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Língua portuguesa, inculta e bela!: Por Alcides Silva

20 de setembro de 2007 - 13:59

Enfezado e seus acólitos
Está aí um termo que tem significações a dar com pau: “ abespinhadiço, abespinhado, aborrecido, abrasado, abraseado, acalorado, aceso, aflito, afrontado, afuazado, agastado, alterado, amofinado, amolado, amuado, aperreado, apoquentado, aporreado, aporrinhado, arreliado, assanhadiço, assanhado, atormentado, azucrinado, bramoso, colerado, colérico, emburrado, encolerizado, enervado, enfurecido, enfuriado, enraivado, enraivecido, enviperado, escabreado, escamado, espinhado, estramontado, exacerbado, exagitado, exaltado, exasperado, furioso, genioso, indignado, infenso, iracundo, irado, irascível, irritadiço, irritado, mal-humorado, marfado, mortificado, nervoso, piçudo, possesso, raivoso, ranzinza, revoltado, revolto, zangado. Tudo a indicar aparentemente que o termo tem o d.n.a. dos excrementos, com as matérias fecais.
O palavrório acima nada tem a ver com a semelhança fonética do termo que abre este desvalido comentário com o presente do subjuntivo do verbo enfezar (enfezes) ou com o substantivo fezes. Enfezado é o particípio passado do verbo enfezar. Seria derivado do substantivo fezes, fato muito comum na língua que falamos?
Não, embora um etimólogo do século XIX, Francisco Adolfo Coelho, no “Dicionário etimológico manual da língua portuguesa”, publicado em 1880, defendesse aquela derivação: prefixo en+ fez + a desinência ar. Fez (pronúncia fés) é o singular desusado do substantivo fezes. Seguiram-no diversos dicionaristas, inclusive os modernos Laudelino Freire, Michaelis e Aurélio.
O termo, porém, tem uma origem mais nobre: deriva, segundo Houaiss, do verbo latino infenso,as,ávi,átum,áre ‘encarniçar-se contra, ser hostil a’. Na língua latina o adjetivo infensus,a,um designava o estado de uma pessoa irritada, agastada, impaciente, encolerizada. Aliás, fensus era o cidadão irado.
No português seiscentista, enfezamento era o nome que se dava ao raquitismo e enfezado, aquilo que fora imperfeitamente desenvolvido. Enfezar era tolher o desenvolvimento, aniquilar: “o amor próprio enfeza as potências da alma, tornando-as menos aptas para os desejos do amor divino” (Padre Manoel Bernardes).
No português que falamos, enfezado é o aborrecido, o ser que está raivoso, a pessoa que tem gênio irascível; é o zangado, o contrariado, o colérico, o indignado, o irritado. O “Dicionário de Gíria”, de J. B. Serra e Gurgel, exemplifica: “Tô enfezado, tô cagota, vou explodir”.
Faex – Faecis, no sentido próprio, era a borra do vinho ou do azeite, o escorralho, resíduo sólido que se depositou no fundo da vasilha. No sentido figurado, passou a significar o resto, o lodo, a lama, e, por extensão, as matérias fecais.
Borra, no sentido popular, chulo, é a diarréia. Borrar tem várias acepções. Uma delas é evacuar involuntariamente, sujando-se com os próprios excrementos; outra, é ficar apavorado, morrer de medo.
E já que estamos por estes caminhos, a palavra defecar não tem somente o significado que a popularizou nos tempos atuais. Primitivamente, significava purificar. O verbo latino defaeco,as,áre,ávi,átun, tinha o sentido de ‘tornar claro’, ‘refinar’, ‘apurar’, ‘acrisolar’, ‘limpar’: “Defecar as veias do soro corrupto” (Rui Barbosa). Aliás, no Nordeste brasileiro é comum ouvir-se a expressão “Com um crivo defecou o caldo de cana” (crivo = coador, peneira, qualquer objeto destinado a filtrar líquidos). Em química, é depurar, é decantar: “Ele defecou um cálice de vinho” (apud, Michaellis, edição da Melhoramentos, São Paulo, 1998). Na acepção de ‘expelir os excrementos’, a sinonímia é extensa. Dela destaco: cursar, evacuar, obrar, operar, barrear, borrar, descomer, e os brasileiríssimos aliviar-se, despachar, estercar, fazer cocô, fazer necessidade, fazer obra, fazer precisão, passar telegrama, quebrar o corpo.
Em latim, bos,bòvis é ‘boi, vaca’; bostar é ‘estábulo, curral de bovinos’. Daí, o sinônimo popular das fezes. Naquela língua, as matérias fecais tinham o nome de merda,ae.



Alcides Silva

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