Cassilândia Notícias

Cassilândia Notícias
Cassilândia, Sábado, 20 de Abril de 2024
Envie sua matéria (67) 99266-0985

Geral

Leia o conto de Edna Menezes, o Eterno Presente

Edna Menezes - 02 de julho de 2005 - 05:58

Da janela do trem vejo os passageiros embarcando, não sei porque, mas a mim todos parecem tristes. Ao meu lado acomoda-se uma mulher. Deve estar na casa dos quarenta anos, um pouco menos. Aspecto agradável, eu diria. Bonita? talvez. Tira da bolsa um livro, desvio minha atenção para alguma coisa além da janela, esqueço-me da mulher ao lado. Tempos depois volto o meu olhar e percebo que a página do livro continua a mesma. Ela apenas olha absorta para as palavras, parece não vê-las.
A mulher, então, volta-se para mim, sorrio, parece-me o melhor a fazer, estou um pouco encabulado. Pergunto.
- Tudo bem?
- Sim, acho que sim. Não tenho mais certeza de nada, nem de mim mesma. Existe em torno de mim um estranho espaço temporal que se refere ao percurso de minha vida. Parece que tenho dezessete anos, sempre dezessete anos, a vida inteira tive essa idade.
Achei estranho, mas perguntei.
- Por que, o tempo não passou como deveria para você?
- Passou, engraçado é que passou, mas voltou ao ponto de partida.
- Desculpe-me, mas está um pouco difícil de entender.
- Se o senhor não se incomodar eu posso contar. Meu nome é Joana, e desde a infância eu sempre fui um pouco sonhadora. As pessoas diziam que eu tinha a cabeça nas nuvens. E assim cheguei aos dezessete anos, cheia de sonhos, último ano da escola Técnica Normal, no peito as esperanças de trabalho, salas de aula, crianças e tudo o mais.
No início do ano letivo de 1956, chegou na escola um novo professor, jovem, muito jovem. Professor Júlio. Técnicas de redação era sua disciplina. No primeiro dia de aula, quando ele entrou na sala eu senti que o mundo não seria mais o mesmo para mim. Dito e feito, apaixonei-me por ele. Dizem que é a loucura que gera a paixão e não ao contrário. Se isto for verdade, eu estava ou era louca, pois nada mais importava. Aos poucos ele foi percebendo a minha presença.
- Bom dia senhorita, a redação de seu trabalho ficou perfeita.
Outro dia.
- Se escrever com fluidez for um dom, com certeza a senhorita o tem.
Assim, em breve espaço de tempo o meu amor o contagiou e ele também me amava. Sim, eu sei que ele me amava. Porém seus momentos comigo eram escassos, dizia ele que o trabalho o obsorvia em demasia. Aceitei e tudo era muito bom. Meses depois, em uma tarde de estudos na biblioteca, estávamos juntos, quando entrou uma moça e dirigiu-se diretamente a nós. Disse ser a esposa e que viera buscá-lo.
- Perdão. Disse-me ele. Espere-me aqui, eu volto. E saiu acompanhado da mulher.
Eu fiquei sem reação, só conseguia pensar nos momentos vividos, eu tinha certeza que ele me amava. Mas a dor era incalculável. Eu, sempre tão cheia de valores morais. Eu que esperei sempre alguém especial para amar. Não, não podia ser verdade. O tempo passou e eu continuei ali sem me mover. Júlio voltou, em seu olhar havia uma névoa, eu não conseguia mais ler em seus olhos. Senti que o mundo desmoronava e um abismo intransponível abria-se entre nós.
- Não diga nada, é melhor assim.
- Espere, te devo algumas explicações.
- Esqueça, tudo o que eu sempre quis ouvir de você já foi dito antes de hoje. Só quero o som de sua voz dizendo que me ama. E sei que você me ama e vai amar para sempre. Adeus.
Foi a última vez que eu o vi. Não voltei mais ao colégio. Por sorte papai foi transferido de cidade, seu trabalho assim o exigia. Fomos embora para outro estado. Nesse momento rompi em definitivo com o passado. Foi como se uma nuvem espessa de esquecimento interpusesse entre o meu passado e meu presente. Retomei os estudo. Terminei a escola Técnica Normal, entrei para a faculdade de Pedagogia e comecei a trabalhar. No penúltimo ano de faculdade conheci um rapaz que trabalhava em uma multinacional e nos casamos. Eu terminei a faculdade, abri uma pequena escola. Tivemos dois filhos e a vida seguia tranquila. Enfim, realizei-me como pessoa e como profissional. O tempo passou, na verdade, numericamente, passaram-se vinte anos.
A menos de dois anos meu marido foi promovido e transferido para Belo Horizonte, capital mineira. Era irrecusável. Os meninos, o mais velho, Marco, com dezoito anos, cursava o primeiro ano de engenharia e se recusava a nos acompanhar. André, o mais novo, iria prestar vestibular para medicina e não abria mão da faculdade escolhida. Conclusão, após grandes reflexões, decidimos que eles ficariam e eu acompanharia meu marido. Vendi a escola e fomos em busca do novo.
A cidade era muito agradável de se viver, gostamos muito. Mas, aos poucos eu fui ficando entediada.
- Querida. Disse meu marido após o jantar. Porque você não volta para a faculdade. Faça uma pós graduação, ou algo assim.
Olhei para ele um pouco desconfiada. Mas gostei da idéia.
- É isso mesmo, vou procurar informar-me.
Dias depois lá estava eu novamente nos corredores de uma faculdade. Era bom, até o perfume do ar era bom. Que estranho, eu sentia-me uma adolescente. Na verdade eu não tive muito tempo para isso. A vida foi um pouco rigorosa comigo. Mas, porque eu estou pensando nisso agora. Deixei para trás todas estas coisas há muito tempo. Vamos lá.
Mas a vida às vezes nos reserva surpresas, com as quais não contamos. Os dois primeiros dias de curso foram agradáveis. Os professores reiteravam os meus conhecimentos e me propiciavam conhecimentos novos. Isso deixou-me muito estimulada.
- Como está o curso, querida.
- Muito bom, que boa idéia você teve. Estou fazendo novos planos. Não se assuste se de repente eu começar a trabalhar de novo.
- Que alegria ver você assim, pensando em por em prática seu conhecimento e sua experiência profissional.
É, estava tudo bem demais. No terceiro dia de curso, iríamos conhecer um novo professor. Quando ele entrou na sala.
- Júlio? Eu quase gritei. Fiquei estarrecida. Aquilo não poderia estar acontecendo de novo. Então, foi nesse momento que percebi que continuava com dezessete anos. O tempo havia parado em minha volta. Os vinte anos só haviam passado para meu corpo, parte de mim que havia permanecido ali por todo tempo. Minha alma havia estagnado, parado no tempo, ficara suspensa no passado. E só agora ela retornava para sua morada. Então, de forma inteira eu tinha dezessete anos.
Ele pareceu não me reconhecer. Nada falou, aula normal. Meses se passaram. Meses de tortura. Noites de insônia, sonhos e pesadelos. Entrei em um processo depressivo. Procurei ajuda. Estava indo bem. Tentava conciliar meu hoje com meu ontem. Mas era missão hercúlea.
Aos poucos fomos conversando, trocando algumas palavras. Nada de demonstrar que nos conhecíamos. Até que um dia em uma reunião ele contou que há anos separara-se da primeira esposa e que no passado havia amado uma outra pessoa, mas ela desaparecera de sua vida repentinamente. Ele passou longos anos procurando pelo seu amor, mas desistiu e preferiu esquecer. Atualmente tinha uma família, não era casado, mas vivia com alguém e tinha um casal de filhos. Fiquei em silêncio. Agora era só o que me restava fazer. Ele me amava, e eu tenho certeza, sempre me amará, mas estamos, pela vida, separados para sempre.
- E agora, para onde você está indo.
- Vou visitar meu filhos.
Edna

SIGA-NOS NO Google News