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Confira a última entrevista de Sganzerla em outubro

Alessandra Bastos/ABr - 10 de janeiro de 2004 - 11:08

O primeiro filme foi um curta-metragem e levou apenas o nome “documentário” (1967). Pelo título, já era possível avaliar o que seria a carreira do cineasta Rogério Sganzerla.

Com “Documentário”, Sganzerla ganhou como prêmio uma viagem a Cannes. Fora do Brasil, ele imaginava um bandido mascarado, que daria muito trabalho à polícia e alimentaria o imaginário popular. Rogério então escreveu o roteiro do que seria seu primeiro longa-metragem e o destino se encarregou do restante. No navio que o trouxe de volta ao país, o cineasta leu as manchetes dos jornais brasileiros sobre o “Bandido da Luz Vermelha”, que deixou São Paulo inteira em pânico. A imaginação virara realidade, que virara filme, com o mesmo título, “O Bandido da Luz Vermelha” (1968), que projetaria Rogério nacionalmente e se tornaria a sua obra mais conhecida.

Trinta e seis anos se passaram desde que seu primeiro filme foi rodado. Um hospital, em São Paulo, onde Sganzerla foi operado do tumor no cérebro, foi cenário de uma longa conversa, em outubro de 2003. A pedido da imprensa e por intermédio de seu assessor e amigo Roberto Ronchezel, Sganzerla se abriu em um extenso depoimento sobre sua vida e obra.

Debilitado pelo câncer, Rogério estava com dificuldades para falar e sua mulher, a atriz Helena Ignez, e Ronchezel também participaram do bate-papo. O texto, aqui publicado, é a íntegra desta conversa.



Como você escolhe os elencos de seus filmes? Quem são seus atores?

Rogério - Nos meus filmes os atores contribuem com novo estilo de interpretação, de desincorporação, uma nova técnica de reinvenção. Temos que evitar essa “capa de França” de criar ou não criar modelos de comportamento e de formas advindas de outros países. Temos que criar o que é nosso mesmo.
No Bandido havia uma diversidade de expressão e mostrava as coisas por dentro e por fora. Dirijo os atores em movimento e eles exercem total liberdade de estilo, para poderem ser mais sinceros. Os atores são pessoas amigas que me protegem nos momentos difíceis da filmagem e me capitalizam em busca de um sistema verdadeiro capaz de apreender todas as mutações, que são registros do processo histórico que estamos vivendo agora e depois...

Helena Ignez - Conversamos muito sobre o antifilme e Rogério sempre fala nessa época dos superfilmes, das superproduções. Nesse contexto ele decide chamar O Signo de o antifilme, que é o contrário do superfilme, do grande filme. É um filme para descosturar, como ele diz. Interessante também que houve um crítico que disse que O Signo é o filme mais parecido com o Bandido...
... Acho bonito esse jeito que ele trabalha e isso que ele disse, que os atores o protegiam no momento da filmagem. Os atores não eram dominados pelo diretor. Eram professores, amigos e que desvendavam as mutações históricas... Isso foi definitivo na minha vida. Sou uma atriz do movimento. Hoje isso corresponde a 50 por cento da minha expressão total. O movimento, tanto quanto o close, se completam.
Para mim Rogério é um dos maiores mestres de atores do cinema. O resultado que eles conseguem, às vezes nem, são atores especificamente, ou são atores bissextos, como Otávio Terceiro, que tem realmente uma atuação fenomenal – ele conseguiu isso através de uma simbiose, de uma relação muito profunda com o diretor, uma colaboração – como o Rogério diz, de proteção, mesmo. Protetor da obra que está realizando. Isso, nós atores que trabalhamos com ele, nós conseguimos por que ele nos dá essa oportunidade de liberdade e isso se torna inesquecível. Mesmo a Camila Pitanga, depois de ter visto o filme, agradeceu a Rogério a oportunidade de ter trabalhado com ele. Ela, como um ser humano sensível percebeu a raridade que é para um ator trabalhar com um diretor desse nível. Acredito que o Kubrick, pelos resultados que a gente vê nos filmes dele, também deve ter essa magia, esse conhecimento profundo do que é e um respeito profundíssimo pelo trabalho do ator. Então o ator se torna extremamente autoral.

Rogério - seria uma coisa horrível se fossem padrões de comportamento separados, níveis de interpretação. Na época nós tínhamos horror em colocar as coisas como se fossem diferentes, camadas da realidade. Acho que não tinha sentido captar tudo como se fossem camadas separadas.
Acho que Helena falou muito bem sobre simbiose e o Kubrick, do bom com o falso, que nem aquele manifesto meu “o arquifalso é tão falso quanto o falso”.Tem que criar um suprasumo de orientação visível, por exemplo, aquele filme ”The Killing”, um trhiller, um filme bem cafona do Stanley Kubrick com Sterling Hayden... o Kubrick é um dos mais perfeitos diretores – recomendo sempre aos novos cineastas. Não incorreu nunca em um grande erro. O Kubrick é a pedra de toque do cinema. Você vê aquelas coisas falsas, voluntariamente falsas, como um cara de espingarda andando pela rua, fazendo os maiores absurdos, dando tiros... acho que isso é o século XX. Sem dúvida é o maior cineasta americano e autoral.

Seu cinema sempre foi de ruptura, mas seus personagens, mesmo com os comportamentos mais estranhos sempre mantiveram um certo recato e pudor. Como é que você vê o erotismo do cinema comercial, próximo da pornografia?

Rogério - Meu cinema sempre foi de ruptura – inclusive com meus próprios modelos. Tive que buscar essas rupturas. Esse é mais um recurso, como esses outros recursos. Utilizar recursos no cinema é sempre proveitoso, desde que consiga infundir um certo balanço ao filme. Por exemplo, um arco que libere uma flecha, não pode ser aquela coisa óbvia de filme de mocinho e bandido. Não podemos ser óbvios na tela.

Outro dia você disse uma frase sobre o sentido de fazer cinema que acabamos colocando no texto de abertura de Gramado. Achei a frase muito bonita. A Silvana, da Folha, que pediu para passar essas perguntas para você também ouviu e eu queria que você comentasse o que disse naquele dia: “Fazer cinema é como descrever um movimento impetuoso numa folha em branco pegando fogo”.

Rogério - A idéia do movimento, do trabalho...

Helena - É um êxtase. Um êxtase violento, profundo. A mim me traz imagens também da poesia de Rimbaud, esse êxtase da criação, também destrutivo, o fogo que queima, a presença do mesmo fogo que destrói a própria arte recriando, que tem no final do “Signo...” aquela imagem ocasional e casual e profundamente recorrente, que é a imagem do Deus Shiva dançando e o próprio fogo. Ele queima o universo através de sua dança. Shiva destrói renascendo. Ele é a parte da destruição no universo. Na tríade ele é a destruição recriadora através da dança e da arte. Ele é o próprio deus da arte e acabou sendo um dos símbolos do Signo do Caos. Eu sei que foi um signo não procurado, mas encontrado, um signo que foi até o filme. Inicialmente ele não teria essa idéia de procurar essa imagem. Essa imagem aconteceu em um porão e ele deu aquele movimento.
Isso tem um sentido cosmogônico...

Rogério - Totalmente... O Deus da dança... que Helena muito bem acabou de falar... por que essa (a cosmogonia) é única saída para o cinema moderno e isso tem que ter no final do nosso novo filme (“Luz Nas Trevas – Revolta de Luz Vermelha”)

Você está falando daquela chegada dele como um anjo?

Rogério - É. O anjo exterminador, o anjo tem que se comportar assim. Buñuel viu isso. Se não tem isso, então não vale. O que me aborrece é que tudo o que vem por trás se recorre a isso. Estou vendo muita aliteração e pouca incorporação. Não há uma incorporação desse espírito. Nós não temos um cinema à altura de nosso século, por causa dessa estruturação do pensamento humano. Ninguém vai se oferecer para trabalhar nesse ... ninguém vai se propor a compreender o que está acontecendo neste momento. Luz nas Trevas... esse nome é explícito demais - as trevas do nosso tempo, as trevas da cultura brasileira, as trevas paulistas. Acho que está todo mundo por fora, as pessoas estão por fora, não estão entendendo nada. Não sabem o que estão fazendo. Não quero ser profeta em meio ao caos. Quero que os outros também entendam isso. Está tão na cara! Temos bons cineastas, eu vejo aí bons filmes, algumas surpresas, mas é só diluição. Acho que tudo isso foi anunciado por Kubrick e pelos maiores cineastas americanos da década de 50. Eles ainda não estavam a serviço dessa diluição controlada pela burocracia sentimental.


Sempre que a gente conversa sobre cinema você fala sobre a sintaxe. Parece espantosa essa comparação entre o Signo e o Bandido, porque a sintaxe já não é mais a mesma. Você também se queixa de sintaxe no cinema atual. Ele não tem linguagem...

Rogério - Faltou linguagem depois do Bandido. Ninguém está se mancando. Naquele momento estávamos sintonizadas. Nós éramos muito cultos naquele momento, não é Beto? E por que? Faltaram condições históricas para não deixar acontecer.

Foi por isso que você foi embora do país naquele momento?

Rogério - Foi. Os produtores se tornaram muito ingênuos, não entendiam mais nada de cinema. O cinema tem de ter linguagem. Tem de ter estrutura. Aqui em São Paulo perdeu-se a sintaxe do cinema e perdeu-se também até a dignidade do cinema. E não se culpem os realizadores por isso. Os produtores...

Helena - Os produtores que se tornaram reprodutores...

Rogério - Os cineastas não têm apoio nenhum para a construção de suas próprias linguagens. Qual é o apoio que os cineastas têm? Nenhum.

A linguagem do cinema está se transformando em corruptela da televisão?

Rogério - Ah, está. Acho que foi justamente o nosso cinema, que é o mais criativo do mundo, que foi vítima de uma conspiração ambiental para liquidar o talento, que é a matéria prima do cinema. Essa gente não entende nada do que seja essa matéria prima. Na prática é isso.

Nunca falamos sobre isso, mas tenho a impressão que o Glauber...

Rogério - Também sofreu muito...

Vocês não tinham relação próxima, mas eram interlocutores? A solidão aumentou depois que Glauber se foi? A combatividade dele te fez falta?

Rogério - Fez. Glauber era uma figura lancinante. Como ele era baiano, ele entendia e era um cara bacana também. Entendia que era necessário isso. Não podia ser feito em paz. Ele achava que o embate era importante entre as pessoas. Ele gostava de se assumir como... Helena sabe mais do que eu sobre isso. Para haver debate tem que haver interlocução. Tem que ter a estética dele criando polêmica dentro da estética. Vou passar a bola para a Helena.

Espera um pouco, você não falou dela como atriz. Ela esteve presente em quase todos os seus filmes e virou quase uma atriz símbolo. Além disso, “O Signo do Caos” foi também o filme de estréia de Djin. O que você diria das duas como atrizes?

Rogério - Extraordinárias. Sempre ouvi das duas e dos meus amigos que trabalhavam também nessa área, que nem parecia que estavam sendo filmados, que nem parecia que eu estava dirigindo.

Djin – Nem parece mesmo, que a gente está fazendo um filme.

Existem outros atores, que eram personagens, como o Zé Bonitinho...

Rogério - Extraordinário. Ele deu um presente de São Paulo. São Paulo não me deu dinheiro para filmar. Nem a mim e nem aos outros que deram muito, como o Roberto Santos, o Person, que eu assisti trabalhar – filmes com estilo, coisa que os filmes de São Paulo de hoje não têm. Esses filmes que a gente conseguiu fazer mostram um outro São Paulo. Só os grandes filmes paulistas é que conseguem.

Queria que você falasse um pouco sobre o Aranha (Sem essa, Aranha)

Rogério - Esse era o meu projeto inicial. Esse era o filme com o qual iria estrear. O Bandido tinha 500 planos. Esse seria um filme de seis tomadas, seis porradas...

Mas ele foi uma porrada, não foi?

Rogério - Foi e não conseguiu se juntar com o resto da produção. Quer dizer, até que conseguiu. Era um longo projeto. Seria um filme de 12 planos. 12 takes. Um bloco mais concreto. Uma forma de dissolução e caos.

O Aranha virou um cult, visto hoje, fora do Brasil, por cineastas...

Rogério - Meia dúzia... os jovens não têm acesso a esse tipo de cinema porque os professores são umas toupeiras. Quem aprende errado faz errado. Toda vez que passa, enche. As oportunidades são únicas. Helena é que vai dizer o que deve ser feito agora...

Helena - O que queremos neste momento é fazer, com a ajuda do Ministério da Cultura, neste bom momento para o cinema, que tome a frente do projeto de uma grande retrospectiva completa dos filmes de Rogério – dos filmes completos e incompletos – todo o trabalho dele, com a produção de novas cópias, para ser mostrado e estudado.

No dia da apresentação do Signo no Festival do Rio, você utilizou uma metáfora, pedindo para que os jovens concluíssem esse filme. Você estava se referindo ao filme “O Signo do Caos”, ou a um cinema experimental, de arte?

Rogério - Não se fechar. Buscar uma linguagem operante.

Quanto ao Signo do Caos, você acha que é uma linguagem para o jovem de hoje, com o jovem que está acostumado com a linguagem da TV?

Rogério - O filme vai deformar as pessoas. O melhor caminho para o cinema moderno é esse: Einsenstein com Orson Welles. Depois disso o que poderia acontecer? O filme “Sem essa, Aranha” devia passar nas escolas de comunicação. Não tem nada melhor nos anos 70. A câmera que vai, vai, opera, opera... isso deveria passar nas escolas de comunicação. Infelizmente, no Brasil não temos uma cinemateca à altura dos nossos “cinematequeiros”. Até a música (“Qualquer coisa”, de Caetano Veloso) é fantástica. O nome é “Sem essa, Aranha”. Aranha é o personagem de Zé Bonitinho, quer dizer, corta essa, não dá!

Quanto ao novo projeto, Luz nas Trevas – Revolta de Luz Vermelha. Qual a gênese que você faz desse personagem? É o mesmo Bandido?

Rogério - Em primeiro lugar, denominamos Luz e não Bandido, ao poderoso experimento de linguagem urbana amortizado no lançamento em São Paulo, premiado nos festivais nacionais e triturado aqui e lá fora, por todo tipo de admiradores – confessos e inconfessáveis, amigos e inimigos da continuidade da luminosidade. Eu acredito na continuidade da luminosidade. No Bandido não houve isso. Vai haver no novo projeto. Vinte anos depois esse filme ainda é um mito para o imaginário urbano. O novo Luz não pode ser uma diminuição.

Neste momento você está de convalescença lançando “O Signo do Caos. Como é que você gostaria que as pessoas saíssem do cinema depois de assistir ao filme?

Rogério - Baratinadas!

Participaram da conversa com Rogério Sganzerla:
Roberto Ronchezel, Helena Ignez, Guilherme Marback e Djin Sganzerla.

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