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Língua portuguesa, inculta e bela!

Alcides Silva - 09 de maio de 2013 - 17:00

Alcides Silva
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Valadares e a pita

Pita é a folha da piteira de onde se extraem fibras utilizadas na tecelagem e no trançado artesanal. É com as fibras dessas folhas que se fabricam cordas; e a sua seiva tem a fama de ser ótima para cicatrização de feridas (e é garantidamente antisséptica).
Benedito Valadares, interventor em Minas de 1933 a 1945, depois, governador, deputado federal e senador, conhecido por suas frases e seus feitos inusitados, tinha fama de bronco. Só fama; era um gozador. Perdia o amigo, o companheiro, mas não perdia a piada.
Conta-se no folclore político mineiro, que, certa feita, num evento popular, Valadares resolveu homenagear as trançadeiras de tapetes de corda, famosas no Estado. E lascou em seu discurso: “Minas, esta terra feliz onde a pita abunda...”. Aí um assessor advertiu-o: “Governador, ‘a pita abunda’ é cacófato!” Percebendo o ineditismo, imediatamente mudou a fala: “Minas, esta terra feliz onde abunda a pita”...
Noutra vez, lendo um discurso que escreveram para ele, onde estava “Minas é o celeiro do Brasil e quiçá do mundo”, leu “Minas é o celeiro do Brasil e cuíca do mundo”.
Deixando a pita e a cuíca de lado, se o falar causar um som chulo, ou um palavrão, tenha ou não sentido pornográfico, é cacófato. Evite-o.
Uma coisa é a cacofonia, sonoridade desagradável da união de sílabas; outra, os pós-textuais anódinos. O leitor já deve ter visto o numeral e o artigo indefinido ‘uma’ serem escritos com um apóstrofo substituindo o m. Os que assim agem, justificam-se dizendo evitar o cacófato: u’a madeira, u’a macarronada. Em bom português isso não existe; é cacografia, invencionice de falsos puristas, artificialismo de professores desinformados e infundado exagero de gramaticóides de terceira categoria.
Ensina Matoso Câmara Jr: “Não convém exagerar o esforço contra o cacófato a ponto de apelar para vocábulos obsoletos ou artificiais. Tal é, em vez de uma em contato com mão, manga etc., a forma de u’a, em que o apóstrofo pressupõe a supressão do ¬ m -, quando na realidade se trata de uma obsoleta desnasalação da forma arcaica ua (com til no u)” Dicionário de Filologia e Gramática, p.97-98.
O vernáculo registra o artigo indefinido ua, pouco usado e que às vezes funciona como numeral: "Aliás, tenho mesmo ua memória muito fraca" (Mário de Andrade, Os Filhos da Candinha, p. 60). Cacófato é som desagradável, ridículo, obsceno, com sentido equivocado, resultante da junção dos sons de duas ou mais palavras vizinhas. Isso não há em uma mão, uma maçã etc.
Rui Barbosa ensinava que “quando inevitáveis, as piores cacofonias se toleram. Fez-se o ouvido a elas: habituou-se; já não as sente”. E mais à frente, lembrava: “Aí a lei da necessidade obriga as exigências da eufonia à condição fatal de transigir” (Réplica, tomo II, p. 112). E ele nessa mesma Réplica (nº 89), denominou de cacofatomaníacos aqueles que, coléricos e com escrúpulos exagerados, viam, a qualquer encontro de sons, o erro implacável: “Se a idéia de porta, suscitada em por tal, irrita a cacofatomania desses críticos... outras locuções vernáculas têm de ser, com essa, refugadas”. Não há como substituir expressões como chefe da nação, por tal e tantas outras, pelo simples receio do “mau som”. “Alma minha gentil que te partiste” poetou Camões. No sermão da Quarta Dominga da Quaresma disse Padre Vieira: “Que faz o lavrador na terra, cortando-a com o arado, cavando, regando, mondando, semeando? Busca pão. Que faz o soldado na campanha, carregado de ferro, vigiando, pelejando, derramando o sangue? Busca pão”. Eça de Queiroz, em O Crime do Padre Amaro, usou destas expressões para caracterizar o sobrenatural: “o patético drama duma alma mística...” Nem por isso deixaram de ser considerados príncipes dentre as maiores expressões da literatura de língua portuguesa.

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