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Médico que chega cedo já ganhou como recompensa de ovo à galinha caipira

Paula Maciulevicius, Campo Grande News - 12 de janeiro de 2016 - 07:04

...."mas é o que eu posso fazer. Dar aos pacientes o meu tempo e vejo pela gratidão deles que geralmente eu faço a diferença". (Foto: Gerson Walber)
...."mas é o que eu posso fazer. Dar aos pacientes o meu tempo e vejo pela gratidão deles que geralmente eu faço a diferença". (Foto: Gerson Walber)

Foram quatro anos de cursinho para que Ricardo saísse da casa dos 1,5 mil e atingisse a 22ª colocação na lista de aprovados em Medicina pela UFMS. Formado em 2013, durante a faculdade o menino ralou. Trabalhou como professor particular até o terceiro ano e depois revezava aulas durante a semana e a função de caixa em festas e casas noturnas às sextas e sábados. Foi pelo WhatsApp dos leitores que a sugestão chegou até o Lado B: de que Ricardo Schley Cunha daria uma boa história.

Aos 30, o médico escolheu trabalhar no posto de saúde do bairro onde nasceu e foi criado, no Nova Bahia, em Campo Grande. E ao ver que um remanejamento havia tirado o funcionário responsável pela triagem e que os pacientes chegavam ao posto, às vezes, das 5h da manhã, para começarem a ser atendidos depois das 7, ele antecipou seu horário e chega às 6h. Como "recompensa" já levou pra casa ovos e até galinha caipira, como presente dos pacientes. O relato aqui no Voz da Experiência é de um médico novo, que teve de suar muito para conseguir o diploma e conserva a vontade de fazer a diferença.

"Foram quatro anos de cursinho, sempre prestei vestibular na Federal. Na minha época não tinha Fies, se tinha, era até de 80% e isso na minha época, já era uma quantia que ficaria difícil.

Minha família teve condição boa até o final do Ensino Fundamental, até a minha 7ª série. Depois fiz o Ensino Médio na escola particular, mas do meu bairro, o Nova Bahia. Se eu queria ser médico? Não. Mas foi uma coisa que me apareceu e eu achava legal a Medicina. Não via só como uma profissão ou um negócio que o cara faz como business, mas via algo a mais, que a Medicina agregava mais para a pessoa.

Não via como um negócio, via algo a mais, que a Medicina agregava mais para a pessoa. (Foto: Gerson Walber)
"Não via como um negócio, via algo a mais, que a Medicina agregava mais para a pessoa". (Foto: Gerson Walber)
Lembro de uma novela, a "Quatro por Quatro", tinha o personagem, pai do Marcelo Faria, que era médico. E ele também fez Medicina, ele contou que fez porque viu o pai dele fazer um salvamento. A Medicina é uma profissão que você pode ter um filho passando mal um dia e você pode salvar ele. Eu achava isso legal e fui fazer.

Mas eu também tinha dentro de mim um desafio. Medicina, o curso mais concorrido. Eu sempre gostei de provar que eu era capaz e falei: vou fazer. Não deu certo e virou um desafio por quatro anos. Sempre prestei vestibular aqui em Campo Grande. Só no meu último ano que foi em Cascavel. Tinha um lado frustrante de não passar. Quando eu comecei a fazer cursinho, eu não tinha muita noção, porque na minha família quem tem graduação é só um primo engenheiro. Meu pai não tem, minha mãe também não.

Eu achava aquilo surreal: de que todos os anos passavam 60 pessoas. Era possível, mas também era improvável. Tracei uma meta de três anos. Meu primeiro cursinho foi o da UFMS, bem baratinho, era R$ 60,00 a mensalidade, fiz uma prova para bolsa e caiu para R$ 45,00. Quando você pagava adiantado, caía para R$ 35,00. Fiz lá por seis meses, foi quando uma engenheira que dava aula de Física e Química, amiga da esposa do meu primo, falou de prova para bolsa no cursinho do Dom Bosco e do Avant Garde. Fiz nos dois lugares. No Dom Bosco caiu tudo, no Avant Garde, dei mais sorte, só caiu biológicas, que era o que eu mais estudava. Consegui bolsa de 30% e meu pai conseguiu comprar as apostilas. Meu avô também ajudava.

No primeiro ano eu tinha ficado em 1,5 mil, depois caí para 300. Me deram bolsa depois nos dois anos seguintes. As minhas apostilas eram as mesmas, eu só apagava ou tampava as respostas que já estavam marcadas. No outro ano, fiquei em 200 e pouco, mas eles acreditavam em mim e me deram mais um ano de bolsa lá. Um veterano meu me vendeu uns livros por fora, muito barato e foi no ano que eu passei, porque além da apostila, usei o material complementar.

Nessa época eu já trabalhava de caixa em festa e tirava uma graninha na bilheteria, aos finais de semana. Durante a semana, eu saía nos lugares entregando flyer das festas, fazendo divulgação. No dia da aprovação, uma amiga me ligou, o site estava congestionado e eu não tinha conseguido olhar. Ela falou: você passou. Eu não acreditei. A primeira coisa que eu fiz foi ir lá no Avant Garde, agradecer o pessoal. Se não fosse eles, eu não teria uma graduação. Eles acreditaram em mim.

Médico entra mais cedo para atender pacientes que madrugam em busca de atendimento. (Foto: Gerson Walber)
Médico entra mais cedo para atender pacientes que "madrugam" em busca de atendimento. (Foto: Gerson Walber)
Na faculdade o material era basicamente jaleco, estetoscópio e esfigmo que baratinho você consegue comprar. A mãe de um amigo me deu um estetos. Na faculdade, meu avô me dava a gasolina e meu primo, no quinto ano, trocou de moto e eu pedi para ele deixar a Bis comigo, para aliviar para o meu avô. E depois que eu formasse, ele vendia e eu ajudava ele em alguma coisa, por gratidão.

Durante a faculdade, do primeiro ao terceiro ano eu dava aula, um amigo meu que me arranjou alunos. Como estava tudo fresco na minha cabeça, eu comecei dando Física, Química e Biologia. Dava aula na mesa de casa, meus pais trabalhavam até tarde da noite. Depois no segundo ano, professores me chamaram e eu fui dar aula em cursinho.

No quinto ano, quando abriu o Hangar, eu ficava no caixa de lá, pedia para colocar meus plantões de dia e trabalhava no final de semana, até que no sexto ano, estava muito puxado e eu queria concluir a graduação com mais qualidade.

Quando me formei, senti uma satisfação muito grande. São vários sentimentos, passar é por um desafio e formar é ver que você consegue. E ver que seu pai, mãe e avós, está todo mundo alegre, porque aquilo que você se propôs, você conseguiu fazer. Mas também bate uma insegurança, ao começar um outro ciclo.

Quando me formei, entreguei a Bis do meu primo. E agradeço sempre que posso ao meu avô, em conversa. Hoje, trabalhando, estou mais estabilizado e a gente sai para comer fora.

Eu fui servir o Exército, em Bela Vista. Voltei fevereiro do ano passado. Quando abriu edital para contratação para a prefeitura de Campo Grande, me inscrevi e resolvi esperar. Vou completar um ano em feveireiro, agora, no Nova Bahia. Trabalho de segunda a sexta, no período matutino. Às vezes é um paciente que você já conhece, às vezes é um novo.

Quando tiraram a pessoa que fazia a triagem do posto, para colocá-la em outro ponto, eu pensei: já que eu acordo cedo, eu moro aqui e vou chegar aqui mais cedo. Entrava entre 7h e 8h, hoje chego 6h20. O que eu faço primeiro? Eu chego e dou bom dia para quem está no meu caminho. Entro, ligo o computador e já deixo tudo preparado. Abro a porta e começo a chamar por ordem de chegada, porque acho justo atender quem chegou primeiro. Eu mesmo afiro a pressão, mas como às vezes a pessoa já saiu de casa brigada com alguém ou até brigou ali pra ser atendido, isso pode alterar a pressão dela. Aí eu peço para os pacientes fazerem um mapa de pressão arterial: para eles tirarem de manhã e de tarde por cinco dias, anotar e me trazer.

O que mudou no atendimento? Para mim, nada na prática. O que muda é a satisfação do paciente. Ele que chegou aqui 5h da manhã, para o paciente é melhor ser atendido logo. Às vezes, coitado, ele não tem passe, não tem condição e vem caminhando, lá depois do Nova Lima, depois do Estrela D'Alva. Para esse paciente você faz a diferença.

O que eu quero no futuro? Eu espero uma sociedade que seja várias palavras: espero uma sociedade mais justa, onde o próximo seja mais valorizado. O que eu quero para a sociedade é o que eu acho que eu tenho que fazer.

Eu não viso, não vejo a Medicina só como profissão. Claro, ela é meu ganha pão e eu estudei e estudo muito para estar ali. E acho que a minha remuneração tem que ser de acordo com o que eu estudei, mas dinheiro não é felicidade. Ele é para te dar segurança e estabilidade.

Eu, como médico, eu posso ajudar muito na sociedade, na parte da promoção à saúde, de prevenção, de cura. Na questão de saúde básica, há a falta de investimento sim, mas não na saúde em si, na educação. Então, uma conversa que eu tenha a mais, mais humanizada com o paciente, eu posso tentar fazê-lo parar de fumar, por exemplo.

Uma vantagem que eu tenho, por eu ter morado a vida inteira num bairro periférico, que hoje já melhorou, eu não tenho essa barreira que eu já vi dentro da Medicina, como o pessoal já vem de família abastada, tem dificuldade. Eu consigo com mais facilidade atender o paciente sem haver um "degrau" entre nós, porque não tem. E é isso que eu quero fazer e continuar fazendo.

Não me comparo a colegas, vejo a satisfação das pessoas que eu atendo como força motriz. Caridade, as pessoas falam muito disso. Caridade é dar aquilo que te faz falta e talvez, pelos presentes que eu ganho dos sítios, um ovo, uma galinha caipira, isso vai fazer falta para ele.

Para mim, o que me faz falta é o meu tempo. Que é muito corrido, mas é o que eu posso fazer. Dar aos pacientes o meu tempo e vejo pela gratidão deles que geralmente eu faço a diferença".

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