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Quando a morte separa, a saudade fica na aliança e nas páginas de um livro

Campo Grande News - 11 de agosto de 2014 - 14:20

Luzia e Mirtes se foram há 9 meses. As duas em novembro de 2013, de repente, sem se despedir dos filhos, netos, do bisneto... Deixando para quem ficou a saudade de toda uma vida junta. Para seu Ângelo, levantar todos os dias da mesma cama que dividiram por 63 anos está em olhar para o símbolo do amor e respeito entre casal: as alianças que carrega na mão esquerda, dele e dela.

Os olhos clarinhos, a pele já enrugada e a estatura baixinha, de 1,49m, transbordam um amor que nunca lhe coube e que hoje não tem com quem mais dividir. Dos 91 anos de vida, 63 foram ao lado de Luzia.

“A primeira vez que eu a vi, em 1945, foi até engraçado. Vinha ela e quatro irmãs, eu era agente de estação e o trem estava com vazamento de gás. Eu estava bravo, tentando arrumar, o condutor falou: você está nervoso? Então nem vê as morenas passando ali. Ela era muito branquinha e eu falei, quê? Essa barata de cascalho?”

“Passou o tempo e eu me mudei, ela já era mocinha e em 1950 nos casamos. Ela falava: e você acabou casando com a barata de cascalho. São passagens de família...”

As lembranças de Ângelo da Silva Onça estão nos 8 filhos, 21 netos, 18 bisnetos e nas duas alianças. Além de estar nas fotos, na memória, no jardim, nas flores do quintal e no coração. “Essas alianças foram nas nossas bodas de ouro. Quando eu soube que era ela? Foi logo em seguida, eu já vi, depois do encontro com ela mocinha, que ela ia ser a minha companheira para o resto da vida, como foi”.

Dona Luzia era católica fervorosa, participante e que em casa tinha o altar onde seguia à risca as orações. Na mesinha da sala, sempre deveriam ficar as rosas para Nossa Senhora. Quando Ângelo saía de relógio, ela logo perguntava, creio que só para ouvir a mesma resposta. “Aonde você vai com esse relógio? Para eu contar as horas e minutos que eu fico longe de você?”. O que ela perguntava era imediatamente respondido pelo marido. Ela só emendava “ah, gracinha” e ria.

Da forma como seu Ângelo conta, parece que estou vendo a cena. Ela branquinha, de olhos claros, um sorriso tranquilo e um pouco mais alta que ele, rindo a cumplicidade de quem sempre soube o amor que vivia.

“Ela? Ela cozinhava bem, era bem rezadeira, me acompanhou em todas as mudanças. Aí então ela faleceu. Dia 15 de novembro de 2013, de AVC”. A história caminhava para o triste desfecho três dias antes. “A gente já estava de roupa para dormir, eu ouvi um barulho. Ela caiu e bateu no armário eu brinquei ‘vai quebrar meus pratos’. Estávamos só eu e ela, liguei para o meu filho, chamei os vizinhos...”

Os três dias foram no hospital, em coma. Sem um beijo, sem perguntar as horas, sem um adeus. Desde novembro do ano passado, a aliança escrita “Ângelo” está ao lado de “Luzia”, no anelar esquerdo de seu Ângelo.

Foi automático. O que era um costume de antigamente, hoje bem menos visto, é uma forma de ter Luzia, ainda que só nas letras, pertinho de Ângelo. “Assim que eles tiraram e me entregaram eu coloquei para guardar. Se é saudade? Um pouco é”.

Nas conversas sem pretensões, Luzia sempre dizia que queria ir primeiro que o marido. “Ela falava, mas é a vontade de Deus. E eu achava que eu ia primeiro, mas Deus quis assim”, ameniza.

Se pudesse ter se despedido, seu Ângelo diz que não sabe ao certo explicar o que diria, seria mais para agradecer. “Eu agradeço muito pelos 63 anos que passamos juntos, porque não é qualquer coisa. Eu fui muito feliz”.

A aliança é o apego à saudade, é a prova de que o casamento entre eles continua mesmo depois da separação que ninguém quis.

A saudade dos 56 anos vividos ao lado de Mirtes vão passar para as páginas de um livro. Aos 80 anos, Gilson Cavalcanti Ricci, resolveu que deixaria a sua história registrada para os filhos, netos e amigos. O livro ainda está nas laudas do Word, no computador, mas já somam 150 páginas. "Está quase na metade", detalha.

Carteiro e funcionário civil do Exército ao longo da vida, Gilson teve histórias em Campo Grande, Água Clara, Campinas e João Pessoa, todas vividas ao lado de Mirtes. "Vivi com ela 56 anos seguidos sempre juntos, tivemos 7 filhos, 9 netos e 1 bisneto. Nos conhecemos quando eu tinha 19 anos, na festa de aniversário de um colega meu, olhamos um para o outro e surgiu um namoro. Virou coisa mais séria e casei em 1958", conta.

"No dia 20 de novembro do ano passado, Mirtes não resistiu e nos deixou. A partir da morte dela eu fiquei muito tempo aborrecido, não esperava que fosse desse jeito". Mirtes já tinha tido um infarto 10 anos antes. Nas palavras de seu Gilson, foi a medicação que diminuiu o ritmo do organismo. A realidade daria um capítulo de novela. Um dos filhos, Nello Ricci, conta com outros detalhes.

Seu Gilson foi submetido a uma cirurgia que até então não apresentava risco, no joelho, que se complicou. Foram dias na Unidade de Terapia Intensiva entre a vida e a morte. Dona Mirtes, portadora de lúpus, desencadeou uma crise devido ao nervoso da situação.

"Ela achava que a gente estava escondendo que ele tinha morrido. Ela foi internada e juntos eles ficaram 24 dias em hospital diferentes. Ele passou 19 dias na UTI, ela 12. Quando ele pode falar, a primeira coisa que fez foi ligar para ela. Ela começou a chorar", explica o filho. A despedida dos dois foi por telefone. Cinco dias depois Mirtes morreu.

"Eu nunca pensei em escrever um livro, mas como ela foi de uma hora para a outra, eu também posso ir, não é diferente. Eu quero fazer um inventário da minha vida e ela é a peça mais importante. Foi com ela que passei momentos felizes e tristes e ela sempre esteve do meu lado".

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