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Geral

Língua portuguesa, inculta e bela!

Alcides Silva - 25 de novembro de 2004 - 14:50

Chão de estrelas

Um dos mais belos versos da poética brasileira está em uma canção popular, presença obrigatória em qualquer seresta que se preze: ‘tu pisavas nos astros, distraída’. De Orestes Barbosa, esse verso se ombreia às mais puras expressões do lirismo nacional. Vale reproduzir a estrofe: “A porta do barraco era sem trinco / mas a lua furando o nosso zinco / salpicava de estrelas nosso chão / Tu pisavas nos astros, distraída, / Sem saber que a ventura desta vida / É a cabrocha, o luar, o violão”.
A palavra, como elemento primordial da linguagem, é, ao mesmo tempo, uma representação mental (transmite a compreensão individual do mundo externo) e uma manifestação psíquica (traduz os diferentes estados de alma). No primeiro caso, função representativa da palavra, seu emprego é no sentido denotativo ou referencial, a palavra tem o conteúdo literal que lhe atribuem os dicionários: lua > satélite da Terra, sem luz própria; zinco > folha de metal. Esse é o modo como os dicionários definem essas palavras. No segundo caso, como a palavra expressa e desperta, num “halo de emoção”, novos conceitos ou sentimentos, seu sentido é conotativo.
Denotação é a significação básica e objetiva de uma palavra; conotação são as associações várias e subjetivas que a palavra pode despertar.
Nos versos de “Chão de estrelas” (aliás, perfeita antítese), lua não é um ser inanimado, o satélite, mas o foco luminoso, animado, capaz de ultrapassar os pequenos orifícios da cobertura do casebre e projetar-se no chão, formando minúsculas claridades, à semelhança das estrelas do céu. Aqui a palavra lua não pode ser entendida em seu âmbito meramente gramatical. Haverá de ser compreendida estilisticamente, no contexto de toda a estrofe. A canção, de seu título à palavra derradeira de seu último verso, é toda ela conotativa, metafórica. Seus termos saem do plano real para o imaginário, para o subjetivo, para a comoção.
A base do sentido conotativo é a metaforização. “Metáfora é a figura de palavra em que um termo substitui outro em vista de uma relação de semelhança entre os elementos que esses termos designam. Essa semelhança é resultado da imaginação, da subjetividade de quem cria a metáfora”(Hélio Guimarães e Ana Cecília Lessa: “Figuras de Linguagem”).
Em ‘Tu pisavas nos astros, distraída’ a sensibilidade do poeta irisou em astros, que a cabrocha pisava, distraída, as réstias da luz espremida pelas rachaduras das folhas de zinco. O que importa aqui não é o significante “astros”, o significante “zinco”, mas a idéia da luz coada pelas frinchas do teto.
Gilberto Gil cantou que “o amor da gente é como um grão, uma semente de ilusão” e Caetano Veloso declarou que “a solidão agora é sólida, como uma pedra ao sol”. Tudo metaforicamente, onde vale mais a alma, a emoção estética, a beleza, que a razão, o significante, como a sonoramente poética canção de Orestes Barbosa, interpretada magistralmente pelo imorredouro Sílvio Caldas.
Não posso furtar-me do dever de trazer aqui os belíssimos versos do bem metrificado “Chão de Estrelas”: Minha vida era um palco iluminado / E eu vivia vestido de dourado / Palhaço das perdidas ilusões / Cheio dos guizos falsos da alegria / Andei cantando minha fantasia / Entre as palmas febris dos corações/ Meu barracão no morro do Salgueiro / Tinha o cantar alegre de um viveiro /Foste a sonoridade que acabou /E hoje, quando do Sol a claridade / Forra o meu barracão, sinto saudade/ Da mulher, pomba-rola que voou / Nossas roupas comuns dependuradas/ Na corda qual bandeiras agitadas / Pareciam um estranho festival / Festa dos nossos trapos coloridos / A mostrar que nos morros mal vestidos / É sempre feriado nacional. / A porta do barraco era sem trinco / Mas a lua furando nosso zinco / Salpicava de estrelas nosso chão / Tu pisavas nos astros, distraída / Sem saber que a ventura desta vida / É a cabrocha, o luar e o violão.”



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