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Primeira transexual a ter sobrenome do marido em certidão vai envelhecer em paz

Paula Maciulevicius, Campo Grande News - 10 de abril de 2015 - 07:37

Paulinha em 2013, quando foi eleita Miss Mato Grosso do Sul Transex. (Foto: Arquivo/João Garrigó)
Paulinha em 2013, quando foi eleita Miss Mato Grosso do Sul Transex. (Foto: Arquivo/João Garrigó)

Depois de décadas morando de aluguel, a alegria de ter conseguido a casa própria põe fim às burocracias dos contratos, aos "nãos" ouvidos por muito tempo e marca o começo de uma vida. A felicidade de Paulinha foi tamanha que contagia até quem não a conhece.

Ela tem 36 anos, é nascida em Corumbá, mas já morou em Campo Grande, Dourados e por último está, há seis anos, em Três Lagoas. É cozinheira e confeiteira. Evangélica, "congrega", como denomina sua participação, na Igreja Tempo de Milagres. Casada, é a primeira transexual a ter o sobrenome do marido na Certidão de Casamento no Estado. O que pode parecer algo conservador, para ela significa conquista.

Paulinha é transexual. Vive uma realidade à parte, onde tudo sempre é bem mais difícil. Talvez por isso ter conseguido comprar a própria casa tenha um valor ainda maior. O imóvel é no bairro Santa Terezinha, na cidade onde mora, Três Lagoas. "Tem área, sala, dois quartos, cozinha, banheiros, um quintal na frente e no fundo também é gramado", enumera. "Foi feita do jeito que eu sonhei", arrebata Paula Edvardes Ribeiro Bruno Francisco.

A casa própria é considerada a realização de um sonho, independentemente da opção sexual ou gênero, identidade... "Sempre é", diz Paulinha. Do contrário, segundo ela, uma travesti ou trans fica, como qualquer outro ser humano, que não teve objetivo à mercê de espaços cedidos pelo poder público. "Velha e sem casa própria. Como eu ficaria velha, morando de aluguel? Ou supostamente poderia ficar num asilo... Sou uma árvore que não dá frutos, não terei filhos, porém faço aconchego em sombras".

A resposta, até poética, sai com naturalidade de quem soube conviver com as limitações impostas pela vida. A muito custo, ela terminou o Ensino Médio. "E outra, eu sou uma pessoa que sofri muito, tive um histórico conturbado, uma infância tenebrosa, não tive a infância que as demais crianças tiveram". Ela fala sem dizer muito. Em resumo, a mãe foi embora de casa, o pai teve problemas de saúde que se agravaram e o deixaram deficiente visual e foi ela quem sustentou a casa.

Talvez por isso tenha conseguido o respeito merecido. "Sou tratada como mulher. O que os meus pais não me deram de orgulho, eu quis dar a eles. Minha família tem orgulho de mim", afirma.

Quando criança, Paulinha sofreu perseguição até mesmo dentro de casa. O que ela conta é que a mãe já percebia os trejeitos desde muito cedo e quando foi embora de casa, a filha já tinha assumido a orientação. "Ela não aceitou, mas depois viu que não tinha o que fazer. Foi muito complicado, porque as pessoas, as trans dos anos 90, era tudo muito mais preconceituoso do que hoje ainda é".


Aos 9 anos ela passou a se vestir como mulher. "Não aceitava vestir roupa de homem, eu vestia escondido. Saía com roupa normal, mas quando chegava na escola, eu trocava. O Juizado de Menor chamou minha família, eles negaram. Diziam que eu saía normal de casa, mas a roupa de menina estava lá dentro". 'Dentro' não só da mochila como da alma de Paula. "Eu sempre quis ser menina, nunca menino e sempre lutei contra isso".

Não pergunto o nome de registro. Por respeito e também porque Paulinha parece ter nascido para ser Paula, que é meu nome também. Do latim, significa 'de baixa estatura, pequena'. Faz jus a mim e ela. A Paulinha de lá tem 1,63m de altura e 70 quilos.

O nome foi escolhido por ela mesmo. Por ser forte. O apelido acabou pegando no diminutivo e Paulinha atribui isso ao carisma. "Acho que é porque sou carismática e meus momentos de ira são bem poucos. Minhas qualidades são maiores que meus defeitos", pontua.

Paulinha sustenta que isso vai meio que na contramão do que acontecia às trans e travestis à sua época. "Nos anos 90, você não simulava um nome, as mais velhas que davam para você e você as chamava de madrinha, de mãe. Isso é quando a família não aceita. Não foi o meu caso. E daí elas passam a ir para as ruas, para a prostituição..."


O sonho da casa própria sempre existiu, mas Paula só focou nele a partir da mudança para Três Lagoas. O desejo era compartilhado com melhorias de vida que viriam com um teto para chamar de seu, mas não era só isso.

"Era ter uma vida tranquila, com saúde, sabendo fazer as próprias escolhas. Deus nos deu o livre arbítrio. A gente sempre sonha em ter um lugar para morar e eu consegui realizar isso aqui".

Economizar dinheiro para isso foi o complicado, mas a burocracia não chega nem perto dos "poréns" colocados durante as tentativas de aluguel. "Porque com dinheiro não tem orientação. O segmento transexual é o que mais sofre preconceito. Eu achava mais burocrático alugar casa. As pessoas não dão credibilidade, não gostam, não querem, acham que transsexual é bagunça e também ninguém gosta de travesti. As pessoas tem receio e assim, uma opinião sem conhecimento é preconceito".

Antes das conquistas que chegaram através das chaves de casa, Paulinha também teve um passado que prefere deixar lá atrás. Ela se resume a dizer que "tem orgulho de ter se ressocializado", mas que o sentimento é ainda maior:
"Tenho orgulho não só da casa própria, de ser militante ativista, representante das travestis, estou fazendo com que Três Lagoas tenha outra visão. Fazendo com que as travestis se sintam ser humanos de verdade, como elas são".

Paula não recebe dinheiro para isso. Faz de voluntariado, em conjunto com outras inúmeras ações de trabalho social com crianças carentes nos conjuntos habitacionais de Três Lagoas. Durante toda a entrevista ela nos convidou para ir à sua cidade, à sua casa. A casa que agora é sua mesmo.

A casa própria foi conquistada em Três Lagoas. (Foto: Arquivo Pessoal)
A casa própria foi conquistada em Três Lagoas. (Foto: Arquivo Pessoal)

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