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O recado do Cheida: Quando menos é mais

Luiz Eduardo Cheida - 07 de dezembro de 2007 - 10:04

Orinoco Machado morreu aos 94, apesar de seu médico, em tempos recuados, haver prometido que chegaria aos 80.
Sobrou idade.
De fato, era um mão-aberta.

Morreu de quê, quis saber a tia, aquilatando se comparecia ao velório.
A amargurada prima: - Pra quê saber? Nessa idade não se morre de nada.

Os amigos vieram e foram e ele permanecia morto. Para sempre.
- Um mão-aberta. – resignava-se cada um dos visitantes.

Já na juventude resolvera viver de forma inusitadamente perdulária. Gastar mais do que acumular foi o protesto que encontrou para bradar ao mundo que, na vida, era possível dar mais que receber. Assim, inspirava comedido, mas expirava fartamente.
- A natureza deve receber mais do que dá – filosofava, cianótico.

Era assim com dinheiro emprestado, carro alugado, açúcar para a vizinha, legumes na cozinha...

Viveu como morreu: dando lambujas para a vida. Por isso, plantou mais laranjeiras do que as laranjas que chupou, casou com mais mulheres do que as que amou, comprou mais livros do que leu, deu até o que nem era seu...

Mas, no fim da vida percebeu que, contrariamente ao modo como vivia, as pessoas tiravam mais do que punham. Que o mercado dilapidava mais do que a natureza conseguiria repor. Que os plásticos não se reciclariam a tempo. Que não se deixava que as árvores crescessem tanto. Que a água não chegaria a todos. Que os solos férteis acabariam antes. Constatou:

- A natureza entrou no cheque especial. Estamos no vermelho!

Nessa ocasião foi que soube da China.
Havia lido que, em algumas de suas províncias, a tradição mandava o visitante, antes das despedidas, deixar na latrina, ao menos em parte, o conteúdo de seus intestinos. Dele, a família extraía o biogás com que mantinha a luz acesa e a casa aquecida.

Dessa forma, nascia em Orinoco uma nova atitude altruísta: a mania de guardar as fezes e os gases até que os pudesse depositar, em segurança, em um pequeno biodigestor construído em casa.

E, praticamente chinês, resolveu conhecer seu país de auto-adoção.

Na China, fez como os chineses. Não importava que, na pátria natal, seguisse sendo exceção. Internacionalizado, agora o mundo era o seu país. Dessa forma, colaborou o quanto pôde para tantos quantos foram os biodigestores que cruzaram seu caminho.
E, assim, sempre dando mais que recebendo, depois de meses em solo chinês, programou o retorno. Entretanto, esse regresso não poderia ser uma volta qualquer. Regresso, que combinasse com progresso, deveria ser uma espécie de espiral ascendente. Voltar acima do ponto de partida. Regressar acrescentando algo. Levar seu já exacerbado altruísmo às últimas conseqüências. Por isso, deveria fazer o inusitado. Algo jamais pensado; nunca dantes executado: haveria de ser o primeiro internacionalista a provar, de maneira categoricamente fisiológica, que era possível receber na China e doar no Brasil! Seria algo que, transcendendo costumes e geografia, comprovasse que o planeta era um só. E que, a partir deste pressuposto, caso irmanados, os terráqueos poderiam fazer com que a natureza deixasse o cheque especial e voltasse ao salutar azul contábil.

Assim fez.

Durante os quarenta dias que antecederam o regresso, comeu (comida chinesa) e, por opção, não procurou nenhum biodigestor. Recusou-se a emitir o mais leve borborigmo*. Gases, então, nem pensar.
O abdome, progressivamente amplo e timpânico, não o impressionou. Os miúdos que se acomodassem dentro da barriga. Afinal, a causa alçava-se para muito além da singela e tradicionalista anatomia humana.
Dessa maneira, seguia determinado. Ingeria, acumulava. Era a regra.

No quadragésimo dia, passaporte em punho, rumou para o aeroporto. Na sala de embarque, o atraso de um dia não o abalou. Sua tese haveria de ser comprovada. Mais um dia de viagem, não o incomodou. Desembarcou em solo pátrio trazendo seus quarenta e dois dias de experiência concentrada.
Todavia, idade adiantada e avião atrasado são uma combinação explosiva: da alfândega, foi direto para o hospital. E, dali, para a capela mortuária.

De qualquer forma, a natureza recebeu de volta o que trouxera com esmero.

P.S. Nestes tempos bicudos, em que se buscam novas alternativas energéticas, biodigestores extraem energia das fezes de porcos, de estações de tratamento de esgoto e outras fontes. Reproduzem o que os chineses já faziam com lucidez, embora hoje a China caminhe no sentido inverso.
Há alguns meses, estudantes da Universidade de São Paulo construíram um biodigestor que funciona com seus próprios dejetos. Um exemplo!
Como dizem os ecologistas: small is beautiful (quando menos é mais).
Orinoco Machado não foi em vão.

Um forte abraço e até sexta que vem.

* Borborigmo: ruído que as alças intestinais fazem dentro da barriga.






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Luiz Eduardo Cheida é médico, deputado estadual e presidente da Comissão de Ecologia e Meio Ambiente da Assembléia Legislativa do Paraná. Foi prefeito de Londrina, Secretário de Estado do Meio Ambiente, membro titular do CONAMA (Conselho Nacional do Meio Ambiente) e do Conselho Nacional de Recursos Hídricos.

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