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Repórter News

Maior do que Trem do Pantanal, você já deve ter cantado Geraldo Roca e não sabe

Ângela Kempfer, Campo Grande News - 28 de dezembro de 2015 - 07:29

Geraldo e sua camisa abotoada até o colarinho.
Geraldo e sua camisa abotoada até o colarinho.

Os amigos ouvem, os filhos dos meus amigos ouvem, mas pouca gente liga a baladinha hit dos barzinhos de Campo Grande a Geraldo Roca. “Uma pra Estrada” é dele, um dos clássicos acústicos sul-mato-grossense que fala como Geraldo, um cara por vezes ranzinza e estranhamente doce.

Mas a falta de reconhecimento nas ruas nunca pareceu incomodar aquele gentleman. Ele tinha mesmo certa frustração por não chegar como queria aos ouvidos das pessoas. Enquanto a maioria sempre percebeu suas músicas como uma homenagem à paisagem, a concepção era sobre coisas universais. Carioca, tinha sim um encantamento pela terra escolhida pelos pais, mas não nem por isso desenvolveu trancas do regionalismos.

Leu a Cultura do Narcisismo, de Christopher Lasch, e escreveu O Rio Paraguai. Partiu para Bolívia aos 17 anos e de lá veio com o “Trem do Pantanal”. A música, escrita com o amigo Paulo Simões, virou um hino de Mato Grosso do Sul, sem qualquer esforço. Ele só precisava falar do trauma imposto por um estado repressor, em plena ditadura militar.

Se divertia ao cantar “Japonês tem 3 filhas” . Tinha orgulho de letras como “Mais Louco do que a Média”. Demonstrava todo seu humor ácido em estrofes de “Salvação”.

Não deixou dúvidas sobre sua força musical em Polka outra Vez, onde surge como um menino rebelde cantando “Seu pai, ele me conhece. Eu sei que ele diz por aí que eu nunca fiz nada que preste. Mas ele bem sabe que eu morro de rir do jeito que ele se veste”.

Era lindo ver Geraldo tocar e vibrar como fã dele mesmo.

Mesmo vaidoso com o trabalho, sobre a versão de Mochileira gravada por Almir Sater, não esboçava qualquer ressentimento ao justificar tamanha diferença entre a letra original, escrita por ele como um adeus as clima Woodstock, e a popularizada pelo amigo. “O Almir disse que queria gravar, daí perguntou pro Paulinho e ele foi falando o que lembrava. Saiu daquele jeito”.

“Uma pra Estrada” é a parte pop da carreira, mais uma das canções que rendeu o sucesso sem autoria, muito por responsabilidade do cara que quase não saia de casa para badalar, não tinha envolvimento em ações culturais e nunca foi de tocar em bares.

Certa vez foi consultado, mas não aceitou a possibilidade de ceder “Uma pra Estrada” para Charlie Brown Jr. gravar. Mas no mesmo ano liberou para o Vaticano 69, banda conhecida apenas em Campo Grande. “Os meninos são bons músicos, estão começando”, justificou.

Em uma tarde de sábado, a banda surgiu na casa onde Geraldo morava com a mãe, no Jardim dos Estados, carregando uma fita VHS, com clipe recém gravado. Era "Uma pra Estrada" em cenário de lençóis e algumas namoradas dos integrantes da banda como figuração. Geraldo assistiu, não gostou, mas agradeceu a consideração pela avant premiere, feliz.

Ficava verdadeiramente honrado diante do reconhecimento, como quando ouviu Trem do Pantanal na versão do Bando do Velho Jack, em apresentação no Aracy Balabanian.

Sem paciência com a burrice, curioso ao extremo e perfeccionista na arte, por vezes surgia com avaliações que destoavam de alguém que a primeira vista poderia parecer esnobe.

Um dia, na madrugada de um quarto escuro, surpreendeu a namorada que dançava uma música de Claudinho e Buchecha. “Isso é muito bom”, comentou sobre a dupla que desconhecia até então. Não virava o nariz para novidades, mostrou isso nas batidas eletrônicas do CD Veneno Light.

Geraldo não ligava para nada além de suas convicções, independente de popularidade, unanimidades ou do politicamente correto. Era bicho solto, ironicamente escondido no convívio de poucos.

Ganhava dinheiro com fazendas deixadas pelo pai e pelo tio Lúdio Coelho, por isso tinha o conforto de uma vida sem canções comerciais. Até produziu para ganhar dinheiro, mas desistiu, não tinha essa vocação.

Cansou de trocar exemplares do CD Litoral Central, gravado em 1997, por outros artistas, por exemplo. Deixava os seus discos na loja que ficava no Shopping Marrakech em permuta, e saia de lá com compositores como o francês Debussy.

Geraldo morreu quando sua música mais famosa completa 40 anos. Não cumpriu a promessa de fazer a viagem novamente rumo a Santa Cruz, agora aos 57 anos.

Morreu no Natal, em uma cena trágica que caberia bem em letra soturna escrita por ele mesmo, mas com algum humor e ironia.

Fica muito de Geraldo Roca em cada uma das suas canções, assim como a imagem do homem sempre de jeans e camisa abotoada até o colarinho.

Na despedida, uma de suas frases ganha sentido como nunca na minha vida: “Não se mergulha nunca mais no mesmo rio”.

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