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Depois de 15 anos, ECA é mais intenção que realidade
...É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária... (*)
Criado há 15 anos para garantir a defesa das crianças e adolescentes, o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) tem sido considerado por especialistas ainda como um desafio a ser atingido.
Uma lei extremamente avançada para um país muito atrasado, resume o advogado especialista na área da infância e juventude, professor da disciplina ECA para o curso de direito da Unaes, em Campo Grande, Márcio José da Cruz Martins.
Aprovado no governo Fernando Collor (1990/92), o novo estatuto vive um paradoxo comum à maioria do arcabouço das leis brasileiras: representou uma ruptura com o modelo de leis ineficazes na defesa dos jovens brasileiros, mas acabou encalhado na ineficiência das políticas públicas do Executivo. O Estado falhou em não conseguir implementar políticas de atendimento, diz Martins.
Mortes de crianças índias por desnutrição, falta de vagas em creches, poucos e mal estruturados conselhos tutelares, projetos tímidos do SUS (Sistema Único de Saúde) voltados para a saúde dos adolescentes, inoperantes unidades de internação para recuperação de jovens que cometeram atos infracionais (delitos) e o crescimento da marginalidade impulsionada pela banalização das drogas. Problemas que deveriam ser combatidos, conforme o ECA.
Em Campo Grande, por exemplo, são apenas dois conselhos tutelares quando seriam necessários ao menos cinco. Há somente um programa voltado para a saúde dos adolescentes sem falar no crescimento do trafico e, com isso, a vulnerabilização dos jovens, diz a assistente social Stela Scandola, com a experiência de quem já foi conselheira estadual e municipal do direito da criança e adolescente, que participou da formulação do projeto que se tornou lei há 15 anos.
Hoje Stela é gerente-executiva do IBISS-CO (Instituto Brasileiro de Inovações Pró-Sociedade Saudável Centro-Oeste) e é taxativa ao afirmar que a juventude tem sido violada em seus direitos.
Se de um lado o acesso à saúde, educação, lazer, preconizados pelo estatuto representa uma dívida do Estado com a população jovem, por outro, existe ainda um outro conflito com a sociedade, diz Stela Scandola, referindo-se a discussão sobre leis severas para punir os infratores.
As leis de amparo não chegam aos jovens e a que pune é dura com eles. O numero de jovens violados em seus direitos é o dobro da violação praticada por eles, defende a especialista.
A assistente social diz ainda que na educação pouco se avançou nestes 15 anos. Pesquisas mostram que os professores desconhecem o estatuto. O conhecimento está equivocado. O Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, segundo ela, é uma das poucas iniciativas que surtiu efeito. Avançamos nessa parte, mas falta acompanhar a criança após retirá-la do trabalho.
Stela Scandola salienta que o ECA foi criado para mudar a relação da família e nesse ponto também, não foram observados progressos. As violências doméstica e sexual são outros gargalos a serem enfrentados, ressalta.
Infelizmente ainda vivemos uma cultura de que as crianças atrapalham o desenvolvimento dos pais. As mães continuam sendo responsabilizadas. Os homens não se voltaram para cuidar dos filhos. As mulheres estão no novo modelo de pobreza social, ou seja, não conseguimos fazer essa revolução.
Os sonhos da vendedora - O que dizem os especialistas se concretiza na saída para Sidrolândia, em Campo Grande, onde Stefani, 16, trabalha. A menina que ainda está na 5ª e 6ª séries do EJA (Ensino Fundamental para Jovens e Adultos) trabalha até 10 horas por dia. Stefani vende sonho na rodovia movimentada.
A menina bonita, negra, de vocabulário rico, diz orgulhosa: Sexta-feira consegui vender 160 sonhos. Fico aqui mesmo porque o ponto é bom. Muita gente que está de viagem passa por aqui. Meu patrão traz minha marmita e almoço no trabalho mesmo. Minha mãe está desempregada. Somos somente nós em casa. Tiro R$ 240 por mês.
Indagada sobre o tempo para os estudos revela que o trabalho vem em primeiro lugar. Chego em casa por volta das 18h e pouco. Em meia hora faço a tarefa. Nos fins de semana quando sobra tempo, porque trabalho sábado, e domingo ajudo em casa, aproveito também para estudar.
Há uma certa similaridade na doçura e na simplicidade entre os sonhos que vende na rodovia e aqueles que cultiva. Meu sonho é ser médica, cuidar das pessoas doentes. Vou conseguir. Quero também tirar minha mãe do aluguel.
Stefani desconhece o ECA, já ouvi falar, mas não sei o significado.
ECA no lixo O catador de lixo, Willian dos Santos Araújo, 21, desde os 14 anos passa a maior parte do dia revirando os entulhos do Lixão, no bairro Dom Antonio Barbosa.
Após um breve relato do que é o ECA, ele busca em seu conhecimento o entendimento para uma lei ainda não posta em prática. Se (ECA) fosse cumprido, eu que estou aqui desde 1993 tinha tido outra chance para viver. Não precisava estar ainda nisso.
A amiga de 52 anos, Adélia Pereira Maciel endossa o que Araújo disse. Aqui não é lugar para criança. O risco é geral. Tem injeção, vidro, carros em alta velocidade. Um perigo. Quando chego às 5 horas já vejo a gurizada de 12 a 15 anos.