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Inédito - Jânio: Lembranças de família e da escola

(*) Nelson Valente - 27 de abril de 2009 - 08:25

Estas breves e inéditas reminiscências de infância e juventude constituem um dos raros depoimentos do presidente Jânio Quadros sobre sua vida pessoal. Gravadas em 26/09/1989, por Nelson Valente à Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero.



Volto as minhas reminiscências da mocidade. Vejo-me no bonde pequenino e inseguro que me levava ao internato, onde fiz parte do curso secundário.

Meu pai experimentou os três regimes comigo: era aluno comum ou semi-interno e interno. Os dois últimos me causavam pavor. Ficar o dia inteiro enjaulado em imóvel frio, impessoal, de altas paredes, entregues as normas de disciplina rígidas e impessoais também.

De qualquer forma, meio aturdido pela surpresa, ali estava eu, prisioneiro das notas baixas do passado, sobretudo na aritmética, e sofria com a disciplina. Fora colocado entre os alunos menores, submetido por acréscimo à vigilância dos médios e dos maiores. Os últimos que gozavam de algumas regalias sentiam-se predispostos a exercer essa vigilância com tirania. Dentre eles estava um primo que viera do Mato Grosso, meu estado Natal. Era dos piores. Não perdoava nada, muito menos o toco de cigarro retirado das dobras do uniforme para uma chupada na privada na privada mais próxima.

O colégio era enfadonho e triste: a rotina invisível, cronometrada, tornava-se um suplício.

Alegrava-nos a existência de um padre que considerávamos santo, o Mielli, quase cego. Generoso, fraternal, não só perdoava os nossos pecadinhos, como parecia encorajá-los.

Arrastei o ano de 1930 nesse cárcere, onde, para agravar o quadro, tornando-o intolerável, havia um professor chamado Leopoldino que, a menos que reformado nos costumes e práticas, o Florentino deve tê-lo posto em um dos círculos mais temíveis do seu livro imortal. O Leopoldino personificava tudo que havia de mau. Aprendia os cigarros, que fumava depois, revelado com gestos e caricaturas o quanto se deliciava com o ato. Rondava-nos de surpresa para toas os livros e revistas que nos chegavam às mãos, filhos do difícil contrabando. Espancava os recalcitrantes. Homenzarrão atlético, causava-nos horror vê-lo dando bofetadas a alunos, que se cobriam com os braços para escapar aos muros, perante a platéia impotente.

Chegou a minha vez. Surrou-me o quanto queria. Enfurecido. Purpúreo. Não deixei de contar tudo a meu pai, à primeira folga, das raras que tive ao fim de semana, quando era lícito passar o domingo com a família em Curitiba. Meu pobre pai, com ira paternal, foi ao internato tomar contas ao Leopoldino.

Eram ambos, sanguíneos e irascíveis. Não sei o que ocorreu, mas nada menos que um pugilato. Fui convidado, a seguir, a deixar o ginásio.

Corria o fim do ano e o quadro político sombrio previa o desfecho da praxe republicana. Eclodiu, de fato, a revolução que a Aliança Liberal prometia. E com ela, a vinda da família pra São Paulo.



A vela da minha vida bruxuleia. Há dias, este para apagar-se levada pelo coração enfraquecido.

Ciente disso estão os meus amigos, exatamente os que mais prezo. Geralmente conquistados na vida pública, eis que ela os distancia. Encontra-se os supérstites nos chapadões no Mato Grosso ou nas araucárias do Paraná.

É raro nos vermos. De quando em quando eu era surpreendido por uma carta ou simples cartão com que a mão generosa vencia os espaços. Se, com endereço, respondia feliz. Agradava-me revelo nas linhas que me dirigia, sumido o colega nas vastas regiões do sul-mato-grossense ou nas planícies que caracterizavam o Estado nascido também da coragem e ambição paulistas.

Relembro agora minhas primeiras letras no grupo escolar de Curitiba. Depois de ter estado com os Maristas no colégio da Rua Quinze e ter sido aluno interno do ginásio religioso daquela cidade, vi-me arrancado pela revolução de 30, que expulsou a pobre família na direção do altiplano paulista.

Aqui prossegui os estudos no arquidiocesano, após estágio de um ano – castigo, porque terrivelmente levado – no magnífico Colégio Salesiano de Lorena.

Diplomei-me pelos Maristas. A ele devo a minha autodisciplina, meu gosto pelas línguas, sobretudo a portuguesa, e o meu amor aos livros. Esse amor marcou-me como paixão solta, infrene.

Altas horas da madrugada meu pobre pai batia à porta do quarto em que devia estar dormindo para ordenar que apagasse a luz incerta eu lia para escapar a denúncia da réstia sob a porta.

Fui para a faculdade, a seguir. Com grande professores.

Não posso esquecer, porque seria injusto, a figura extraordinária de Mário Mazargão que me impressionou pelo seu rigor na vida pública e privada. Rigor de asceta de uma nobre vida que, diariamente, exigia contas de si próprio. O resto é história conhecida. A rápida, fulminante carreira, regida pela moralidade, na política de São Paulo e do País.

A vaidade que tenho é não se terem perdido as lições que colhi de mestres notáveis, que revejo agora, os olhos nos olhos.

Nesta quadra da vida, quase cego e com a memória falha, dou graças a Deus por ter me conduzido a uma esposa virtuosa. Era um encantamento de mulher e deu-me uma filha da qual me envaideço.

Esta atravessou dificuldades sérias, mas venceu-me. Hoje é deputada federal, as netas bem casadas. A família feliz.

Não é muito o que tenho a contar, nem isso é um arremedo de biografia.

Detesto esse gênero literário que só canta loas a seu autor, quase sempre imerecidas.

Os homens são bons e maus. Raramente santos. Poucas vezes sábios.



Não escrevo por motivos óbvios, nada sobre política, nem pretendo discorrer sobre matéria cediça. Literatura, por exemplo, sociologia ou o pobre e maltratado vernáculo. Não prossigo nas minhas reminiscências, recortadas até com sacrifício pessoal, dada a minha saúde precária.

Falava no artigo anterior de meu internato no Ginásio Paranaense. Vou dar aquele domingo a continuidade possível.

Dentre os fatos maiores ocorridos em 1930, devo destacar, também, o casamento da minha prima Lourdes com Afonsinho Camargo. Este era filho do governador do Estado e, possivelmente, o moço disponível e dos sonhos de cada donzela curitibana. Saudável, bonito, viril, o jovem Camargo ficara famoso por suas tropelias no belo sexo. Era o terror e, ainda, a esperança sussurrada das famílias que tinha uma jovem casadoura. Pois bem. O namoro com a prima, também mato-grossense e de rara beleza, marcou-se pela rapidez fulminante. Em pouco tempo, para desespero das rivais, a Lourdes levava o Afonsinho ao altar.

Ao mesmo tempo os céus da política turvavam-se, ameaçadores. Eclodiu a Revolução, vitoriosa num ápice, sem tiros no Sul ou resistências firmadas.

Desabava o nosso mundo. Meu pai, que fora nomeado médico do Estado, preparou-se para a vinda a São Paulo, à procura de um governo perrepista.

O governador paraense deixou o palácio e alcançando o litoral encetou uma penosa fuga na direção do norte, onde a temível Força Publica assegurava ás autoridades centrais aparente solidez na tranqüilidade.

Lembro-me bem da excitação que marcou nossa viagem. São Paulo é que da café dizia o verso patriótico de canção repetida por todas as bocas, inclusive a das crianças taludas.

De fato, desmoronava-se a estrutura da velha República.

Ocupando o Paraná e detidos os revolucionários em Itararé, com Minas subelevada e a figura rebelde Juarez no Nordeste, era tudo uma questão de tempo. O tempo necessário para que a guarnição do Rio de Janeiro constituísse a chamada junta militar com o dever procípuo de depor a Hidra do Catete – assim era chamado o honrado presidente Washington Luiz. Esse episódio, inglório antecedeu de pouco tempo a nossa chegada à Paulicéia.

Com energia singular, meu pai conseguira trazer com a mudança a humilde botica, agora em Santana, bairro que elegeu para a nossa residência, em uma altissonante, embora paupérrima, Farmácia do Povo.

A duras penas e com assombrosa firmeza, conseguia ele instalar-se e instalar-nos na capital. Alugou para residência um sobrado à Rua Voluntários da Pátria.

Desdobrava-se trabalhando. Médico e farmacêutico, infatigável e imaginoso, provia a família composta de minha mãe e uma irmã de nome Dirce, com o mínimo necessário. Nunca nos faltou nada. Excetuando o luxo, tudo o mais tínhamos com abundância.

Eu, porém, era um estorvo, Magricela, olhos tristes, refugiava-me na leitura, errando pela casa, na indolência forçada. Certa noite, ouvi do meu quarto, que era traçado o meu destino. Cedo, à roda das sete horas, coube à minha mãe, uma santa e fadigada mulher, comunicar-me o decidido: Seria internado no Colégio Arquidiocesano, com saída semanal aos domingos. Isso, se bem comportado.

Dava assim um adeus definitivo ao cinema ocasional, aos jogos mais ou menos inocentes, inclusive o futebol, às coleções de selos, à leitura errática, da qual consumia as noites até as primeiras luzes da aurora.

A seguir, o Ginásio, A Faculdade de Direito e a Política.



(*) é jornalista












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