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Geral

Espaço de Nilton Bustamante

Nilton Bustamante - 05 de fevereiro de 2004 - 07:17

INITIARE

Vi minha liberdade ser arrebatada grosseiramente. Não tive tempo nem para entender o que estava acontecendo.
Vi-me sendo levado para um lugar desconhecido. Passei tantas fronteiras até ser largado a esmo, sem rumo, sem nada e no nada.

Fui despojado de minhas roupas, dos meus bens, da minha família, dos meus amigos, do meu conforto, dos meus domínios. Estava completamente só, no meu “eu”.
Ao sentir aquele desamparo, comecei instintivamente a caminhar.

Eu tinha que voltar para meu mundo, meu universo, meu porto seguro, minha história. Sentia-me um pombo-correio largado à distância.

Desnudo, não sei como, fui coberto por um pedaço de pano que se transformara num semimanto.

Dia após dia (sabe-se lá quantos?) andei por um caminho que não terminava e nem chegava a lugar algum.

Depois de muito caminhar, notei alguns movimentos. Quando dei por mim, estava perfilado à beira de uma estrada, com veículos passando. Havia, também, outros andarilhos. Passavam por mim sem parar, sempre em frente e em silêncio.

A partir deste momento coisas incríveis foram acontecendo:

Depois de ser “seqüestrado”, largado no nada, seminu e já completamente sujo, fétido, com cabelos e barbas de aspectos grotescos, continuei andando sem, contudo, pedir qualquer tipo de ajuda. Sim, não pedi ajuda alguma.
Simplesmente meus olhares cruzavam com outros olhares curiosos vindos das pessoas, de dentro dos automóveis. E eles seguiam em frente e eu também.

Tomado de forte sentimento de autopiedade pensava: será que essas pessoas não percebem o meu estado? Meu sofrimento? O quanto já passei?

E com veemência fui tomado de discriminação: será que essas pessoas não observam que não sou igual a estes andarilhos? A estes mendigos? Que sou diferente? Se ao menos soubessem quantos carros possuí, das casas onde habitei, das coisas que sei...

Não suportava mais aquela indiferença.

O tempo foi passando e quando meu orgulho foi deixado de lado aproximei-me de um automóvel, provocando quase um desastre: a mulher que o conduzia fechou os vidros rapidamente e, trocando de faixa viária, fez outros veículos frearem bruscamente. Diante de tanta confusão recuei, sem poder dizer uma só palavra, uma só sílaba e continuei a andar apressadamente sem mais parar.
Atônito, comecei a notar o grande número de andarilhos à margem da estrada, à margem da vida, à margem das pessoas estabelecidas. Quais histórias carregam dentro de si?

Lembro-me que cheguei a uma cidade pacata, porém muito arrumada e limpa.
Chamou-me a atenção o fato de os moradores serem todos anciãos, rigorosamente asseados e organizados para o fim da vida carnal.

Nunca estive tão quieto, tão calado, tanto tempo sem conversar.

Nunca me senti tão pobre, tão desprezado.

Que sensação horrível ao me aproximar de alguém e ser imediatamente evitado... Contato zero.

Aí eu parei de andar.

Lembrei-me que outro dia, orando, pedi a Deus que me proporcionasse algum meio para me conhecer melhor. Queria ter consciência do que ainda de falho habitava o meu íntimo?

Oh! Pai, agora percebo...

Preciso despojar-me dos meus bens, das minhas roupas, dos meus diplomas, das minhas conquistas, do meu corpo e verificar o que realmente sobra do meu ser, da minha essência.

Preciso repensar minha posição perante a vida.
Vi-me na indiferença das pessoas que conduziam seus automóveis.

Vi-me egoísta desejando autopiedade.

Vi-me discriminando outros iguais, apesar de me encontrar em nível terrível de pobreza espiritual.

Minha alma deve estar limpa, organizada, asseada como aqueles anciãos aguardando o momento da passagem.

Obrigado, meu pai! Por permitir que eu trilhasse a estrada do meu próprio espírito.

Obrigado, meu pai! Pelo bom sonho.

Sonho?





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