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Leia uma entrevista de Furtado à ABr em julho de 2003

Spensy Pimentel /ABr - 21 de novembro de 2004 - 07:03

Brasília - O presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou hoje, em Fortaleza, a recriação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste, a Sudene. Originalmente, o órgão surgiu no governo JK em 1959, a partir de um plano do economista Celso Furtado, que se tornou também o primeiro superintendente a coordená-la.

Furtado permaneceu no cargo até 1964, quando foi um dos primeiros cassados pelos militares, três dias depois do golpe de abril. Destituído de seus direitos políticos, ficou 10 anos no exílio.

Hoje, é o economista latino-americano mais lido do mundo. Publicou 30 livros, traduzidos para 15 idiomas e com mais de 2 milhões de exemplares vendidos em todo o planeta. Um movimento internacional cogita sua indicação para o Nobel de Economia.

Furtado nos falou por telefone, de sua residência, no Rio, no início da tarde de sexta-feira. Nesta rápida entrevista de pouco mais de 15 minutos, uma das raras dos últimos tempos, o economista revela que manteve contato com os responsáveis pela nova Sudene e aprova seu trabalho: "Estou satisfeito". E evita maiores detalhes com modéstia: "Não estou mais por dentro do assunto".

Mostra, entretanto, que tem acompanhado com atenção as ações do novo governo. Endossa, por exemplo, a prioridade do presidente Lula para o combate à fome. "Não tenho dúvida nenhuma de me associar a eles", refere-se, sempre na terceira pessoa do plural, ao novo governo.

Agência Brasil: O que foi mais importante na Sudene original? E o que se pode esperar dessa nova Sudene?
Celso Furtado: A Sudene corresponde a um certo momento histórico. A história não se inventa mais de uma vez, só se for como caricatura. Houve um momento em que o Brasil compreendeu que as desigualdades regionais se agravavam e isso era sério para o nosso futuro como povo.
Portanto, por iniciativa de Juscelino Kubitschek, o país se empenhou em lançar uma política nova, que perdurasse. E esse processo foi interrompido pela ditadura militar. Essa política nova significava uma participação autêntica do povo, era a idéia de que o desenvolvimento não era uma coisa artificial, que se faz em gabinete. É preciso ter o entusiasmo de gente, participação real. Só que isso, com os militares, desapareceu. Depois, todas as coisas continuaram dormindo, só restaram uns trabalhos técnicos.
Há uma herança um pouco desigual, que provavelmente o governo vai enfrentar. Diante dessa herança desigual, o que fazer? Eu acho que eles estão fazendo bem, porque estão trabalhando com gente muito competente. Gente que conheceu a experiência primitiva da Sudene. Portanto, eu os congratulo, é o máximo que eu posso fazer.

Agência Brasil: Diante dessa herança que o governo Lula recebe, qual é, na sua opinião, a prioridade que deve ser encarada?
Celso Furtado: A verdade é que a prioridade número 1, o Lula já deu, é o problema da fome. Porque a fome é muito mais complexa do que se imagina geralmente. Trata-se de um atraso muito profundo.
Eles estão certos nesta estratégia: começar vendo o que se chama em economia de "estágios fundamentais" de uma população. É quase como reconstruir uma população. O efeito de tudo isso vem com o tempo, não é do dia para a noite que se vai obter resultado. Deve-se olhar isso com muita calma. Não é pensar em milagre, é pensar em atacar profundamente.
A Sudene fez um trabalho esplêndido, no que diz respeito a investimento em pessoal técnico. O Nordeste hoje não é mais o Nordeste de quando começou a Sudene. O pessoal técnico do setor público e privado hoje em dia é muito mais bem equipado. As universidades do Nordeste são uma coisa admirável em relação ao que havia no passado. Não existiam praticamente, eram rudimentares.
Houve muita coisa importante, é preciso ter em conta isso. Agora, o que vem pela frente é mais complexo, porque é necessário atacar a fome, mas também reorientar profundamente o desenvolvimento do Nordeste. E isso é um trabalho que também toma tempo.
Não estou mais por dentro do assunto, mas estive vendo o trabalho técnico realizado por eles e é admirável o esforço que estão fazendo e a compreensão que têm da realidade.

Agência Brasil: O que faltou ser executado em seu plano original para a Sudene e gostaria de ver retomado agora?
Celso Furtado: No plano original, havíamos nos baseado na ilusão de que havia um governo com muito apoio popular e que isso alimentaria um processo de transformações da estrutura agrária. Por isso, quando nós começamos, a primeira coisa que fizemos na Sudene foi um projeto de lei de reforma agrária disfarçado de uma lei de irrigação. Era preciso aproveitar melhor as terras irrigadas, e nós começamos a reforma agrária por aí. Isso foi levado a sério.
Só que as forças reacionárias bloquearam tudo isso. Não foi possível tocar no problema agrário, que é o mais grave no Nordeste, sem dúvida nenhuma.
Hoje em dia, se há mais recursos para abordar o problema, como eu estou vendo que há muito mais recursos - e mais coragem dos políticos, que já não são mais tão subordinados aos interesses dos latifundiários -, isso é um avanço.

Agência Brasil: Como o senhor avalia o quadro atual da economia, com a globalização, o processo de privatização em diversos setores antes assumidos pelo Estado, as reformas ditas "neoliberais"? Há espaço para a idéia de planejamento público neste mundo?
Celso Furtado: Isso realmente é coisa para a gente rir. Quem conhece a economia sabe que, ela seja pública ou privada, tem planos, está baseada em planejamento. Você pergunta a uma General Motors, uma Volkswagen, essas grandes empresas, se elas não têm planos. Elas têm planos para muitos anos. O planejamento é essencial à atividade social organizada.
Quando se tem uma sociedade com deformações muito sérias, como é o caso do Brasil, essas deformações só são corrigidas por meio de um planejamento que ataque todos os aspectos da sociedade. Não basta uma coisa ou outra, é muito mais complexo, porque são sociedades que hoje em dia sofrem as conseqüências de deformações históricas, como é o caso da estrutura agrária no Nordeste.
Não ha dúvida nenhuma. É preciso ser um ingênuo ou de má-fé, como diria Eça de Queiroz, para imaginar que você pode abordar os problemas complexos do Nordeste sem planejamento. O planejamento significa comprometer a sociedade, os Estados e as instituições com mais poder, com objetivos explicitados, explicados ao povo.
Quando fizemos a Sudene, você não pode imaginar o entusiasmo que houve. Todas as reuniões da Sudene eram públicas. O povo olhava e participava dos debates, os governadores todos participavam. Havia um entusiasmo, um contágio.
Eu me recordo que uma vez houve no Senado um movimento contra a Sudene. A defesa foi feita pelo povo. Eu nunca gastei um tostão em propaganda para a Sudene, como superintendente. E assim se ganhou a briga: foi brigando, lutando, acreditando naquilo.
Mas, uma coisa era certa: ali não cabia nenhuma facilidade, nenhuma manobra subterrânea, não havia nenhuma força por detrás. Tudo era explicitado, transparente, foi isso que deu força à Sudene. Deu um prestígio moral enorme. Você vê que, quando eu saí de lá, a mim não me convidaram para depor diante das comissões de inquérito, para pedir conta de nada. Não havia nada contra mim.

Agência Brasil: A iniciativa deste novo governo para a discussão do plano plurianual (PPA), incluindo a sociedade em todos os Estados, por exemplo, seria uma retomada desse espírito?
Celso Furtado: É uma retomada do melhor espírito de mobilização de opinião pública, de criar uma consciência nacional. Isso é indispensável. É importante que se recupere isso. No Brasil foi se perdendo a fé no governo. Pensa-se que o governo é desonesto em tudo... É um trabalho importante. O governo atual tem a grande responsabilidade de reconstituir esse clima favorável à mobilização social.

Agência Brasil: Gostaria de uma avaliação sua sobre a Alca. O senhor acha que esse acordo pode, de fato, trazer novos mercados para o Brasil?
Celso Furtado: A Alca seria um perigo para o Brasil. Escrevi sobre isso, claramente mostrando que a Alca é uma manobra dos Estados Unidos para retificar e consolidar a sua posição imperial.
Ninguém tem dúvidas sobre isso: a Alca não foi pensada por ninguém fora dos Estados Unidos, só por eles. Eles fizeram um projeto próprio. Porque eles têm hoje em dia um problema sério de balança de pagamentos, eles têm um desequilíbrio profundo na balança de conta corrente e precisam corrigir isso. Eles querem, portanto, que o mundo se adapte, crie condições para eles continuarem avançando e exercendo o seu poder imperial.
A experiência do México, que já tentou a integração com os Estados Unidos, é dolorosa. O México já entrou nessa ilusão de que era uma abertura com os americanos. Se você for ver, os investimentos americanos feitos no México não criam propriamente emprego. Eles estão interessados no mercado americano, usam a tecnologia mais avançada e o resultado final é lamentável. Eu não creio que essa Alca seja aprovada.

Agência Brasil: Como o senhor observa essa especulação internacional em torno de uma possível indicação de seu nome para o prêmio Nobel de Economia?
Celso Furtado: A idade tem essa vantagem, não é? Relativiza tudo. Ninguém na minha idade se deixa levar por ilusões fáceis.
Eu acho muito bonito. Não há nenhuma manobra de minha parte, eu não participo de nada disso, eu acompanho e vejo. Reconheço que o Brasil está um pouco carente de figuras desse tipo. Mas, não poderia comentar isso, e me neguei até hoje a comentar e participar desse movimento. Apenas observo.

Agência Brasil: O senhor fez aniversário sábado, dia 26. Recebe como presente a recriação da Sudene?
Celso Furtado: Ah, isso é realmente diferente. Se tivessem me perguntado algum dia se eu ia participar ou estar presente à recriação da Sudene... Eu gostaria primeiro de ver o que se ia fazer.
E fui ver, conversei com eles e examinei os trabalhos, as bases do que estão fazendo. Fiquei muito satisfeito, achei tudo muito positivo. Não tenho dúvida nenhuma de me associar a eles e, se necessário for, pensar algo para que isso avance desta vez. O pessoal que está lá, o Ciro Gomes, a Tânia, é gente muito boa e conhece bem o Nordeste.

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