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O recado do Cheida - A geladeira da onça
Esta semana, na estrada que corta o Parque Estadual Mata do Godoy, no norte do Paraná, um carro veloz atropelou e deu fim a uma linda suçuarana, que se atrapalhou por entre as fortes luzes dos faróis, o gutural ronco do motor, o indecifrável chiado dos pneus, e o vigor fatal das ferragens.
Desde há muito não se supunha onça-parda por estas bandas. Mas, pelo menos esta, ainda existia.
Não existe mais.
O motorista seguiu caminho, lamentando o prejuízo com a lataria avariada.
E qual é o prejuízo quando nossas raras matas perde mais um puma?
Este grande carnívoro brasileiro, chamado aqui de suçuarana; logo ali, de onça-parda; mais aquém, de puma; mais além, de leão-baio; acolá, de leãozinho-da-cara-suja; ali adiante de onça-vermelha e, lá longe, de bodeira, além de outros, come porco-do-mato, veado, quati, paca e capivara.
Estes animais alimentam-se de sementes e plantas ainda pequenas (plântulas).
Quem controla a população destes comedores de sementes e plântulas são os carnívoros, como a suçuarana. De modo que, em florestas onde ela existe, os herbívoros não explodem em número. E as plantas tem chances de crescer.
Entretanto, quando a suçuarana morre, por ausência do predador, a população destes animais cresce tanto, e tão sem controle, que o resultado é a devastação.
Quando o grande carnívoro declina, declinam com ele incontáveis vegetais.
Carnívoros são essenciais para que florestas sejam ricas em diversidade.
Floresta sem grandes carnívoros é floresta pobre. Definha e acaba.
Por isso, cada onça morta é um duro golpe em qualquer floresta.
Compadecer-se por cada ser vivo morto, de maneira tão idiota, faz parte da alma gentil dos humanos que ainda sentem. Isso é bom e não pode acabar. Entender que, para o equilíbrio de todos, a diversidade do seres vivos precisa continuar, é dar um passo à frente, indo além da emoção.
Há menos de 50 anos, seu Manoel de Oliveira sacolejava no lombo da mula, por entre as perobas centenárias desta mesma Mata dos Godoy.
Descida íngreme, e a mulinha resfolegava. Tão íngreme que, a passo miúdo, a espertinha punha os cascos de trás, em cima dos cascos da frente. Com precisão geométrica.
Lá, bem dentro da mata, no cotovelo da banguela, próximo a um riacho preguiçoso, o ar gelado começava a se enfiar pelo furo da botina do viajante e subia até a garganta. O corpo respondia de volta, num contragolpe de arrepio, que começava no pomo de Adão e só parava no dedo do furo por onde entrava o vapor.
Era ali, a geladeira da onça.
Local de onça beber água. De todas as cores: pardas, pintadas, melânicas.
Voltar, impossível. Continuar, a única alternativa.
No povoado, corriam histórias sobre a geladeira. Até as mulas tinham ciência das onças cuja profissão era pregar susto nos passantes.
As mulas deviam mesmo saber porque, naquele dia, a mulinha do seu Manoel, ao botar as patas no riacho e levar uma ferroada de marimbondo-cavalo nos fundilhos, imaginando a onça de seus pesadelos fincada nas ancas, desrespeitou a geometria dos passos e, sem treino, sem aviso, e sem consentimento, de um pulo só, varou as águas, levando no peito dois ipês e uma desprevenida aroeira na outra margem.
Sumiu.
Seu Manoel de Oliveira chegou ao destino, a pé, uma noite e dois dias depois.
Zangado, nem cumprimentou a mulinha medrosa, que pastava de rédeas soltas no piquete da fazenda.
E foi direto consertar o furo da botina.
Era assim, naqueles tempos, a pirraça dos pioneiros do norte do Paraná.
Hoje, a geladeira da onça é só uma curva asfaltada, um riacho que ninguém vê, e uma placa: cuidado com os animais.
É preciso muito cuidado, mesmo. Hoje em dia, tem muito animal no volante.
Pena que os bichos não saibam ler.
Enquanto eles não aprendem, vá devagar, um forte abraço e até sexta que vem.
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Luiz Eduardo Cheida é médico e deputado estadual eleito no Paraná. Foi Prefeito de Londrina (1992 1996), Secretário de Meio Ambiente do Paraná e Membro titular do CONAMA (2003 2006).