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Luciane Buriasco

Luciane Buriasco - Somos mesmo contra a tortura?

Magistrada Luciane Buriasco Isquerdo - 01 de março de 2017 - 15:00

Luciane Buriasco - Somos mesmo contra a tortura?

Donald Trump já havia declarado que não descarta o uso da tortura, referindo-se a suspeitos de terrorismo. Mais recentemente, declarou que a pasta responsável de seu governo, supostamente contra a tortura, é quem decidirá pelo seu uso ou não, dizendo, contudo, discordar, ou seja, é favorável à mesma.

Parecendo que em outro país, um juiz federal autorizou recentemente que psicólogos contratados pela C.I.A. respondam a processo por tortura em ação movida por três ex-detentos, um do Afeganisão, outro da Tanzânia e outro da Líbia. Segundo Droir Ladin, um dos advogados da Associação das Liberdades Civis, que representa os ex-detentos, “este julgado manda um sinal forte de que quem participar de vergonhosa e ilegal tortura por parte do governo não possa contar com a possibilidade de escapar de prestar contas numa Corte de Justiça” [1]

Por aqui, o deputado Jair Bolsonaro, provável candidato à Presidência da República, no momento histórico de declarar o voto de impeachment a Dilma Rousseff, fez homenagem ao militar Carlos Alberto Brilhante Ustra, um ícone da tortura no regime militar brasileiro, sem que isso implicasse em sua morte política, o que demonstra que não somos tão intolerantes assim à tortura, como destacou editorial do Boletim Informativo do IBCCRim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais) de junho de 2016.

Mas já deveríamos ser. Não há tratamento mais indigno que se possa dispensar a um ser humano. Nada desrespeita mais a integridade física e psíquica de alguém. Quantas pessoas não se submeteram a esse tratamento sem ter praticado crime algum, meramente por opinião diversa da dominante, opção política, e, voltando à época da Inquisição, religião que professasse ou mesmo sua família de origem.

No filme As Sombras de Goya, com os excelentes atores Natalie Portman e Javier Badem, que protagonizam justamente dois personagens fictícios na vida do pintor dos primeiros anos do século XIX, Francisco Goya, o Diretor Milos Forman bem demonstra, além das cicatrizes irreversíveis da tortura na vida de uma suspeita de ser judia por não comer carne de porco, uma das musas do pintor, o quanto sob tortura se confessa até o que não se fez, numa boa cena a respeito, onde usando dos mesmos métodos da Inquisição na época, o pai da torturada faz o torturador assinar a confissão de ser um macaco.

Mesmo que o suspeito seja culpado de crime grave e a testemunha de fato tenha informações sobre crime também grave, mesmo que seja o tão assustador terrorismo de hoje, utilizar a tortura é atentar contra a crença da seriedade e legalidade do processo, fazendo com que tanto o culpado não se convença da necessidade de seguir a norma - o único sentido do processo para ele - como a sociedade não se sinta protegida pela ideia de que vive num mundo onde há regras, instituições confiáveis: nosso Estado de Direito (submetido à lei). Eu sei que estamos mais para Estado de Exceção, mas a crença no Estado de Direito ainda é forte e importante, seja para os negócios, seja para os projetos de vida em geral do cidadão comum. Todos querem estabilidade, ordem, direitos.

Não arriscaria, em todo caso, um referendo em parte alguma do mundo sobre o uso de tortura. Não tem sido boa época para consultas populares. Basta lembrar a saída da Inglaterra do Reino Unido e a própria eleição de Trump nos Estados Unidos. Sempre pensaríamos no outro, não em nós ou quem amamos ao responder a uma indagação dessas. Não que seja contra qualquer tipo de consulta popular, como sistema. Não se inventou nada mais legítimo que a democracia ainda. Apenas se vê que, ao menos no momento atual e por razões que desconheço, as leis parecem mais avançadas que as consciências.

A recente fala de Trump e homenagem de Bolsonaro, por exemplo, evidenciam que o tema da tortura não foi ainda superado. Deve ser tratado nas escolas, academias de polícia, falado na imprensa, ser objeto de exposições de instrumentos utilizados, tema de filmes, novelas, peças de teatro, telas de quadros famosos, enfim, há que se consolidar a consciência do primitivismo do método e do respeito ao ser humano pelo simples fato de ser humano, este antigo projeto futuro.

[1] Matéria de 28 de janeiro de 2017 do The New York Times, de Sheri Fink, intitulada “Juiz Permite Ação Judicial Contra Psicólogos em caso de Tortura da C.I.A.”(tradução nossa).

[2] Link do filme: https://www.youtube.com/watch?v=omhJmqKc48E

Luciane Buriasco Isquerdo é Juíza de Direito em Cassilândia, Mato Grosso do Sul, membro do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, IBCCRIM – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e bacharel em Direito pela UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina.

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