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Luciane Buriasco

Luciana Buriasco: Você pode doar afeto

Magistrada Luciane Buriasco Isquerdo - 10 de abril de 2017 - 08:40

Luciana Buriasco: Você pode doar afeto

Muitas vezes não temos dinheiro para doar aos necessitados, seja alguma família que lhe contaram que passa por momento difícil, seja uma instituição de caridade. Trabalhar, pagar as contas e os problemas da família já nos consomem. Mas pode ser que você seja professor ou professora, ou exerceu outra atividade a vida toda e agora se aposentou. Aí sobrou tempo, o quarto do filho que já se casou, e você gostaria de preencher esses espaços vazios com caridade. Ou talvez você ainda esteja com os filhos adolescentes, no meio da correria, mas acha que tem espaço para mais um em casa, por tempo determinado. Talvez você ache legal significar alguma coisa na vida de alguém; fazer realmente o bem para alguém que precisa, acima de tudo, de afeto.

Estou falando do perfil de uma Família Acolhedora. Alguém, ou uma família, que pode receber em casa um bebê por algo como 6 ou 8 meses, uma criança por meses ou anos, um ou uma adolescente, ou até dois ou três irmãos. Essa pessoa chega para você com um passado ruim, pais usuários de drogas, com a vida toda atrapalhada, cenários de violência, a ponto da Justiça ter tirado essa pessoa do cuidado dos pais até que se decida se há algum parente próximo que possa assumir esse papel de guardião, ou haja uma melhora dos pais, ou ainda haja chance de adoção. Se não houver essas opções, aos 18 ou 21 sairia da sua responsabilidade esse ou essa pessoa já adulta, trabalhando e pagando suas contas, inclusive as despesas de um quarto ou uma casa para morar.

Como você pode ver, a Família Acolhedora entra no lugar do Lar, ou abrigo, na vida dessa pessoa. Com muitas vantagens: crescer num ambiente familiar e não numa instituição. Por melhor que seja uma instituição - e a nossa é das melhores do Estado, senão do país - não há comparação com uma família de verdade. Na família tudo é mais individualizado. Não são empregados que se alternam em escalas, mas uma figura paterna e materna, que doam afeto ao mesmo tempo que estabelecem limites, dizem não. O bebê ou criança são mais estimulados num ambiente familiar: andam na hora certa, desenvolvem melhor a coordenação motora, enfim. Há aniversários individualizados, com bolo, docinhos e alguma decoração, tios, tias, vovôs, vovós, melhores amigos, fotos para recordar, publicar no Facebook.

É muito importante que se trate de alguém que tenha tido filhos, para saber que não é tão cor-de-rosa como pode parecer. Criança e adolescentes testam o amor da gente, não agem como esperamos, exigem renúncia, cansam a gente. Também tem que ser uma decisão de toda a família. Irmãos biológicos brigam, adotivos também, e alguém estranho dividindo as atenções vai gerar ciúmes e brigas também. Não é tarefa fácil não essa de educar. Você terá o apoio da equipe do Creas para coisas como matrícula na escola, ajuda com o posto de saúde e atividades esportivas, providenciar aula de algum instrumento musical ou mesmo tirar uma dúvida de como agir em determinadas situações. Haverá cursos e encontros. Você conhecerá outras situações de gente do mundo todo.

Na Inglaterra, 74% (dados de 2012) das crianças ou adolescentes acolhidos, ou seja, tirados dos pais até que se decida seu futuro, ficam aos cuidados de uma Família Acolhedora. Na Escócia, 68% (dados de 2006); Irlanda do Norte, quase 80% em 1997. Aqui no Brasil, 5% apenas. É esse quadro que precisamos reverter. O Rio de Janeiro e Paraná, especialmente a cidade de Cascavel, são os lugares com mais Família Acolhedora no país. Perto de nós, em Camapuã, optaram por não ter mais a instituição de acolhimento e algo em torno de cinco famílias ficam à disposição para qualquer acolhimento: 100%, portanto.

Por enquanto o programa por aqui é voluntário, mas se estuda a criação de uma ajuda de custo ao menos, já que bebês, crianças e adolescentes morando conosco implicam em gastos com comida, aumento da conta de luz, roupas e sapatos, brinquedos, enfim. Nas cidades onde isso já funciona, as famílias acolhedoras são de pessoas de renda apertada. Por isso a ajuda de custo é importante. Mas para isso precisamos dos demais poderes: Executivo e Legislativo, por meio de uma lei específica.

No caso de bebês, vale dizer que não pode ser uma adoção às avessas. Não haverá chance de ficarem com esse bebê ao final. A lista da Justiça gira em torno de mil e quinhentos casais aguardando um bebê ou uma criança, de regra até uns cinco anos. São esses casais que receberão o bebê, não a Família Acolhedora, que tem que estar preparada para meses apenas de doação.

Ainda que você não tenha o perfil que descrevi, conhecer a ideia e ajudar a espalhá-la é muito importante. Vale pensar na nossa família também. Gosto da linguagem da Comunicação Não Violenta, toda uma teoria criada por Marshall Rosenberg, em obra com esse título, que trata de nossas necessidades e sentimentos, ensinando-nos a identificá-los e comunicá-los corretamente. No caso de uma família, identificar as necessidades e os sentimentos dos demais é fundamental para a construção desse espaço de solidariedade mútua que deve ser a família. Uma boa comunicação e empenho em atender às necessidades uns dos outros, o que fazemos movidos pelo afeto, são a chave para a não violência nos lares. Aliás, é sempre ele, o afeto, que nos move, que trocamos ao longo da vida, que por vezes nos carece ou careceu, nossa sem dúvida maior necessidade. E, se nunca tínhamos pensado nisso, algo que podemos doar também.

Quer entender um pouco mais sobre isso? Assista ao excelente filme de curta metragem - 13 minutos: https://youtu.be/lOeQUwdAjE0⁠⁠⁠⁠

Luciane Buriasco Isquerdo é Juíza de Direito em Cassilândia, Mato Grosso do Sul, membro do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, IBCCRIM – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e bacharel em Direito pela UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina.

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