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Onde bimbalham os sinos

Dante Filho* - 24 de dezembro de 2013 - 08:18

Era véspera de natal. O dia amanhecera nublado. Uma chuvinha fina fustigava a janela do quarto. Por isso, ele aproveitou para ficar um pouco mais na cama, olhando para o teto, pensando em nada, imaginando o que faria nas próximas 24 horas.

Gostava de ficar deitado daquele jeito e preparar um roteiro antecipado das coisas que faria nas próximas horas. Nessa projeção imaginária ele conseguia encontrar um pouco de alívio e satisfação com aquela existência tênue e destituída de emoção.

Era viúvo, os filhos viviam na Europa, não havia parentes por perto, os raros amigos estavam viajando, e, no fim das contas, aquele dia seria como outro qualquer, repleto de solidão, filminhos na TV, telefonemas rotineiros etc e tal.

Depois, após o almoço, daria a costumeira volta ao quarteirão, e, se o tempo permitisse e a vontade fosse despertada pelo apetite das ruas, sairia andando sem rumo, olhando com graça para as pessoas agitadas fazendo compras de última hora.

Imaginou essa caminhada com prazer. Ver a correria nas lojas, pessoas seguindo na direção de compromissos familiares, todos ávidos por encontros, festas, bebidas, gritos e alegria embalados por músicas natalinas, era o que fazia com que se sentisse diferente naquele mundo que dia a dia se tornava mais estranho. Percebia a distância que existia entre ele e o resto da humanidade.

Não que fosse um sentimento de deslocamento, de inadaptação social, mesmo porque tivera no passado participação direta naquele frenesi emotivo. Era na verdade uma desistência, uma decepção com as coisas mundanas, um desprezo pelas pessoas que acreditam que comprando presentinhos podiam salvar a si mesmas.

Só que agora, vivendo isolado, cansado e com raiva, reduzindo tudo àquele pequeno apartamento no centro da cidade, é que sua vida começara a mudar, as coisas pareciam nubladas e todo final de ano tudo parecia sem sentido, como se ele estivesse se aproximando do fim, deixando apenas traços de memória espalhados pelas frinchas do assoalho e que depois seriam varridos pelo tempo.

Imaginava-se andando pelas ruas iluminadas no fim da tarde, com os olhos fixos nos buracos das calçadas, esforçando-se para que uma centelha de esperança pudesse o envolver ao dobrar a próxima esquina. Esperava que um acontecimento surpreendente mudasse totalmente o roteiro de sua vida. Para pior ou melhor, não importava.

Como isso era praticamente impossível de acontecer (o imprevisível também tornou-se uma impossibilidade na sua existência), o aborrecimento era um sinal inequívoco de ele estava entregando os pontos, que tudo lhe parecia insuportável, e que talvez não vivesse o suficiente para os festejos natalinos do próximo ano. Ele não acreditava que pudesse fazer falta a alguém.

Assim, depois de vislumbrar as próximas horas, esperando o bimbalhar dos sinos, o foguetório tradicional, as comemorações na TV, as personagens de sempre falando as mesmas coisas, os famosos obituários de gente famosa, os fatos marcantes do ano, enfim, o cacarejar ruminante de sempre, deu um sorriso sombrio, dobrou-se na cama e mergulhou num cochilo fugaz. Dormiu, sonhou e acordou abruptamente.

Horas depois comeu o de sempre, bebeu o de todos os dias, esperando o tempo passar para, no final, abaixar a cabeça e chorar. Sentia-se inconformado, mas havia somente uma coisa que verdadeiramente o aborrecia: havia perdido a capacidade de rir de si próprio. Olhou pela janela mais uma vez e viu lá embaixo o atropelamento de um sujeito vestido de Papai Noel. Houve correria e sirene de ambulância. Ele assistiu àquela cena com indiferença pétrea. Talvez isso fosse um sinal. Algo diferente poderia vir a acontecer. Nem tudo, afinal, estava perdido.

*jornalista ([email protected])

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