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Crônica do Corino - O livro de Edmur

Corino Rodrigues Alvarenga - 17 de setembro de 2006 - 06:49

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O livro de Edmur

Como eu já disse numa das crônicas – tenho péssima memória e, portanto, estou prestando um desserviço ao leitor diante dessa desinformação toda ao não saber dizer exatamente qual é, isso pra não dizer embromação, é claro -, na infância, nunca fui flor que se cheire.
Os meus pais, até os quatro anos, José Marinho e Almira, e os meus pais adotivos até os quinze anos, João Marinho e Delaide, comeram o pão que o diabo amassou comigo. Não tenho dúvida: vão direto para o céu, com passaporte carimbado, conferido e sacramentado. Deus não põe a mão em cumbuca e não seria injusto com essa gente toda.
Tive que me socorrer ao amigo Girotto para tentar lembrar o nome da escola que estudei nos primeiros anos de minha vida. Tenho péssima memória, como já disse, e não me lembro de praticamente nada daqueles primeiros anos de vida escolar, nem mesmo o nome da escola.
Girotto acaba de me dar uma mãozinha, enviando-me esta informação:
- Ali eram duas escolas, que era técnico e normal e a outra ginasial (na época). As duas se transformaram em Centro Educacional de Cassilândia, que recentemente passou a ser chamar Escola Estadual Hermelina Barbosa Leal (esposa do primeiro prefeito eleito da cidade, Sebastião Leal, grande educadora e escreveu também um livro sobre Cassilândia. Lembra?) Eu acho que era Cassilândia de Meus Amores.
A informação de Girotto procede. Eu estudei ali e lembro que toda professora brigava pelo pequenino estudante Corino. Era uma briga danada:
- Fique com ele pra você, vai!
- Não, de jeito nenhum! Fique com ele lá!
Lisieux, a esposa do Nelsinho Contabilista, foi premiada. Mulher iluminada era aquela: foi a minha professora. Apesar de bagunceiro e traquina, fiz-lhe uma linda homenagem alguns anos depois, já adolescente:

Lisieux, este aluno não a esquece
Na sala dos bons mestres
Que, com encantos, fora
A minha primeira professora!

Passei pela primeira série e graças a Deus Lisieux saiu sã e ilesa, apesar dos solavancos que provoquei dentro da sala de aula durante aquele ano todo.
Não sei se na quarta ou quinta série, tive um colega de sala de aula chamado de Edmur, que, por sinal, tive a felicidade de revê-lo há uns vinte anos em Cassilândia.
Logo no início daquele ano letivo, todos os alunos exibiam os seus belos livros didáticos, que, à época não eram distribuídos gratuitamente pelo governo federal, mas comprados pelos pais de alunos.
Eu era traquina demais e, por descuido, acabei borrando um de meus livros com tinta de caneta. Minha mãe de criação Delaide era severa e, pensei, com certeza irá me punir de alguma forma. Olhei na carteira ao lado e vi aquele livro bonito, novinho em folha e, o que é mais importante, sem mancha de tinta de caneta.
Era o livro de Edmur, um menino mais forte, mais gordinho, de fala mais anasalada - isso se a memória não me trai.
Não pensei duas vezes: como não havia ninguém olhando, fui lá e crau! Troquei o meu livro com o dele. Sem, é claro, o seu consentimento. Não era um furto, afinal eu estava trocando uma mercadoria pela outra. Que besteira! A diferença era apenas aquela mancha besta de tinta de caneta. Só isso. Fiz a troca.
Depois, lógico, Edmur descobriu, exigia o seu livro de volta, eu negava, dizendo que o livro era meu, e ele dizendo que não era. Virou um verdadeiro rebuliço. No final, o livro intacto, novinho, voltou para a mão do seu verdadeiro dono; e aquele livro quase intacto, só com aquela manchinha de tinta, voltou para a mão de seu verdadeiro dono: eu.
Não foi só uma mancha de tinta, analiso hoje. Foi uma mancha no meu currículo. No currículo de um menino danado demais. Vinte anos depois Edmur, lá pelos finais dos anos oitenta, ainda lembrou-me dessa mancha em minha vida. Acho que ele nunca me perdoou. Mas, otimista, apelo para o seu lado humano.
Também... como poderia me perdoar se eu nunca lhe pedi perdão. O máximo que posso fazer agora, amigos, é dizer algo assim:
- Foi sem querer, Edmur. Foi sem querer. Perdoa, vai.
Para pagar essa dívida moral com o pobre livro manchado de tinta de caneta e com meu colega Edmur, estou instalando aqui em casa uma biblioteca comunitária para oferecer leitura gratuita aos mais carentes e, com isso, contribuir para que o brasileiro não continue lendo apenas 1,8 livro per capita por ano.
Mas que aquela mancha de tinta de caneta ficou para sempre, amigo, não vou negar, não vou mentir: ficou.
Ela continua aqui, atravessada.

Corino Rodrigues de Alvarenga
Contatos com o colunista:
[email protected]

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