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Luciane Buriasco

Luciane Buriasco - A nossa hora

Magistrada Luciane Buriasco Isquerdo - 15 de janeiro de 2018 - 08:20

Luciane Buriasco - A nossa hora

Em A Hora da Estrela, Clarice Lispector constrói um personagem muito longe de ser estrela. Trata-se de uma nordestina, pobre, órfã, cuidada pela tia que também já morreu. É virgem, sem grandes amizades. Teve um único namorado que logo perdeu para a colega de trabalho. Divide um quarto na Rua Acre, no Rio de Janeiro, lugar quente e cheio de ratos gordos, com três balconistas das Lojas Americanas. Ela é datilógrafa, mas escreve mal, estudou pouco. É incompetente. Como se não bastasse, também não cheira bem. O pouco que sabe do mundo vem da Rádio Relógio, que ouve sempre.

Não sabia que sua vida era ruim até que uma cartomante, recomendada pela colega de trabalho que lhe rouba o namorado, adivinha-lhe o passado. Vendo-a assim tão enjeitada, enche-a de sonhos predizendo um futuro em que casaria com um gringo rico que a amaria muito. Ela sai de lá grávida de futuro, mas é apenas atropelada por um carro de luxo. Era a hora da estrela.

A de Clarice Lispector, mal sabia ela, viria logo depois da publicação do livro, um dia antes de completar 57 anos, de câncer. Segundo diz no livro, « a morte é um encontro consigo ». Todos nós, além de alguma vez termos experimentado a carência (beijar a parede), a tristeza, a solidão, estamos se não no momento da morte, na véspera. Clarice pede perdão por nos lembrar disso; ela mesma não se perdoando a clarividência. Em uma carta escrita à amiga Olga Borelli, publicada na Revista Cult de Novembro do ano passado, em matéria extensa sobre a escritora, ela diz: “A passagem da vida para a morte me assusta: é igual como passar do ódio, que tem um objetivo e é limitado, para o amor que é ilimitado”.

Macabéa, a personagem de A Hora da Estrela, fez-me lembrar de Iracema, a personagem da música Iracema Voou, de Chico Buarque, a quem tive o prazer de assistir ao vivo no dia 4 de Janeiro, no Rio de Janeiro. Iracema também é nordestina e foi para os Estados Unidos. Lava chão numa casa de chá. Sua vida é mais interessante que a de Macabéa, afinal, tem saído ao luar com um mímico e ambiciona estudar canto lírico. Mas suas opções são restritas, já que não domina o idioma inglês e vive ilegalmente no país, podendo ser deportada a qualquer momento. Ainda assim, vai ficando por lá; tem saudades do Ceará, mas não muita. Uns dias afoita, liga a cobrar: «Iracema, da América ».

Num tom bem mais revoltado, Maria Rita canta Um Sorriso Nos Lábios, do Álbum Coração a Batucar. Dessa vida de um negro em cada jornal, gente suada apertada no transporte público, ensopadinhos e pagar prestações, enxerga o recurso ao sonho ou à cachaça: « Sonha que passa ou toma cachaça. » Uma vida sem graça, que parece não aceitar, ao denunciá-la.

Mas a receita está na própria descrição de Macabéa, feita em determinado momento por Clarice Lispector: « não sabia enfeitar a realidade ». Aliás o melhor de A Hora da Estrela não é a estória em si, mas o que dela vai falando o próprio autor, na verdade Clarice usando um pseudônimo. Um dos seus dilemas era justamente este: separar vida e literatura. Como não estar na estória? Afinal, diz em carta a Fernando Sabino, amigo escritor, «todo mundo sabe que ‘alguém’ está escrevendo o livro, por que então não admiti-lo? »

Neste ano que se inicia, a prestação vai continuar e talvez você seja tão facilmente substituível como Macabéa, ou o sonho realizado não seja tão bom assim como o de Iracema. Em qualquer caso, melhor que ter uma vida ruim e sonhar com feitos quase impossíveis que nos tornassem num toque de mágica felizes, ou anestesiar a dor na cachaça, cerveja, vinho ou whisky, podemos “enfeitar a realidade”: desde acrescentar um chocolate ao cafezinho de todo dia, numa xícara mais bonita, a fazer mudanças necessárias, estudar, fazer uma língua estrangeira, quem sabe uma terapia, um trabalho mais criativo, enfim. De alguma forma distribuir melhor o prazer nos mais variados setores da nossa vida.

Nem todo mundo sabe, eu sei. Macabéa não sabia. Mas quem quer a vida dela? Ou a de Iracema? Ou esse Sorriso Nos Lábios de Maria Rita? E que não nos demoremos a fazê-lo, já que não sabemos qual será a nossa hora. Macabéa teve esperança quando futuro já não lhe restava.

Luciane Buriasco Isquerdo é Juíza de Direito da 2.a. Vara Cível e Criminal de Cassilândia-MS, apresentadora dos programas de rádio Culturativa (http://www.radiopatriarca.com.br/culturaativa.asp) e Em Família, na Rádio Patriarca. Siga-a no Tweeter: @LucianeBuriasco

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