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Um exemplo a ser seguido: os quinze passos do luto

Paula Maciulevicius, Campo Grande News - 23 de setembro de 2013 - 09:52

O grupo se reúne todos os sábados, não impõe religião e só quer, através da caridade, do amor e do compartilhamento de histórias, dar um novo sentido a ausência (Foto Marcos Emínio).
O grupo se reúne todos os sábados, não impõe religião e só quer, através da caridade, do amor e do compartilhamento de histórias, dar um novo sentido a ausência (Foto Marcos Emínio).


Eles compartilham histórias, lágrimas e a dor da saudade. Perderam filhos, maridos, esposas. (Fotos: Marcos Ermínio)
“Hoje ele teria 25”. “Hoje faz 321 dias e eu não consigo falar”. “Foi tão rápido, tão de repente”. “Tive muitas perdas e eu fico pensando, o que ainda vai vir?”. Frases ditas por quem nunca mais vai ter a vida de antes. Gente que compartilha de um cotidiano pautado na ausência, na falta do sorriso, do abraço, da voz e do cheiro de alguém.

Uma sala. Cadeiras em círculo, histórias, desabafos e lembranças. Mentores que vão conduzindo a conversa, estendem a mão, dão um abraço, te entregam um lenço para secar as lágrimas já cansadas de percorrer aquele caminho. Nascem nos olhos e morrem nos lábios de quem conta como está naquele dia, como foi a semana desde o último encontro.

Eles também vivem um dia de cada vez. Na parede, os 15 passos do cartaz são seguidos a cada reunião. Ali eles não são anônimos. Tem rostos que revivem a dor diária de conviver com o luto. Olhos que choram, palavras que lembram exatamente como foi aquele dia, semana, que transformou a vida de quem está sentado.

“Foi de repente, tão rápido. Demorou pra cair a ficha, tem mãe que chora, desespera, eu não chorei, não gritei. Estava anestesiada. Enterrei meu filho no sábado e quis ver no domingo, será que eu enterrei mesmo? A gente acha que só acontece com o vizinho, a gente acha que cuida tão bem dos filhos e eles de repente escapam da gente”.

Maria Inez Basmagi, tem 53 anos. Há seis, deixou de fazer pizza todas as sextas-feiras em casa. O filho, com 19 anos na época, sofreu um acidente de carro e deixou este mundo. Com ele foi uma parte de toda a família. “O vício do Felippe era coca-cola e pizza. Meu marido não come pizza até hoje. Eu fazia toda sexta-feira e a nossa última reunião, foi pizza”.


Foi de repente que Maria Inez perdeu parte de si mesma. O filho hoje teria 25 anos.
Enquanto ela fala, a narrativa toca o coração e enche os olhos de quem ouve. Entre os 15 participantes deste último sábado, pessoas que se fizeram irmãos pela dor são unidos pelo consolo. Cada abraço, palavra ou gesto de carinho, é recebido e dado por quem compartilha do mesmo sentimento, a ausência de quem nunca mais vai voltar.

“Tentamos trabalhar com esse lado. De como conviver com essa dor, essa perda. Vivemos aqui para ser felizes, essas experiências dão uma infelicidade muito grande, mas Deus não nos criou para isso e sim para viver as experiências sem perder o equilíbrio”, orienta o mentor.

Em seguida, quem rege a reunião pede que Maria Inez detalhe como chegou ao grupo de apoio. Não foi diferente de ninguém ali. “Cheguei muito desesperada, cheguei, chegando. Queria uma explicação, uma resposta”, descreve.

A cada dia que nasce, ela alterna a dor e saudade e comenta com o grupo a ligação que muitas mães e pais fazem depois que a tragédia chega sem avisar. Maria Inez tinha esse medo, de quem sabia que ia perder Felippe. “Eu já me preparava para aquilo, mas é uma dor muito intensa. Eu chorava como se não fosse parar”.

O décimo quinto passo trabalhado neste último sábado no Gaepe (Grupo de Apoio Espiritual a Pessoas Enlutadas) foi “onde e como está meu ente querido”, o último item na lista que retoma do início na próxima semana. O grupo segue a doutrina espírita e é acompanhado por uma psicóloga a cada 15 dias.


No calendário, o pai que conta dia após dia a morte do filho. Edson e Isabel perderam o único filho há mais de 321 dias.
O pai que não conseguia falar, tinha na cabeça e no coração apenas os dias que correram depois da morte do filho. “Faz 321 dias e a dor está muito grande. Eu, psicologicamente, não estou bem. Não tenho condições de falar”. Depois que Edson Luiz Neves Biancão, de 65 anos, falou, os olhos de todos se voltaram a ele em forma de carinho. Ao lado, um abraço amigo.

A esposa, Isabel Cristina Correa Neves Biancão, de 46 anos, é quem retoma a vez. “Hoje ele não está bem não. Nós ainda estamos com essa dor do Lawrence, a qual ele não aceita”. O único filho do casal foi assassinado em dezembro do ano passado, na Orla Morena, em Campo Grande.

Nove meses contados dia após dia no calendário. Uma mãe que chora ao mesmo tempo em que diz ter paz. Uma tranquilidade de quem não aceitou o que viveu, mas aprende a conviver com a saudade. “Hoje acho que o Lawrence está bem, num lugar bom, está sendo amparado. Meu coração está hoje em paz, pra mim ele está bem, mas faz muita falta, meu filho único”.

Isabel transmite espiritualidade. Olhos de uma mulher forte, uma mãe que deu tudo de si. “Somos só nós dois e não é fácil não, meu coração está em paz, bem em paz. O que eu pude fazer, eu fiz. Ele veio para ficar pouco tempo e viveu intensamente. As coisas dele ainda estão lá, na sua maioria, mas vai chegar uma hora que eu vou ter que tirar”.

Pela força do depoimento da esposa e uma paz trazida pelo filho, ele pede para falar de novo. Desta vez consegue por pra fora a angústia que lhe tirou o sorriso. “Creio que o Lawrence é um espírito muito desenvolvido, a marga registrada era o sorriso dele. Creio que está bem, em paz no plano superior. Mas a minha revolta, essa dor é muito grande. Pelo que eu escutei, o Lawrence já perdoou essas pessoas, isso, de vez em quando, me acalma um pouco”.


O grupo se reúne todos os sábados, não impõe religião e só quer, através da caridade, do amor e do compartilhamento de histórias, dar um novo sentido a ausência.
Na pausa de quem respira o desabafo, os orientadores fazem o parêntese ao explicar que o primeiro passo para evoluir é o perdão. “Quando você perdoa, vai conseguir entender. A saudade não traz prejuízo, mas a revolta traz. Não confunda perdão com aceitação. O que foi feito com ele, não foi certo e nunca vai ser, mas o perdão é libertação”, consolam.

A fundadora do Gaepe carrega a saudade da filha Luane, que no mês em que completou 11 anos, deixou a vida tão nova por conta de um tumor cerebral. Luciene de Souza Ferreira vive desde 2001, os agostos de lembranças. Junto de uma amiga que perdeu o filho em um acidente de carro, que ela criou o grupo, há seis anos.

Para trabalhar o lado espiritual de pessoas que vivem o dia-a-dia do luto foi um ano de muito estudo. “Criar um grupo não é fácil, você precisa ter passado pela experiência”. No caso de Luciane, a saudade é imensa, mas tudo que se resume a filha está em uma malinha. “Pulseiras, anéis, cadernos de escola e roupas que ela mais gostava. De vez em quando, eu abro, quando a saudade bate, eu choro, converso com ela, fecho e sigo adiante”. Com essa proposta que o Gaepe abre as portas. O grupo é aberto, não impõe religião e só quer, através da caridade, do amor e do compartilhamento de histórias, dar um novo sentido a ausência.

Eles compartilham histórias, lágrimas, dor e o sentimento de que um pouco da vida também se foi. A vida continua. Ela nunca mais será a mesma e aquelas pessoas sentadas em círculo vão sentir falta de alguém pra sempre, mas não se pode enterrar todos os dias. É preciso seguir adiante, é o que ensina o Gaepe.

O grupo se reúne todos os sábados, às 9h30, no piso superior da loja Arquitécnica, na rua Dom Aquino, 431, bairro Amambaí.

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