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Recado do Cheida - Um sábio conselho

*Luis Eduardo Cheida - 05 de janeiro de 2007 - 19:57

“Se os bois, os cavalos e os leões tivessem mãos e pudessem desenhar e esculpir como os homens, os cavalos fariam seus deuses como cavalos e os bois como um boi: cada um deles daria forma ao corpo das suas divindades conforme a imagem da sua própria espécie” (Xenófanes, bem antes de Cristo).

Quis o destino que só o homem soubesse desenhar. Assim, o seu Deus e de toda a criação, tem a sua imagem e semelhança.

O homem é o único, dentre as criaturas, criado à imagem do Criador.

- Protesto! – diria um enraivecido leão. – Onde está a imperial juba deste Deus que também é meu?

- Protesto aceito! – trinariam todos os pássaros, como juízes – Por que braços, em lugar de suaves asas que, além de alçarem nosso Deus às alturas, poderiam ruflar triunfantes, a cada vôo seu sobre a Terra?

- Ou indomáveis nadadeiras – tentariam dizer os mudos peixes – que arremeteriam-no às mais belas e abissais profundezas deste mar que Ele também criou?

- Inexplicável esta ausência de antenas... Elas fariam-no absorver as delícias deste fantástico universo sensitivo, por Ele mesmo planejado – falaria um saltitante (e verde e inconformado) grilo.

- E a voz? Quero o meu Deus com a voz dos meus antepassados. O que há de mais lindo que o zurrar de um asno sob o sol? – zurrou, obviamente, um asno.

- Ou o coaxar de um lindo sapo, ao cair da noite sobre o brejo? – coaxou uma linda sapa.

- Também quero falar! – alguém gritou. Todos calaram. Mas, mesmo sob o manto do silêncio absoluto, ninguém conseguia saber de onde vinha o grito. Uma pulga? Uma bactéria? Um miserável fungo microscópico? Um vírus? Um carrapato estrela atracado aos pêlos do rabo de um macaco?

- Voz sem bicho é bicho sem voz – administrou o boi – E, já que abri a boca, bota mocotó em Deus. Ele concebeu-me assim, assim eu também o concebo.

O tatu (peba, galinha, bola, canastra, tanto faz) que anotava tudo, anotou mais essa. O assunto rendia. E, a conversa continuou:

- Ouçam, vocês que se colocam tão longe de mim: o que me dói, mesmo, se querem saber, é ver nosso Deus apenas com a metade das patas – assopra, entre palpos e pedipalpos, uma aranha caranguejeira.

- Metade das patas? – interrogam todos, a uma distância prudente.

- Oito patas é o ideal para um Deus! Teia alguma jamais foi engenho suficiente para tornar cativo um octópoda*. Vejam os desmembrados insetos: seis frágeis patas. O resultado? Aqui mesmo, em minha teia, tenho uma dúzia deles – argumentou para a platéia, agora em fuga.

- Patas? – silvou uma serpente que ficou contorcendo-se de tanto rir - O bem-sucedido episódio no Jardim do Éden, foi protagonizado por mim em razão de quê? Enroscar-me em qualquer galho, sem o atrapalho das pernas. Deus bom é Deus ápodo*. Sou pela dispensa de acessórios. Assuntos divinos não podem esperar. Rodeio é coisa de político. O negócio é dar o bote, direto no principal.

- Éééé!!! – tremeu uma vozinha imprudente, em incontido êxtase, por detrás de uma touceira. Êxtase mesmo, afinal, não é todo dia que rato fala com cobra. Coisa que só acontece quando é assunto de Deus.

E, dessa forma, correram as horas pelo fundo dos mares, pelo azul do céu, por debaixo da terra, por dentro das matas, naquela acalorada e inventiva roda de buscas a uma nova e divina anatomia.

Entretanto, conforme o tempo passava, uma coisa ia ficando patente: ou cada um fazia o seu, ou todos faziam um só, ou a bicharada ficava sem Deus.

Depois de muita asa colocada e muito mocotó retirado, a decisão irreversível: os bichos todos, fora o bicho homem, resolveram fazer um deus só pra si. O que mais pesou para isso foi a lembrança de antigo conselho, trazido por um velho urubu que, do alto de sua sapiência, observou o penúltimo felino local urrar o seguinte adágio (antes de virar tapete da sala de um colecionador):

Enquanto o leão não tiver o seu historiador, a história será sempre a do caçador.

Vai dizer que estão errados?

Um forte abraço e até sexta que vem.

* Octópoda: animal de oito patas.

* Ápodo: animal sem patas.

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Luiz Eduardo Cheida é médico e deputado estadual eleito no Paraná. Foi Prefeito de Londrina (1992 – 1996), Secretário de Meio Ambiente do Paraná e Membro titular do CONAMA (2003 – 2006

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