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Recorde: um em cada cinco alunos no Brasil é repetente

Marina Domingos/Agência Brasil - 09 de outubro de 2003 - 15:05

De cada cinco alunos que começaram a cursar este ano o ensino fundamental ou médio no Brasil, um deve receber uma má notícia daqui a dois meses, quando terminarem as aulas: ele vai repetir de ano. O dado, do Instituto Nacional de Pesquisa Educacional (INEP), do Ministério da Educação, forma um quadro ainda mais grave em conjunto com o que aponta outra pesquisa, realizada pela Unesco: apenas cinco países da África superam o Brasil em índices de repetência no ensino fundamental, numa comparação entre 107 países.

Problemas como a falta de estrutura nas escolas e também o pouco interesse dos pais em manter os filhos no colégio encaminharam-se para a extinção com o advento de programas de transferência de renda como o Bolsa-Escola e o PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil). Ao longo dos anos, o MEC teve uma política acirrada de investimentos no ensino fundamental e, mesmo assim, os índices de repetência diminuíram menos do que o previsto. Já o ensino médio, considerado o “primo pobre” do sistema, por não ser obrigatório, enfrenta a realidade da escassez de recursos e a inadequação dos currículos de estudantes que atravessam a conturbada fase da adolescência.

Para o professor e pesquisador Rubem Klein, responsável pelas estatísticas do Laboratório Nacional de Computação Científica do Ministério da Ciência e Tecnologia, nenhuma justificativa consegue explicar o que os números traduzem tão bem: a persistência dos altos índices de repetência escolar.

Segundo ele, historicamente, as primeiras séries são pólos de concentração do problema. “Cerca de 50% dos repetentes estão nas primeiras séries do fundamental e médio. A cultura que se criou em relação ao novo, ao que estar por vir, causa um clima de seleção e instinto de alta rigidez por parte dos professores, que, nessas séries, não admitem que o aluno seja apenas bom. Para passar, ele precisa ser ótimo”, diz o professor, que também é consultor da Fundação Cesgranrio.

Os professores, inconscientemente, cobram mais dos alunos nessas séries. Quando o aluno não apresenta o retorno esperado, é incentivado pelo próprio professor a repetir a série, para não passar raspando e fazer melhor a mesma série no ano seguinte. “A dificuldade em exames de avaliação é muita relativa. Depende do professor, do sistema pedagógico, do aluno, de tudo. Notas de zero a dez, absolutas, não mostram realmente o conhecimento que é adquirido pelo aluno”, defende o professor.

Ele lembra que o sistema de ensino brasileiro, e todos os outros derivados do sistema implantado por Portugal desde os tempos dos jesuítas e mais incisivamente no final do século XIX, é altamente seletivo e punitivo. “A filosofia dos professores e das escolas sempre foi excludente. Para se ter uma idéia, existia exame para passar do primário para o ginásio até 1971. Um pensamento de que a escola é para poucos, apenas os que conseguiam passar nos testes”, disse Klein.

Erro de análise

O professor Ruben Klein alerta para um problema. Até o início dos anos 90, o método de pesquisa sobre repetência, utilizado pelo MEC, não considerava o número real de alunos que repetiam as séries. Somente depois de 1991 é que o ministério adotou o método correto. “Antes, era considerado repetente todo aluno que era reprovado ou que não completava o ano, contando como evasão escolar. Mas, as escolas, para evitar baixas taxas de aprovação, não contabilizavam o número de alunos matriculados desde o início e sim na renovação da matrícula, realizada no final do ano. Assim, a conta de reprovados sempre era menor em relação à situação real”, explica ele.

O pesquisador ressalta que esse erro foi detectado e, a partir daí, os dados do Censo Escolar começaram a ser mais condizentes com a realidade. “A busca por melhores taxas de aprovação fez com que muitas escolas que percebiam o mau rendimento do aluno o encorajassem a deixar a sala de aula para retornar no ano seguinte na mesma série”, revela o professor.

O bom desempenho dos alunos era necessário para afirmar o caráter da instituição de ensino. “No Rio de Janeiro, existia o pensamento de que aluno reprovado não entra na instituição X ou Y. Outras escolas utilizavam o slogan: ‘Aqui não há repetentes!’, para se auto-promover. Era muito comum”, conta. Essa postura era compartilhada também com as escolas particulares. Todas queriam estar bem perante a secretaria de educação do estado ou a sociedade.

O professor conta que outro equívoco cometido pelos pesquisadores em educação era atribuir uma alta taxa de evasão escolar à ausência de crianças na escola. “Existe uma política acirrada para manter a criança na escola, com a falsa ilusão de que a evasão é grande no país. Nos anos 80, existiam vagas para quantas crianças existissem, e elas estavam matriculadas. O que acontecia era que as escolas não contavam o aluno que tinha ‘abandonado’ a escola por causa da repetência e entrava como rematriculado no ano seguinte”, alertou Klein.

Com isso, os índices de evasão subiram muito, gerando programas para o governo conter a saída de alunos das escolas. “As famílias sabem que a escola é o mínimo que a criança precisa para melhorar de vida. Programas como o Bolsa-Escola foram feitos para manter as crianças na escola, não para atraí-las até lá”.

Para o professor, além do problema da mentalidade, que já está incorporada ao sistema educacional brasileiro, existe a falta de qualidade nas escolas. “É claro que, se você não aprende nada em um ano, vai continuar não aprendendo nada em dois ou três anos. Mas, se você aprende alguma coisa, pode acrescentar mais conhecimento com mais anos”.

Segundo ele, a formação dos professores ainda é o maior obstáculo para vencer os altos índices de repetência escolar. “O problema não é o ciclo ou a série, mas o modo de ensinar. Formação e qualificação ainda são grandes problemas. Hoje em dia, professores chegam à sala de aula com baixa escolaridade, muito em função da pouca perspectiva da profissão no mercado de trabalho, que é pouco atraente, com baixos salários”.

No Brasil, apenas no início dos anos 80 começaram a existir mudanças no sistema de avaliação da progressão dos estudantes, com a aplicação do sistema de ciclos, inicialmente em São Paulo e Minas Gerais. A primeira e a segunda séries começaram a fazer parte de um ciclo básico de ensino, no intuito de respeitar o tempo de aprendizagem de cada aluno. “Foi um equívoco, porque, quando a criança chegava ao final do ciclo, não estava igualmente apta a passar para a terceira série e acabava repetindo a segunda série do ciclo básico por várias vezes. O que acontecia era que o aluno não era mais considerado repetente, o que gerava um inchamento de alunos na série final do ciclo”, explica o pesquisador.

A idéia dos ciclos ganhou força em São Paulo, quando, em 1992, uma nova organização curricular foi proposta na gestão do pedagogo Paulo Freire, no regimento da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo. Todas as ações da gestão formaram condições preparatórias para a mudança da organização em dois ciclos: Ciclo I, da 1ª à 4ª, e Ciclo II, da 5ª à 8ª série. Neles, a progressão continuada tem lugar, para que a trajetória escolar do aluno não seja interrompida.


Paulo Freire: a repetência é uma expulsão dos alunos

Para a professora Ana Maria Saul, uma das companheiras de Paulo Freire à frente da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, o pedagogo posicionava-se, sempre, contra a repetência escolar e demonstrava indignação com o que ele considerava uma "expulsão dos alunos" da escola.

“As saídas para a repetência sempre estiveram pautadas na construção de uma escola pública popular democrática e de boa qualidade, compromisso que marcou toda a gestão Paulo Freire. Significou atuar simultaneamente e, com grande intensidade, em ações de reorientação curricular e de formação permanente dos educadores, principalmente, por meio da modalidade de grupos de formação. Ali, a reflexão sobre a prática dos professores marcava o ponto de partida para novas ações”, explica a professora.

Segundo ela, todas as melhorias numa escola passam pela criação de melhores condições de trabalho para os professores poderem planejar o seu dia-a-dia, além de equipamento para as escolas (com livros e demais materiais pedagógicos). “Essas ações foram efetivamente desenvolvidas na gestão Paulo Freire e contribuíram, em conjunto, para a sensível redução das taxas de retenção dos alunos”, revela.

Ela ressalta ainda que os ciclos significaram uma moldura para todas essas ações. “Pode-se tirar disso tudo uma grande lição: é fundamental que se compreenda que apenas a organização em ciclos, sem as demais medidas adotadas, não garante a melhoria de qualidade da educação e, em conseqüência, não se garante, com qualidade, o fluxo escolar”, completa.


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