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Luciane Buriasco

Punir ou Tratar: Eis a Questão

Magistrada Luciane Buriasco Isquerdo - 13 de março de 2017 - 09:43

Punir ou Tratar: Eis a Questão

Há uma teoria psicanalítica segundo a qual a delinquência seja fruto de uma severa privação de afeto a que tenha se submetido a criança depois do primeiro ano de vida (nas primeiras semanas ou meses de vida leva à esquizofrenia[1]). O delinquente, portanto, é alguém que não foi amado suficientemente, ou esse amor não foi devidamente expressado, de modo que ele cobra da sociedade o amor que não teve em casa.

A constatação, aliada ao dia a dia de uma vara criminal, com réus quase sempre pobres, com pouca instrução, jovens, filhos de pais muitas vezes desconhecidos e mães que o criaram, mas com sentimentos de rejeição, seja por este abandono do pai, seja pela gravidez ser indesejada, em momento inoportuno, sem um planejamento, somada à uma tendência legislativa ao tratamento, como se deu no caso da Lei de Drogas, ao não mais prever privação de liberdade ao usuário[2], leva o julgador, quantas vezes, a se indagar se todos não deveriam se submeter a tratamento psiquiátrico ou psicológico. Mais ainda, naqueles casos em que o mesmo réu sai e volta a entrar na prisão, quebrando as regras de seu regime de pena mais ameno, ou praticando sempre novos crimes, parecendo não conseguir sair das garras do Direito Penal. Seriam psicopatas? O que fazer com eles?

Mas é o próprio autor da teoria que relacionou privação e delinquência, em obra que consiste de vários textos reunidos sob este título, Privação e Delinquência, D.W. Winnicott, psiquiatra infantil, escrevendo um desses textos, em 1961, quem pontua que “existe um perigo na moderna tendência para o sentimentalismo, sempre que se considera a punição de delinquentes”[3] . É que “a função precípua da lei é expressar a vingança inconsciente da sociedade. É muito possível a qualquer delinquente individual ser perdoado e, no entanto, isso não impede a existência de um reservatório de vingança e também de medo que não podemos nos permitir ignorar; não podemos pensar unicamente em termos de tratamento de cada criminoso, esquecendo que a sociedade foi ferida e também necessita de tratamento”. [...] é “possível que, se os sentimentos de vingança da sociedade fossem plenamente conscientes, a sociedade pudesse admitir o tratamento do delinquente como doente, mas grande parte da vingança é inconsciente, de modo que se deve levar permanentemente em conta a necessidade de se manter a punição em vigor, em certa medida, mesmo quando ela é inútil no tratamen to do delinquente”[4].

Essa necessidade inconsciente de vingança por parte da sociedade pode vir à tona diante de um crime que cause comoção social e esteja sendo acompanhado pela mídia, mas não é na verdade por “nenhum crime em particular, mas pela criminalidade em geral”[5].

Daí se explica o interesse crescente da sociedade por ocorrências policiais, presentes em todos os noticiários, a satisfação a cada prisão mostrada pela mídia, mormente se de pessoas poderosas, com vídeos espalhando-se pela internet e juízes de tais casos transformados em heróis, louvados publicamente.

Vai além esse sentimento de vingança inconsciente coletiva. Diz o autor que “o público precisa saber que os presos não estão sendo mimados”[6]. É assim que o auxílio-reclusão foi alvo de muitas publicações na internet, como se não fora uma espécie de seguro paga pelo contribuinte do INSS, com requisitos difíceis de serem preenchidos pela população carcer&a acute;ria, seja pela previsão de um teto de rendimentos baixo, seja porque a grande maioria da população carcerária sequer é composta por contribuintes do INSS. Pouco importa. As críticas foram tantas que há projeto de lei (PEC 304/13, com previsão de votação para este ano) para se extinguir o benefício e se criar um benefício à vítima do crime – um jeito da classe política, que depende de apoio popular, agradar seus eleitores.

Imagine se nesse quadro agentes políticos destinarão recursos públicos significativos que venham a de fato resolver o problema da superpopulação carcerária, proporcionando uma vida digna ao preso, privada tão somente de liberdade, como prevê a lei. O mesmo se diga da criação de postos de trabalho para que o preso em regime fechado possa trabalhar. A sociedade quer que trabal he, mas como pena, sem investimento de dinheiro para tanto, ou seja, sem sacrifícios de sua parte.

Entre tratar e punir, Cyro Marcos da Silva, um psicanalista contemporâneo que antes foi juiz, afirma categoricamente que o crime não pede cura, pede resposta. “Não cabe ao Direito curar, medicar, obrigar a tratamento, tornar-se terapêutico”. Diz que “não há pior vertigem para afastar o Direito do seu caminho do que quando seus operadores, seja o legislador, seja o aparato judiciário, resolvem querer o bem do processado.”[7]. Nessa linha, em relação ao criminoso, aposta no caráter retributivo da pena, com vistas ao assentimento subjetivo, “única possibilidade da punição encontrar uma significação para o sujeito”[8].

Winnicott nem nisso apostava. “A punição só tem valor quando traz à vida uma figura paterna forte, amada e confiável, para um indivíduo que perdeu exatamente isso. Pode-se afirmar que toda e qualquer outra punição consiste simplesmente numa expressão cega da vingança inconsciente da sociedade”[9].

A serviço de tal vingança, o julgador precisa punir. Claro que o pode fazer zelando pelo devido processo legal, pelas garantias do preso, caso em que pagará o preço, inclusive, de ser odiado pela sociedade toda vez que soltar ou absolver quem tenha tal direito. O mais doloroso, contudo, é punir sabendo que a punição não terá efeito para o criminoso, que provavelmente reincidirá. Mais ainda, o destinatário da punição não é senão alguém que não foi amado suficientemente, de forma severa, pelos pais; um sofrido, alguém que não dá conta de seu lado negativo, como tantos depressivos, apenas em maior grau: um doente para o qual o julgador não tem, nem lhe cabe, dar remédio. Eis a resposta à questão.

[1] Winnicott, Donald W. Privação e Delinquência. Tradução Álvaro Cabral e Revisão Mônica Stahel. 5.ª edição. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. Pág. 155.

[2] Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I - advertência sobre os efeitos das drogas; II - prestação de serviços à comunidade; III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. [...] § 7o O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado.

[3] Idem, pág. 229.

[4] Ibidem, pág. 230.

[5] Ibidem, pág. 231.

[6] Ibidem, pág. 233.

[7] Silva, Cyro Marcos da. Meritíssimo... por que tantos méritos? 1ª edição. Florianópolis: Empório do Direito, 2016. Pág. 82.

[8] Idem, pág. 85.

[9] Winnicott, Donald W. Privação e Delinquência. Tradução Álvaro Cabral e Revisão Mônica Stahel. 5.ª edição. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. Pág. 236.

Luciane Buriasco Isquerdo é Juíza de Direito em Cassilândia, Mato Grosso do Sul, membro do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, IBCCRIM – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e bacharel em Direito pela UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina.

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