E suas críticas ao positivismo são de certa forma a desconstrução desse discurso bonito de que há uma lei para cada caso concreto e o(o) juiz(a) saberá aplicá-la de forma que todo cidadão possa de antemão saber como agir, sabendo a consequência legal de seus atos. Segundo ele, isto parece funcionar em casos simples, mas na verdade, além de falhar nos casos mais difíceis, desconfia que sequer funcione nos simples.

Gostemos ou não disso, teremos que reconhecer que o máximo que podemos fazer, nós, juízes, é melhorar o nível de nossas obras, sabedores da importância do trabalho que se desenvolve, do impacto na vida de outros seres humanos, fazendo a melhor representação possível no caso concreto da lei ou do precedente. Mostrá-los como a melhor obra de arte que podem ser, como disse Dworkin.

Assim como na arte, uns gostarão mais de uma obra que de outra; ou na ciência, uns seguirão estes ou aqueles estudos que mais lhe pareçam confiáveis. Quanto às decisões, afora os interesses pessoais que sempre são motivo preponderante do agrado ou desagrado das partes e advogados e, infelizmente, podem estar por trás de decisões judiciais, como no caso odioso da corrupção ou por razões conscientes ou inconscientes de identificação pessoal com as partes, haverá quem seguirá ou não aquele raciocínio, linha de pensamento, corrente filosófica. E que sejam cada vez melhores, aprendendo-se com as críticas, estudos, pesquisas e experiências do dia-a-dia, seu e de outros(as) julgadores(as).

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[1]DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. São Paulo: Martins Fontes, pág. 221.
[2]Idem, pág. 222.
[3]Ibidem, pág. 227.


Luciane Buriasco Isquerdo é Juíza de Direito da 2.a. Vara Cível e Criminal de Cassilândia-MS, apresentadora dos programas de rádio Culturativa (http://www.radiopatriarca.com.br/culturaativa.asp) e Em Família, na Rádio Patriarca. Siga-a no Tweeter: @LucianeBuriasco

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