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O que o homem separou, os deuses voltam a unir

Spensy Pimental/Agência Brasil - 31 de agosto de 2003 - 14:55

Salvador - “Estamos aqui em peregrinação, num reencontro com a parte sul de nossa identidade. Estreitamos laços que estiveram rotos por 300 anos”, diz em espanhol claro o homem corpulento, de roupa sóbria, com uma guia de candomblé trespassada no tronco sobre o ombro direito. O portorriquenho Ysamur Flores-Pena é professor no Centro de Estudos Afro-americanos na Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Também é ialorixá da santeria, nome por que é conhecida a religião dos orixás que se estabeleceu em Cuba e hoje se espalha pelos Estados Unidos e diversos países do Caribe. “Há ainda o vudu, no Haiti e em Nova Orleans, o xangô, em Trinidad, o gaga, em Santo Domingo...”, enumera ele.

Pai Ysamur é um dos conferencistas do seminário “Xangô na África e na Diáspora”, outro evento do Alaiandê Xirê. Mãe Stella e sua equipe conseguiram organizar em vários planos o que se possa chamar de reunião. Trouxeram a Salvador esta semana pais-de-santo de terreiros dos diversos estados brasileiros onde a presença africana se estabeleceu ao longo da sucessão de ciclos econômicos regionais da colônia.

Afinal, eles vieram para trabalhar nas estâncias de gado do Rio Grande do Sul, nas lavouras de café de São Paulo, nas lavras de ouro em Minas Gerais e Goiás, nas plantações de cana de Pernambuco ou Maranhão e para as casas dos europeus em Salvador ou no Rio de Janeiro. Descendentes de todos esses enclaves africanos no Brasil estavam lá. “Aqui nessa Roma Negra acontece o inverso da diáspora. Reúnem-se os povos-de-santo de todo o país e tantos lugares no mundo”, proclamou o ministro Gil em seu discurso na abertura de quarta-feira (27).

Ao longo dos 350 anos em que os negros foram trazidos para cá, também se alternaram os centros de captura e embarque na África. Assim, vieram pessoas tão diversas como um português e um sueco: gente do golfo da Guiné, do Benin, da Nigéria, de Angola, com línguas e culturas muito diversas. Mãe Stella também providenciou convite para todos eles. Estarão lá os alabês, xicarangomas e runtós, como são chamados os tocadores do principal instrumento que anima os rituais afro-brasileiros, o atabaque, nas tradições nagô, angola e jeje, respectivamente. Eles são responsáveis pela parte musical do encontro, que termina neste domingo.

Também passam por lá especialistas da Espanha, França, Alemanha, e personalidades como o escritor e membro da Academia Brasileira de Letras Antonio Olinto, a atriz Chica Xavier, o diretor José Celso Martinez. “Podemos até dizer que o candomblé nem é mais de negro, porque tem tanto branco aqui metido”, brinca a anfitriã Mãe Stella em entrevista à TV local.

Além de globalizado, o candomblé é pop. Entre os ministros de Xangô que já passaram pela casa de Mãe Stella, está gente como o escritor Jorge Amado, o músico Dorival Caymmi, o antropólogo e fotógrafo Pierre Verger e o pintor Carybé. A ialorixá tem centenas de filhos por todo o mundo. “Até japonês”, admira-se uma assessora. “O povo, quaisquer que sejam suas dificuldades para afirmar sua cultura, tem uma capacidade fantástica de fazer alianças e atrair parcerias”, disserta o educador francês Jacques Gaultier, pesquisador da Universidade de Paris, outro dos palestrantes.

Essa habilidade para conseguir aliados no desafio de driblar o preconceito que cerca a cultura afro-brasileira desde o período colonial, Mãe Stella herdou da fundadora do Opô Afonjá, em 1910, Eugênia Anna dos Santos, a Mãe Aninha. “Nos anos 30, ela tomou um vapor para o Rio, a Capital, onde obteve o decreto 1212, de Getúlio Vargas, autorizando a prática de sua religião”, conta, no folheto de apresentação do Alaiandê Xirê, a principal assessora de Mãe Stella, Cléo Martins, uma advogada paulista, loira de olhos claros e voz firme que lançou seu primeiro romance, “Ao Sabor de Oiá”, durante o evento.

A maternidade intercontinental de dona Stella, 78 anos, ex-enfermeira, chefe do Opô Afonjá há 36, angaria benefícios para toda a comunidade. “O pessoal lá em volta respeita por causa do trabalho social do terreiro”, explica Paulo Roberto, o motorista da van contratada pelo evento que nos levou até o hotel. Além da escola, o terreiro mantém hoje uma tecelagem artesanal, a Casa dos Alakás. Ali, cinco moças da comunidade tecem peças cerimoniais - o alaká é um pano enrolado no tronco dos filhos-de-santo - e preservam a tradição do pano-da-costa. Chamam-no assim porque, durante muito tempo, era importado da costa ocidental da África. Poucos artesãos brasileiros detinham as técnicas. O auxílio de outro aliado, o antropólogo Raul Lody, mais o patrocínio de estatais e fundações ligadas ao governo federal, resultou na inauguração da oficina, em 2002.

Hoje, cerca de 70 famílias residem na área do terreiro. A maioria é de pessoas idosas. As crianças da escola vêm mesmo é da vizinhança. “Antes, as crianças nasciam aqui dentro e ficavam até serem apresentadas aos orixás e entregues aos cuidados de Oxum. Hoje, a gente manda as moças para a maternidade, por causa dessas questões de saúde”, conta dona Detinha de Xangô, 75 anos. Há 36 anos, mora ali, quase do lado da casa de seu santo e em frente da escola. Ela diz que os alunos dali ouvem, sim, falar dos orixás - “nós contamos as nossas histórias, elas são sadias” -, mas faz questão de frisar que até os evangélicos da região têm filho estudando ali, porque a religião não é imposta.

"Ao contrário de outras religiões, nunca vamos alegar que somos os únicos. Nunca colonizamos nada. Se vamos conversar e partimos da idéia de que você está correto e eu não, não há o que conversar. Essa é a lição que a África espalha pelo mundo. Minha verdade e a sua são importantes. Falemos delas e respeitemo-nos”, diz o professor e pai Ysamur. Mas, quem encerra mesmo a matéria é Dona Detinha: “Eu cada vez mais me acho parecida com o cágado. Está sempre no cantinho dele, às vezes só com a cabeça para fora. Tenho muita coisa dele mesmo”. E sorri


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