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Cassilândia: Juiz julga procedente ação contra Estado MS

09 de outubro de 2009 - 09:30

O juiz de Direito Silvio C. Prado julgou procedente Ação Cívil Pública promovida pelo Ministério Público contra o Estado de Mato Grosso do Sul obriganfdo a providenciar, nos casos de emergência, cujo procedimento seja de sua atribuição, nos termos das normas que regem o SUS, conforme convênio entre Estado e Município, imediata vaga para o tratamento necessário, e, inclusive, se não a possuir em seus hospitais públicos ou conveniados, que a providencie junto outros Estados da Federação, Hospitais vinculados à União, e por fim, junto à iniciativa privada, a custas do réu, até que possa proporcioná-la em estabelecimento público ou conveniado, tudo, sob pena de multa diária de R$ 2.000,00 além de responsabilidade pessoal do seu representante. O local para onde o paciente deverá ser encaminhado deve ser indicado por fax às Unidades Hospitalares Públicas de Cassilândia no prazo de 01 hora a contar do pedido.

Leia a decisão


Autos 007.08.001864-1 - Ação Civil Pública
P.A.: Ministério Público Estadual
P.P.: Estado de Mato Grosso do Sul


Sentença
Ministério Público Estadual, ajuíza ação contra Estado de Mato Grosso do Sul, Parque dos Poderes, Bloco VIII - CEP 79.031-902, Campo Grande-MS, e pede obrigação de fazer, consistente em, nos casos em que houver paciente com enfermidade, necessitando de urgência em tratamento médico, seja providenciada imediata vaga em hospital especializado, quando não o houver nesta Comarca.
Para tanto alega que várias foram as informações recebidas, noticiando a morte de crianças e o agravamento de doenças e traumas em várias situações por omissão do Poder Público Estadual.
Afirma-se que os profissionais da saúde desta cidade, integrantes do SUS, ao detectarem caso de atendimento especializado, que não exista neste Município, o Estado, deve proceder o encaminhamento do paciente a hospital em que houver o tratamento.
Sustenta, todavia, que ao invés de encaminharem a pessoa, com urgência, dada à gravidade dos casos, primeiro, enviam uma solicitação à "Central de Vagas", gerida pelo Estado, devendo o paciente permanecer nesta cidade, sem o devido tratamento e, aguardando liberação de vaga.
Segundo a inicial, em muitos casos de urgência, a vaga não é fornecida de forma célere, o que acarreta riscos de morte ou agravamento da enfermidade e, não raras vezes, o paciente, de fato, falece, em virtude da demora na liberação da vaga.
Narra-se que, em vários casos, a família, desesperada, tenta por conta própria e risco, levar o paciente a centros especializados, vezes em que o óbito ocorre no trajeto, ou mesmo após lá chegar, em decorrência da demora.
Exemplificam-se os fatos com quatro casos, qualificando-os de graves, em que sérias foram as consequências, dada à omissão do Estado, em fornecer tratamento adequado e com urgência, aos pacientes desta cidade.
O pedido de tutela antecipada foi deferido em primeiro grau (fs. 155-156), e, interposto agravo de instrumento (fs. 173-203), foram suspensos os efeitos da decisão (fs. 209-210).
Em defesa, sustenta-se, preliminarmente, a impossibilidade de tutela de direito individual em ação civil pública e, no mérito: o Estado vem cumprindo com o seu dever constitucional de promover a saúde pública; em nenhum dos casos narrados pelo Ministério Público ficou comprovado que a causa da morte foi por omissão do Estado; há um sistema de atendimento dos casos urgentes, conforme Portaria 2.657/GM; ofensa ao princípio da igualdade, pois na Administração Pública é vedado tratamento privilegiado; ofensa ao princípio da reserva do possível; violação ao princípio da tripartição dos Poderes porque o Judiciário não pode implementar políticas públicas; impossibilidade de o Estado pagar custas processuais e verbas sucumbenciais em favor do Ministério Público; inaplicabilidade da multa fixada (fs. 212-242).
Em impugnação, a pretensão é ratificada (fs. 243-249).
Possibilitada dilação probatória, houve oitiva de pessoas (fs. 298-325 e 342-3).
Juntou-se cópia da decisão proferida no agravo de instrumento, revogando os efeitos da tutela antecipada (fs. 327-330).
Em alegações finais, mantém-se a questão (fs. 344-436).

Motivação
Inicialmente, sobre a possibilidade de proteção de interesse coletivo em ação civil pública, promovida pelo Ministério Público, afirma a Constituição Federal:
Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: [...] III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos [...]
Não há dúvida, portanto, da legitimidade do Ministério Público, inclusive, de que a saúde é um direito de interesse coletivo:
Art. 196. A saúde é o direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
A pretensão do Ministério Público é a seguinte: havendo paciente com enfermidade grave neste Município e, não havendo aqui, possibilidade de tratamento especializado, seja o Estado, obrigado, a providenciar imediata vaga em hospital especializado, seja ele público ou privado.
Justifica a pretensão o autor ao argumento de que várias foram as informações recebidas, noticiando a morte de crianças e o agravamento de doenças/traumas em várias outras situações por conta da omissão do Estado réu.
E isso, segundo aponta, ocorre pela demora na concessão de vaga em hospital especializado, em geral, na capital do Estado, conforme narrado no relatório.
O Ministério Público narrou alguns casos em que teria resultado a morte ou agravamento do estado de saúde de alguns pacientes, que serão apresentados a seguir.
1.1 DO CASO VAGNER A. S. R.
Em 16 de outubro de 2004, a criança Vagner nasceu a termo, no Hospital São Lucas, nesta cidade. Pesava 04 quilos, com 51 centímetros, de parto normal.
Não houve qualquer incidente, o parto ocorreu durante a madrugada. Logo pela manhã, após pegar a criança para ser amamentada, a enfermeira Abigair Oliveira da Silva notou que a mesma “estava roxa”.
O médico plantonista, Sandro Roberto Esquerdo, após ser chamado, observou que a criança apresentava “quadro de cianose”. Na seqüência, também solicitou aos médicos Paulo Cezar Abud, cardiologista, e José Quaranta Filho, pediatra, que a observassem.
De forma unâmine todos diagnosticaram a necessidade de encaminhamento da criança para “atendimento especializado em neo-natologia”, haja vista “suspeitas de alguma alteração congênita no aparelho cardiovascular”.
Assim, sendo caso de urgência/emergência cujo atendimento é pactuado com o Estado réu, imediatamente foi solicitada vaga através da “Central de Vagas”, mas esta não foi liberada. Durante todo o dia se esperou pela liberação da vaga, e esta não ocorreu.
Por volta das 23 horas e sem sinal de vaga oferecida pelo SUS, a família desesperada conseguiu uma ambulância para levar a criança à cidade de Santa Fé do Sul/SP.
Por volta de 02h10min do dia 17 de outubro de 2004, chegaram a Santa Fé do Sul/SP, mas como não havia vaga, continuaram a peregrinação.
Por volta das 03 horas daquele dia, chegaram a Jales/SP, onde a criança foi levada à UTI neonatal, vindo a falecer mais tarde, sendo a demora no atendimento um dos principais fatores.
A médica Alva Coeli Machado dos Reis Kitayama, que a atendeu, destacou a demora no atendimento, a falta de solicitação de vaga àquele hospital (que não faz parte da rede de saúde deste Estado – para onde a solicitação foi encaminhada), e destaca que o “atendimento médico realizado na vítima foi prejudicado pelo estado em que ela chegou no hospital” (mal estado geral cianótico, pálido e areativo).
Por mais, em uma das últimas tentativas de solicitação de vaga pelo hospital local, assim restou consignado (transcrição feita pelo Instituto de Medicina e Odontologia Legal deste Estado contida no Laudo de Exame de Corpo de Delito, em anexo):
“... encaminhamento datado do dia 16/10/04 as 19:00h pelo medico assistente Sandro Roberto Esquerdo, com senha da vaga de numero 010542004, o qual foi cancelado pelo Dr Antonio Adonis Mourão, da central de regulação, por falta de vaga em UTI neonatal. Consta xérox em folha a parte, de negativa de vaga na santa casa (Dr. Jorge), hospital regional (Dra. Ana) ilegível, H. U.( Dra. Silvia) com telefone 345.3247”.
A causa da morte foi cardiopatia congênita mais insuficiência respiratória. O procedimento então necessário, e inclusive determinado (prontuários), seria a cirurgia cardíaca pediátrica, que poderia ter ocorrido em tempo hábil não fosse a demora decorrente da omissão de nosso Estado.
E quanto a esse caso específico, a conclusão do inquérito policial aponta o seguinte: A criança nasceu sem apresentar qualquer anomalia e, após algumas horas o quadro clínico da criança apresentou modificação, tendo o médico responsável, solicitado vaga para internação do paciente junto a central do SUS em Campo Grande-MS. Devido à demora, os pais procuraram tratamento fora do estado, em Jales-SP. Nesta cidade, a pediatra informou que Vagner demorou muito para ser atendido (fs. 72-82).
2. DO CASO “LEIDIVANIA LAZARA SILVA FERREIRA”
Nascida em 21 de julho de 2008, a filha de Leidivania Lazara Silva Ferreira nasceu prematura nesta cidade e por tal razão necessitava de urgente tratamento médico – neonatologia – UTI, também “pactuada” com o Estado réu.
Solicitação feita à “Central de Vagas”, veio a resposta negativa. Horas após o nascimento e em razão do drama familiar, procuraram a Justiça local, a qual, assim que buscada, às 23h25min, determinou o imediato atendimento.
Não obstante, dada à demora em o Estado disponibilizar vaga (razão da necessidade da tutela jurisdicional), o recém-nascido veio a óbito no trajeto à cidade de Campo Grande/MS (430 km de distância).

3. DO CASO MAURI MACHADO DE SOUZA
O referido paciente, com 22 anos, deu entrada na Santa Casa local, em 11 de agosto de 2008, com traumatismo crânio-encefálico, carecia de tratamento de alta complexidade, também pactuado com o Estado reú.
Solicitada vaga, novamente a resposta: não há.
E novamente diante da inércia do Estado, a família se viu obrigada a, por conta própria, encaminhar o paciente para a cidade de São José do Rio Preto onde se encontra com morte cerebral.
E mais: vejamos o que relatou a testemunha Horacinda Nantes Coelho, auxiliar administrativa da Santa Casa local:
“... que o referido paciente acabou por ser transferido pela família para a cidade de São José do Rio Preto-SP, com a finalidade de ser internado em caráter particular, porém ao chegar naquela cidade os familiares solicitaram o encaminhamento para o hospital de Base-SUS, mas como não havia solicitação de vaga, o Dr. Carlos acabou sendo responsabilizado por tal ato, que culminou com uma situação constrangedora para o médico, eis que houve até o envolvimento da autoridade policial, no entanto o médico apenas cumpria com seu dever de salvar vidas;...”.

1.4 DO CASO GENECI JOSÉ DE OLIVEIRA
Com diagnóstico de traumatismo craniano, o paciente de 49 anos deu entrada na Santa Casa local em 22 de agosto de 2008 e por mais de 05 dias não conseguia vaga para o tratamento especializado – neurocirurgia.
O risco de morte ou agravamento do quadro clínico, inclusive com seqüelas graves, é evidente.
E mais, além de recusar vaga, o Estado por meio da “Central de Vagas” já retransmitiu comunicado da Santa Casa de Campo Grande/MS informando que não adianta enviar mais solicitações, pois estaria com superlotação.
Morrendo aqui, longe da Capital do Estado, talvez o fato não incomode tanto os administradores públicos.
A persistência da omissão do Estado, mais uma vez, revela a necessidade inafastável da tutela jurisdicional.
Em alegações finais narrou um novo caso ocorrido na tramitação do processo:
1.6 DO NOVO CASO: ITALO A. V.
Conforme novos documentos a que teve ciência este representante ministerial (em anexo), mais uma vez a omissão Estatal mostrou-se lesiva ao direito fundamental do cidadão à saúde.
Em 21 de dezembro de 2008, às 20h50min, com quadro de traumatismo crânio-encefálico, a criança Italo, com 08 anos de idade, então atendido na Santa Casa de Cassilândia, solicitou vaga para assistência especializada junto à “Central de Regulação” (doc. anexo).
Às 21h35min, nova solicitação é feita, agora informando tratar-se de “Vaga Zero” (risco iminente), contudo, nada (doc. anexo).
Dia 22 de dezembro de 2008, às 02h20min, mesmo sem haver o tratamento na cidade de Três Lagoas/MS, Italo para lá foi encaminhado, isto por orientação da “Central de Regulação”.
De Três Lagoas/MS, já no Hospital Nossa Senhora Auxiliadora, é feita nova solicitação de vaga (doc. anexo), e Italo, com quadro de traumatismo crânio encefálico, ali aguardou sem a devida assistência por horas, por sorte não veio a óbito.
Pois bem.
A morte e o agravamento do estado de saúde de pacientes por ineficiência estatal, não se duvida, é um problema que muito ocorre, tanto em grandes como em pequenos centros.
As testemunhas ouvidas em Juízo deixam claro: a dificuldade de encontrar uma vaga em hospital especializado para determinada enfermidade é fato, e isso, realmente, tem ocasionado mortes e agravamentos clínicos incessantes.
Abigail Oliveira da Silva é funcionária do Hospital São Lucas e, afirma que sempre solicita vagas, na "Central de Vagas", em Campo Grande, por meio de fax, mas não obtém respostas positivas, inclusive, teve pacientes que passaram por grandes dificuldades em virtude da demora do estado, verbis:
[...] JUIZ: A senhora podia dizer o que que a senhora tem conhecimento a respeito desse fato, sobre essas dificuldades, se há ou não há dificuldade para conseguir encaminhar um paciente para Campo Grande? DEPOENTE: Não, na verdade, realmente, quando a gente... O médico que faz o pedido para encaminhar, lá, eles não têm, nunca têm condições de vagas. JUIZ: Nunca têm vagas? DEPOENTE: Geralmente, eles têm, assim, se passa um fax, eles pede para a gente aguardar. De repente, a gente tem que pedir reforço de outro fax. JUIZ: A senhora pode noticiar quanto tempo? DEPOENTE: Tem demora, sim, tem demora até... JUIZ: A senhora já chegou a ficar aguardando fax, aguardando a resposta? DEPOENTE: Já. JUIZ: Quanto tempo, mais ou menos, a senhora se lembra, assim, que a senhora achou mais longo o prazo? DEPOENTE: Ah, até, assim, de até quatro horas. JUIZ: Até quatro horas esperando? DEPOENTE: Ahhã. JUIZ: E, enquanto isso, como que se comporta o médico, o paciente, o que o médico faz? DEPOENTE: A gente dá continuidade do medicamento, que o médico já está fazendo, né, e a gente aguarda se tem retorno, alguma coisa assim. [...] MP: A senhora disse que houve declarações e a senhora mencionou, na época, que trabalha como atendente do Hospital São Lucas. E aí, na época dos fatos, em 2004, a senhora teria atendido uma mulher que ganhou bebê, naquela ocasião, e essa criança teria nascido com problemas, começou a ficar roxa, segundo a senhora descreveu. DEPOENTE: Cianótica, o recémnato? MP: Isso. E aí o Dr. Sandro teria solicitado vaga para ela, lá, pela central de vagas, e parece que não conseguiu. DEPOENTE: Ah... MP: [ininteligível], então, resolveu levála para, se não me engano, Jales, no Estado de São Paulo, e essa criança veio a falecer lá em Jales. A senhora tem conhecimento desse fato? DEPOENTE: Eu me lembro. [...] Tem, realmente, tem, sim, tinha um recémnato. MP: No caso, então, essa criança, pelo que a senhora se recorda, ela precisava de um atendimento especializado? DEPOENTE: Isso. MP: Por isso que foi feito o pedido de vaga? DEPOENTE: Isso. MP: E esse pedido foi deferido? A vaga foi concedida pela central de vagas? DEPOENTE: Me parece que a família não esperou. MP: Quanto tempo demorou isso? DEPOENTE: Agora, no momento, não me recordo. A família não esperou e pegou por conta própria, me parece que foi assim. MP: Não esperou por quê? DEPOENTE: Não esperou a vaga. MP: Estava havendo algum tipo de demora? DEPOENTE: Estava. [...] JUIZ: Eles sempre respondem? DEPOENTE: Eles respondem, pedindo que a gente dá a continuidade mais fácil. JUIZ: Dá continuidade em quê? Então, não há resposta positiva...? DEPOENTE: Humhum (indicando negativa). JUIZ: Dá resposta negativa? DEPOENTE: É porque não tem a vaga, né? [falas sobrepostas] Insistir... JUIZ: Vamos entender. A ação, senhora, é exatamente porque não há vaga lá em Campo Grande. DEPOENTE: Isso. JUIZ: Eu quero saber: quando o médico encaminha e pede uma vaga, quanto tempo está a demora para dar a vaga, retornar positivamente, dar a vaga? A senhora não está entendendo, me parece. Qual é o prazo, o médico, o estado responde positivamente: “Pode mandar o paciente, tem vaga em Campo Grande”? DEPOENTE: Não. Já aconteceu de pedir vaga, assim, vamos supor, talvez ele pede, ali, faz e manda o fax, ali, por 8 horas, 9 horas da manhã, talvez tem 10 horas, 22 horas da noite, às 22 horas. JUIZ: Aí que vem a resposta positiva? DEPOENTE: Aí que vem a resposta positiva. JUIZ: E não acontece [ininteligível], quando o encaminhamento é por causa de urgência, esse prazo não bota o paciente em risco, do ponto de vista da senhora, como enfermeira? DEPOENTE: Eu acredito que sim. [...] – Abigail Oliveira da Silva, fs. 300-304.
Hilda Thereza Pavin Pereira, também funcionária do hospital, afirma haver demora para conseguir vaga, tem que ficar mandando mais de um fax e, enquanto a vaga não é deferida o paciente fica internado, aguardando, inclusive, há casos em que pacientes vieram à óbito por não terem sido atendidos com urgência, observem-se:
[...] JUIZ: A senhora sabe dizer qual que é a média de tempo quando o médico encaminha, pede a vaga em Campo Grande? A média de tempo no estado, a Secretaria de Saúde, quem é responsável para responder, responde, falando: “Pode mandar, que tem a vaga”? Quantas horas, quantos dias, qual que é a média? DEPOENTE: Que demora? JUIZ: Isso. DEPOENTE: Ai, doutor, não sei a média, não, mas é bem demorado. JUIZ: É bem demorado? DEPOENTE: É. JUIZ: Essa demora põe em risco a vida dos pacientes? DEPOENTE: Põe. JUIZ: A senhora tem idéia, por exemplo, do fato mais absurdo que a senhora pode, no conceito da senhora, dizer absurdo, que demorou para responder: “Pode mandar um paciente”? Tem um específico, um exemplo, a senhora se lembra de algum? DEPOENTE: Não, não lembro de algum assim, mas a gente vive ali dentro, a gente percebe. JUIZ: Chega a passar de um dia para o outro? DEPOENTE: Chega, chega. JUIZ: Chega passar de mais de dois dias, aguardando a vaga? DEPOENTE: Já teve casos que passou de dois dias já. JUIZ: E é possível... Ocorre também de ter que ficar encaminhando outros fax, tem que ficar repetindo? DEPOENTE: Tem. JUIZ: A senhora se lembra, por exemplo, de quantas vezes já foi necessário mandar fax, pedindo a vaga, ficar repetindo fax? DEPOENTE: Eu mesmo não entendia muito bem como fazia, aí fiquei, ficou eu e a Secretária, aí falei para ela: “Você vai. De hora em hora, você passa”. Aí eles ligaram da central de vagas para mim, que não era para ficar mandando muito fax, porque, de seis em seis horas, mudava o turno. Então, eu tinha passado de hora em hora, o tempo que eu estive lá dentro, 12 horas, eu fiquei passando. JUIZ: E a senhora passou esse, por exemplo, de hora em hora, porque a senhora gosta de passar fax ou porque a senhora via urgência no caso? DEPOENTE: Eu via urgência e eu não entendia muito bem, porque eu sou técnica de enfermagem. JUIZ: E qual a instrução que eles dão hoje, a respeito de pedido de vaga, como é que funciona? O médico fala: “Encaminha”, o que o hospital faz? Explica para mim. DEPOENTE: O médico faz o encaminhamento, solicita a vaga, passa o fax e fica aguardando. JUIZ: Enquanto isso, o paciente continua aqui? DEPOENTE: Fica internado. JUIZ: Há hipótese ou há possibilidade de pedir a vaga e já encaminhar o paciente de ambulância, por aí, ou não? DEPOENTE: Não. Não, porque não pode. Só [ininteligível], passando uma senha. Falando que saiu a vaga e passando uma senha. [...] JUIZ: Sabe se a criança da Rosimeire sofreu alguma coisa, teve algum problema de saúde, por conta do atendimento? A senhora sabe alguma coisa assim? DEPOENTE: Foi, inclusive essa criança... A vaga não saiu a tempo, não é? JUIZ: E ela veio a falecer? DEPOENTE: Veio a óbito, se for a mesma criança. JUIZ: É a filha de Sandra, é um fato ocorrido em 2005... Filha de Sandra, não, de Rosimeire. DEPOENTE: Foi parto do Dr. Sandro. JUIZ: A senhora falou lá que o Dr. Sandro estava nas dependências da clínica, a Enfermeira Abigail falou que a criança foi examinada pelo médico Quaranta(F), pelo cardiologista Rud(F) e o Dr. Sandro solicitou vaga em Campo Grande e em Três Lagoas. Não sabe onde foi conseguida a vaga... Aí a família acabou... O pai da criança acabou tirando a criança, de livre e espontânea, para ir atrás de médico. Ocorreu isso? DEPOENTE: Ocorreu, sim. [...] JUIZ: E a senhora sabe dizer se, pela instrução que existe no SUS, é obrigatória a tentativa de vaga em Campo Grande? DEPOENTE: É obrigatório. Porque o hospital aqui tem casos que... [...] MP: Nesse caso da menina que faleceu, não é, houve a demora. A demora, a senhora se recorda se foi de várias horas? A senhora lembra, mais ou menos, quanto tempo demorou? Na verdade, não houve resposta positiva do estado, não é? DEPOENTE: Não. [...] MP: E era um caso grave? DEPOENTE: Era um caso grave. A criança precisava de uma UTI Neonatal. MP: O fator de não ter a vaga de forma imediata pode ter contribuído para o óbito? DEPOENTE: Pode. [...] DEFESA-ESTADO: Quais os documentos que ela envia para a central de vagas? JUIZ: A senhora pode esclarecer? No fax, quando a senhora manda o fax, quais os documentos? DEPOENTE: Daí o médico faz o encaminhamento, explicando, mais ou menos, o jeito que tá o paciente, o estado do paciente, aí ele encaminha esse fax. JUIZ: Só isso? DEPOENTE: Só isso. E o médico lá da central de vagas que recebe, né, o encaminhamento, aí tem que aguardar. DEFESA-ESTADO: E quando ela passa o fax, o estado justifica por que não vai poder [ininteligível] naquele momento? JUIZ: Justifica ou nem dá a resposta? DEPOENTE: Não, eles justificam, falam que não tem vaga, fala que é para aguardar. JUIZ: A justificativa é que não tem vaga? DEPOENTE: É, que não tem vaga, é para aguardar. JUIZ: Eles justificavam imediatamente, dão um fax de volta, falando: “Não tem vaga”? DEPOENTE: Mandam o fax de volta. JUIZ: Mas não fala qual é a previsão de ter vaga? DEPOENTE: Não, sem precisão. JUIZ: Aí fica todo mundo aqui esperando, então, apreensivo? DEPOENTE: Fica esperando, aguardando o médico, né? JUIZ: E o médico, como que fica nessa, se a criança morrer na mão dele? O que a senhora sabe? DEPOENTE: É meio... Para a gente que trabalha, assim, na área da saúde, é meio triste, né, para a gente, para o médico, né? JUIZ: Mas só cabe ficar triste, não tem o que fazer? DEPOENTE: Lógico, porque a gente está ali para tentar salvar a vida, né? JUIZ: A senhora sabe exemplificar se já ocorreu, além dessa criança, outros fatos que a senhora acredita... O que a senhora está falando aqui é presunção da senhora, é subjetivo, não tem problema nenhum afirmar. A senhora acredita que outras pessoas morreram por conta desse atraso, essa falta de vagas, morreu no caminho? DEPOENTE: Eu acredito que sim, eu acredito que tinha que ter mais urgência, sim. Quando a gente solicita uma vaga, eles tinham que ser mais prestativos. [...] DEFESA-ESTADO: Esses pacientes, eles não teriam condições de ficar no hospital por 24, 48 horas, são realmente urgentes, urgentíssimos? JUIZ: Quando há o pedido, a senhora acha que é urgente mesmo? DEPOENTE: É urgente. O paciente fica no hospital, ele fica no hospital até... Se não vir a vaga no dia, eles começam a passar no outro dia, eles não desistem de ficar solicitando a vaga, eles jamais mandam o paciente para casa, ele permanece no hospital até sair a vaga. DEFESA-ESTADO: [ininteligível] tratamento. – Hilda Thereza Pavin Pereira, fs. 304-307.
Magda Consuelo Castro Rodrigues, médica, e ainda, por determinado período de tempo, Secretária de Saúde Municipal, afirma existir um problema muito sério em conseguir vaga para os pacientes com enfermidades graves, inclusive, narrou caso com riqueza de detalhes, de paciente que não conseguiu vaga e a família encaminhou-o para Rio Preto. Observem-se:
[...] JUIZ: A senhora pode esclarecer, exatamente, um resumo do que a senhora prestou de declarações lá e qual é a situação que foi narrada pela senhora e que tudo que a senhora sabe sobre saúde? DEPOENTE: Na época, eu ocupava o cargo de secretária de saúde do município, e a gente estava tendo um problema muito sério em relação a se conseguir vaga no estado para os pacientes de urgência e emergência. A gente não conseguia. Eu não me lembro o nome dos pacientes agora, mas me recordo bem de um caso que... Não me lembro se era Adriano o nome dele, não me lembro o nome do paciente, mas um rapaz que foi espancado, acho que até foi próximo de uma pizzaria, Recanto das Araras, acho que o caso era mais ou menos esse, foi espancado, e ele teve traumatismo craniano. Ele foi internado, foi o Dr. Carlos, na época, que prestou assistência para ele, ele foi internado e começou a ter uma piora muito intensa do quadro, ele precisava de uma ressonância, precisava de atendimento especializado. A gente não tentou, eu fiquei no hospital praticamente um dia inteiro, tentando vaga junto à central de vaga, até esse caso marcou muito, porque a gente não conseguiu, aí a família optou por levar particular para São José do Rio Preto, o Dr. Carlos Gerimonte acompanhou ele na ambulância, só que, chegando em Rio Preto, uma irmã dele disse que tinha conseguido uma vaga no Hospital de Base de São José do Rio Preto, que é um hospital público, só que, na verdade, o encaminhamento havia saído para a Beneficência Portuguesa, que era particular. Aí, o que aconteceu? A hora que deu entrada no Hospital de Base, que era um hospital público, sem encaminhamento para hospital público, sem consultar antes se tinha vaga, chamaram a polícia, fizeram um Boletim de Ocorrência e queriam prender o médico que estava acompanhando o paciente lá no carro. Então, o Carlos me ligou desesperado de lá, que ele estava lá, ia ser preso porque tinha acompanhado, o motorista mudou a direção do hospital porque a família pediu. O médico estava atrás, dando assistência na ambulância, ele não sabia, ele saiu para levar o paciente para um hospital particular e deram entrada num hospital público. JUIZ: E a senhora sabe dizer por que exatamente foi levado esse paciente para Rio Preto, se, antes disso, tinham tentado [ininteligível]? DEPOENTE: Tentamos várias vezes na central de vagas, até que não conseguia, e ele piorava, por isso que a família optou... Ele tinha uma irmã que morava em São José do Rio Preto, e a família optou por levar para lá, para a Beneficência, iam vender uma casa para pagar, foi isso que me disseram. JUIZ: É comum encaminhar a outros estados, como a senhora está dizendo, São Paulo, ou Goiás, Minas, estados vizinhos aqui, porque não consegue vaga em Campo Grande, ou não? DEPOENTE: É freqüente. O outro caso, que não me lembro se eu tinha citado para o Dr. Adriano, mas teve um outro caso até que foi uma fratura de fêmur que ficou vários dias também, a gente demorou para conseguir, acho que três ou quatro dias, não me recordo exatamente o número de dias, e, quando conseguiu a vaga, a família já tinha buscado para mineiros, em Goiás. Então, ele acabou nem indo para Campo Grande, quando liberou a vaga, né? Ele foi para Mineiros. [...] JUIZ: E qual que é o procedimento de quem está encaminhando de onde a pessoa está internada? Ela fica... DEPOENTE: Fica tentando, junto com fax, pedindo vaga e passando fax a todo o momento. JUIZ: E eles retornam o quê? DEPOENTE: A maioria das vezes não retornam. A gente pede para eles mandarem para a gente a recusa por escrito, eles falam que não podem fornecer porque não vão dar documento para a gente. Normalmente, é assim que funciona, a central de vagas-- JUIZ: Chegaram a dizer que não dão documento [ininteligível]? DEPOENTE: Sim. As meninas, as secretárias, que são quem passam os fax, a gente preenche, quando... O regulador, que é quem faz a regulação em Campo Grande, quando ele diz que não tem, muitas vezes, ele pede para falar com o médico, aí o médico que atende. Mesmo com o fax na mão, ele questiona alguns itens que, às vezes, não ficou muito claro no encaminhamento, aí ele pede para falar, aí a gente explica. Mas, normalmente, a gente não participa do contato telefônico, a gente participa quando realmente não consegue e você questiona de novo e fala: “Eu quero falar com o médico”. Dificilmente, eles passam para a gente. A gente, muitas vezes, como eu diria? Não seria a palavra certa “agredido”, mas a gente é maltratado por telefone, por quem atende a gente na central de vagas. Isso inúmeras vezes. [...] JUIZ: Então, só na urgência e emergência, a senhora daria que nota para a forma com que ele funciona, e não só a forma procedimental, mas o respaldo, mesmo, a vaga, a senhora daria que nota? DEPOENTE: Difícil. Cinco. JUIZ: A senhora dá essa nota exatamente por conta de dificuldades do próprio médico, que está preocupado com a saúde do paciente, problema até de responsabilidade civil, ou tem algum outro fator que influencia nessa sua conclusão negativa? DEPOENTE: Não... No geral, né, de um modo geral, todas as preocupações, a responsabilidade civil do médico também. Eu vivi, último caso que eu tive problema de vaga, inclusive, era um paciente particular. A minha preocupação maior é com relação ao nosso estado é que não é só o SUS que você não consegue vaga, em UTI, quando você precisa, o meu último caso, agora, foi um bebezinho recémnascido, com uma má formação, que tinha plano de saúde, plano bom de saúde, e que simplesmente não tinha vaga de UTI Neonatal no estado, não conseguia. Eu tive que ligar para o Secretário de Saúde de Campo Grande, que é o Dr. Mandeta(F), que eu conhecia pelas reuniões da Secretaria de Saúde, eu já estava fora da Secretaria de Saúde nessa época, e pedi para ele: “Pelo amor de Deus, eu preciso de um bebê aqui para operar, é um recémnato, má formação, você tem que arrumar uma vaga para mim”. A família estava quase que levando para o Estado de São Paulo, porque não se conseguia vaga. Então, não é só para os pacientes do SUS, o nosso estado tem uma rede de UTI deficitária, a quantidade de leito não é suficiente para todos os municípios. [...] MP: Então, esses casos pode gerar um gravame ou até um óbito? DEPOENTE: Com certeza. MP: Fora esse caso que a senhora citou, há uma constância, há uma... É constante a ineficiência da central de vagas, ou melhor, o não oferecimento de vagas em tempo hábil? É constante isso? [...] DEPOENTE: Era freqüente. Pelo SUS, era freqüente, com certeza, porque todos os casos acabavam sobrando para a gente, assim, né? Então, era freqüente. [...] DEFESA-MUNICÍPIO: Quando é um caso grave, o município sempre colocou imediatamente... A Secretaria de Saúde colocou à disposição do paciente, transporte, ambulância, para transportar imediatamente? Se houve retardamento do município(F). DEPOENTE: Que eu me recorde, não, mas é uma situação que pode ocorrer. De repente, se você tiver ambulância em três, quatro municípios, em trânsito, é uma eventualidade, pode acontecer de você ter três, quatro pacientes graves, as ambulâncias serem para todas. Mas, na minha época, eu acho que nunca aconteceu de não ter. JUIZ: A quantidade de ambulâncias que existem, a senhora acha que está-- DEPOENTE: Hoje, eu acho que é suficiente, sim. Hoje é suficiente. DEFESA-MUNICÍPIO: E quando o caso é grave, bastante grave, se a Secretaria coloca um profissional para acompanhar o paciente. DEPOENTE: Sim. Existe profissional contratado para fazer o transporte. [...] - Magda Consuelo Castro Rodrigues Ribeiro Castro, fs. 307-315.
Horacinda Nantes Coelho, funcionária do Hospital Santa Casa, afirma ser difícil conseguir vagas na Central em Campo Grande e o quadro do paciente piora em decorrência da demora, verbis:
[...] JUIZ: A senhora sabe informar se é difícil conseguir uma vaga na central de vagas em Campo Grande? DEPOENTE: Bastante. JUIZ: Sabe dizer a média de tempo para conseguir uma vaga? DEPOENTE: Até dias, já aconteceu. JUIZ: Qual é o caso mais extremo que a senhora lembra? Quantos dias demorou? DEPOENTE: Olha, doutor, são tantos casos, assim, fica difícil a gente lembrar, mas três, quatro dias já ocorreu da gente conseguir vaga. JUIZ: Se fizer uma média em relação de um pedido de vagas para outro, a senhora pode dizer que é mais fácil ou mais difícil conseguir vagas? DEPOENTE: Mais difícil. JUIZ: Sempre é mais complicado? DEPOENTE: Sempre é mais complicado. JUIZ: É raro ou é normal conseguir vaga imediatamente? DEPOENTE: É raro, a não ser quando é o caso... O caso Alfa(F), né, que é o código zero, esse, quando é extremo, mesmo, aí... [...] DEPOENTE: Não. O que a gente tem conhecimento, assim: quando é um caso extremo, extremo, aí é o código zero, esse é de imediato, só tem que... Avisa lá que está indo, mas, mesmo assim, ainda demora um pouquinho, um tempo, de eles liberar lá, mas coloca na ambulância e é o mais rápido. [...] JUIZ: A senhora sabe dizer a conclusão dos médicos sobre o caso, se é de urgência ou não, é sempre exata ou não pode dar nem essa conclusão, se é urgente, porque falta aparelhos médicos aqui na cidade, falta alguma coisa para concluir se o caso é urgente ou não? A senhora sabe esclarecer a respeito disso ou não? DEPOENTE: Eu acredito que alguma coisa sempre fica na dúvida, se é uma coisa transitória, se vai evoluir para pior, porque não tem melhores condições de diagnóstico, o nosso município é de média complexidade. JUIZ: Existem aqui aparelhos de raiosx modernos, coisas boas, ou não, é coisa antiga? DEPOENTE: É o básico, doutor, eu não sou conhecedora... JUIZ: A senhora não entende muito disso? DEPOENTE: Disso eu não posso falar para o senhor, mas é o básico. JUIZ: Ultrassonografia... Sabe se tem aparelho de ultrassonografia? DEPOENTE: Sim, mas nem todo o diagnóstico pode ser dado por esses aparelhos. [...] DEPOENTE: Não houve. Inclusive, na época - eu não posso precisar aqui para o senhor, é tanta coisa -, eu acredito que a gente deixou um documento, junto com o Ministério, da justificativa da entidade que recebeu o paciente lá, o porquê não ia receber, mesmo sendo um caso Alfa(F), que o doutor ia se deslocar daqui, numa ambulância, e poderia acontecer de chegar lá e o paciente ficar numa maca de corredor, e o caso dele não era para isso, né, já era para... MP: Pelo que eu entendi, mesmo ele sendo um desses casos Alfa(F), ele não teve a vaga? DEPOENTE: Foi colocado para o doutor que o paciente ia chegar lá e ia ficar numa maca num corredor, que ele... MP: Ou seja, não ia ter a vaga? DEPOENTE: Não ia ter uma vaga, não tinha uma vaga garantida, porque o paciente só pode sair daqui com uma senha para o hospital que vai levar, aí que se coloca na ambulância e... MP: Então, esse exemplo e outros casos graves, ocorrem de não conseguir a vaga de forma imediata? DEPOENTE: Ocorre. MP: Nesses casos, o paciente pode ter um gravame, ele pode vir a óbito, em razão dessa demora? DEPOENTE: Olha, doutor, esses termos eu não sei falar para o senhor, mas eu acredito que, quando o caso é grave, se não tem um atendimento imediato, as seqüelas são cada vez maiores, não é? MP: As seqüelas são cada vez maiores para a saúde dele, pode chegar até ao falecimento. DEPOENTE: Isso. [...] DEPOENTE: Olha, doutor, a gente tem muito caso de acidente vascular, porque, como eu falei para o senhor, o nosso município é de média complexidade, nem atender eu não sei se nem... Vou estar entrando num assunto que nem... Mas eu acho que é pertinente. Nós não temos o serviço aqui no município, o hospital nem receber pelo SUS, por esse atendimento, não recebe, porque, pelas normas, Legislação do SUS, os procedimentos... Tem que ter um especialista para poder... Então, o médico presta o atendimento, os casos que têm que encaminhar, encaminha e aqueles que, às vezes, pode ser resolvido aqui, é feito. Às vezes, o paciente fica dez dias no hospital, o hospital não recebe por esse procedimento, por não ter o serviço, um médico especialista no município. [...] DEFESA-ESTADO: Salvo engano, você falou que a média para conseguir a vaga seria de quatro a seis horas. Nesses casos, o paciente fica no hospital... DEPOENTE: Fica fazendo o tratamento, o suporte que a gente tem condição de dar é feito todo o atendimento, o exame que pode ser realizado, tudo o que tem. O que a gente pode oferecer para o paciente, é feito. DEFESA-ESTADO: Durante esse tempo que ele fica no hospital, você acha que prejudica a condição dele? DEPOENTE: Eu acredito, doutor, se o paciente, se ele tem, se é um caso cirúrgico, se é um caso... Quanto mais tempo ele demora, até porque a gente está longe de Campo Grande, até que se consegue a vaga, até que você se locomove até lá, isso, para o paciente, é cada vez mais prejudicial. [...] - Horacinda Nantes Coelho, fs. 315-319.
O médico Sandro Roberto Esquerdo afirma ter muita dificuldade em conseguir vagas para os pacientes e em razão da demora o paciente pode chegar no local, quando o caso, já sem vida, observem-se:
[...] JUIZ: Doutor, esse caso é a respeito da central de vagas em Campo Grande, é uma ação civil pública do Ministério Público contra o estado, para fazer com que a central de vagas atenda os pacientes encaminhados. O senhor é médico. O senhor sabe dizer a respeito de como funciona essa central de vagas? Se é de pronto-atendimento, se conseguem as vagas? O que o senhor sabe falar? DEPOENTE: O funcionamento dela depende de quando a gente solicita a vaga, através de um fax que a gente envia, tem um protocolo, e, realmente, o funcionamento, a resposta disso é deficitária, né, nunca... A gente tem uma dificuldade muito grande em conseguir vagas, quando consegue, né, vagas. E o que eu acho, ainda pior de tudo, é pela distância nossa da central de referência, que é Três Lagoas ou Campo Grande, que, devida a demora grande já, que existe, na central de vagas, depois, a gente consegue ter uma demora muito grande pro paciente chegar no local, prejudicando totalmente a continuidade do tratamento. JUIZ: O senhor sabe quantas horas demora a ambulância daqui a Campo Grande? DEPOENTE: Olha, eu acredito que em torno de umas quatro horas. JUIZ: Em média, qual é o tempo que consegue a vaga, ter uma resposta positiva, falando: “Pode mandar”? DEPOENTE: Quando consegue? JUIZ: Quando consegue, a gente está falando. DEPOENTE: Doutor, eu não lembro de ter conseguido uma vaga por menos de quatro horas, cinco horas, às vezes, não lembro, nunca vi. JUIZ: Aí somase, então, esse tempo que demora para conseguir a vaga mais o tempo de viagem depois. DEPOENTE: De locomoção. JUIZ: O senhor acha que isso coloca em risco bastante o paciente? DEPOENTE: Muito. JUIZ: Quando encaminha, quando pede a vaga, já é caso de urgência, ou, na dúvida, vai encaminhando qualquer coisa para lá, ou não? DEPOENTE: Nós nunca encaminhamos qualquer coisa, às vezes a gente encaminha um paciente, solicita... Existem algumas especialidades, por exemplo, neurologia, que é um grande déficit nosso aqui, que, quando você pega um trauma de crânio, a gente não sabe o que está acontecendo com o paciente, além da clínica, né? Então, às vezes, você tem que fazer uma tomografia, solicitar uma avaliação do neurologista. Esse paciente, ele pode estar consciente, mas, se fica... Não todos os casos. Mas, às vezes, você tem uma suspeita de alguns casos de que, se você segurar o paciente, esse paciente pode agravar, e aí, devido ao tempo de locomoção, esse paciente... Pode prejudicar a saúde desse paciente. Então, acontece, muitas vezes, de você encaminhar um paciente, um trauma de crânio, que possa chegar em Campo Grande, no caso, se for Campo Grande, chegar e realmente não ser nada. Mas nós não temos como dizer para a família, para o paciente, garantir que ele não vai piorar, porque o trauma de crânio, ele, às vezes, demora um tempo. O paciente chega consciente no hospital, e a evolução dele demorar. Então, nós nunca encaminhamos quem não precisa. Sempre tem um motivo para que encaminhar. [...] DEPOENTE: Não, é um descaso muito grande, eu acho que nós, como médicos, nós sofremos muito, porque a gente está junto com o paciente aqui, a família junto, cobrando do médico uma resposta, a gente fazendo o que pode fazer, e a gente liga na central de vagas, e eles não dão resposta ou eles mandam a gente passar outro fax no outro plantão, fala que não há vaga, que não tem como responder, que não tem como atender. Às vezes, a gente chega até discutir com o regulamentador da vaga, mas a gente passa o fax, liga para eles, cobrando isso daí, tá? Então, eu acho que há um descaso muito grande para nós do município, principalmente para nós aqui, que tem uma distância muito grande da capital, que é a central de referência do SUS. JUIZ: Mas, nos outros estados, o senhor sabe como é que funciona os encaminhamentos do interior para os locais mais modernos, onde tem-- DEPOENTE: Pelas conversas que eu tenho com colegas que trabalham em outros estados, não há esse problema. Eu sei que, por exemplo, tem os médicos que trabalham em Itajá ou Guaporé, ali, que dizem que é só ligar e mandar, que não tem por que ficar justificando, pedindo vaga, haja vista que nós não temos condições de atender quadro aqui de alta complexidade. O hospital, aqui, é de média complexidade. JUIZ: O senhor acredita que, se houvesse mais aparelhagem nos hospitais de ponta ou ainda que não tão caras, pudesse minimizar, ou melhor, em vez de minimizar, pudesse diminuir os casos em que os médicos concluem que é emergência? Às vezes é remetido coisas para a emergência; às vezes têm a dúvida porque não há a aparelhagem suficiente para fazer exames. O senhor acredita que, se melhorasse essa aparelhagem, haveria menos encaminhamento? DEPOENTE: Sim. Acredito que sim, mas, às vezes, tem certos aparelhos que podem se tornar ociosos no interior, é uma coisa que, pra discutir, é complexo. Por exemplo, às vezes, você vai comprar um aparelho de ressonância aqui no interior para fazer um exame de vez em quando, fica mais oneroso para o estado do que aceitar um paciente, realmente, na capital, que já encaminhasse. Se o senhor pegar, fazer um levantamento, quantos pacientes encaminhados que há necessidade no caso de urgência, não falo paciente seletivo, falo de urgência, às vezes receber um ou outro paciente por mês. [...] - Sandro Roberto Esquerdo, fs. 319-325.
Por fim, disse Eduardo Santos Rodrigues, coordenador da “Central de Vagas” em Campo Grande-MS, reconhecer que a rede de atendimento do Estado está necessitando de investimento em algumas especialidades, não há investimento, nos municípios do interior, em especialidades médicas, às vezes nem na rede particular não existe vaga, verbis:
[...] efetuou o levantamento, esclarecendo que a função da Central de Vagas que é política do Sistema único de Saúde, é justamente o de agilizar a colocação do paciente na vaga adequada, pois encaminhando-se o pedido à Central de Vagas, esta com o controle que tem do número de vagas disponíveis e suas especialidades, pode alocar o paciente muito mais rápido do que por exemplo o encaminhamento a um hospital que nem mesmo tem aquele tipo de atendimento. Esta é a finalidade. Reconhece que a rede de atendimento do Estado está necessitando de investimentos em algumas especialidades, pois está se constituindo um problema adequar oferta e demanda. Ou seja, muitas vezes a vaga pretendida não existe. O médico que trabalha na Central pode determinar a remoção do paciente mesmo sem a existência da vaga em atendimento à situação do paciente, casos de sofrimento ou risco de vida, em procedimento que se chama Vaga Zero, tudo com base em critérios médicos. Ou seja, significa que o caso justifica medicamente a saída do paciente de um hospital onde tem toda a comodidade mas não a especialidade necessária, como por exemplo neurocirurgia, deslocando este paciente para um colchonete no corredor da Santa Casa de Campo Grande, onde existem neurocirurgiões, embora no caso não exista a vaga. Tudo isto é feito mediante senha, e o maior embate ocorre entre o prestador de serviço, no caso, o hospital, e a administração pública. Alguns médicos que trabalham na Central já foram representados no Conselho Regional de Medicina, de forma reiterada. Esta é a situação na atualidade, enfatizando que os municípios do interior não investem em especialidades médicas, deslocando os pacientes, principalmente neurocirurgia, cardiologia, ortopedia e UTI Neonatal. [...] A sugestão de que a rede pública deveria comprar a vaga na rede particular é seguida quando necessária, ou seja, quando extrapola o número de vagas na rede pública. Ocorre que às vezes nem na rede particular existe a vaga para comprar. Exemplo no último final de semana, a Samu tentou comprar uma vaga na rede particular e não estava disponível. Existe a possibilidade de tratamento fora do domicílio, como por exemplo, outra Estado, mas somente pode ser concedida quando o tratamento pleiteado não existe no nosso Estado. Quando não existe a vaga, não é o caso. Quando não é caso de atendimento fora do domicílio ou de deferimento da vaga zero, deve o paciente aguardar na sua cidade até a disponibilidade de vaga. No caso da vaga zero, a central reguladora funciona 24 horas por dia e existe contato direto com o médico solicitante, que deve explicitar a situação do paciente para justificar a vaga zero. A norma do sistema de saúde é que no caso de vaga zero o hospital deve receber o paciente de qualquer maneira, nos termos da Portaria 2048. O hospital, neste caso, teria que atender, mesmo que o paciente estivesse no corredor. A partir do momento em que é concedida senha, seja no atendimento normal, seja na vaga zero, está garantida a vaga do paciente. Quando o paciente vem à revelia do sistema de regulação de vagas, vai enfrentar a possibilidade de encontrar ou não a vaga e a central reguladora nem mesmo vai ter conhecimento da existência deste paciente - Eduardo Santos Rodrigues, fs. - fs. 342-3.
Essas foram as provas orais produzidas.
Os depoimentos convergem a uma única conclusão: o atendimento da central de vagas, de incumbência do Estado, é demorado, isto, quando ocorre em tempo hábil, o que inclusive leva a família do paciente a se desesperar e procurar, sem qualquer organização, até outros Estados da Federação, entretanto, nem sempre essa atitude gera resultados positivos, como nos casos acima mencionados.
Demorado, inclusive, porquanto o Município de Cassilândia é distante da capital, o que demandaria mais agilidade na liberação das vagas.
Abre-se parêntese para destacar que esta cidade fica às margens do Rio Aporé, e assim faz divisa com o estado de Goiás, cuja capital fica mais perto daqui do que a própria capital do Estado, Campo Grande. Destarte, no Estado de São Paulo, há São José do Rio Preto, um grande centro médico, também muito mais perto de Cassilândia do que Campo Grande.
É desesperadora a situação pela qual passam as famílias dos enfermos que necessitam de tratamento especializado de incumbência do Estado.
Da mesma forma, a vida do médico local, que fica de mãos atadas, eis que encaminha o paciente quando é necessário, e não consegue pôr em prática o encaminhamento.
E é fato: infelizmente essa angústia acaba em tristeza ainda maior pela perda do familiar, conforme verificado nos depoimentos.
Não obstante o Estado alegue em defesa que o Sistema Único de Saúde está funcionando normalmente, tal como previsto na Constituição Federal, observa-se nos autos, casos em que mesmo o paciente sendo considerado Vaga Zero, ainda assim não obteve vaga e inclusive disseram na Central que não era para remover o paciente porque, se o levassem, este ficaria dentro da ambulância, e nem mesmo o mísero colchonete que o coordenador da Central de Vagas, menciona lhe seria ofertado.
Havendo provas suficientes dos fatos descritos na petição inicial, passa-se a analisar o direito tutelado.
O acesso à saúde foi elevado à condição de direito fundamental do homem, sendo incontroverso o dever do Poder Público, assim entendidos a União, os Estados-membros, o Distrito Federal e os Municípios, em disponibilizar serviços de saúde pública a todos os cidadãos.
A responsabilidade por isso é solidária.
A Constituição Federal, em seus Arts. 196 e 198 assim dispõe:
Art. 196. A saúde é o direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I – descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II – atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III – participação da comunidade. § 1º. O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes.
Do mesmo teor a Lei Federal 8.080/90 (Lei Orgânica da Saúde):
Art. 2.º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.
Art. 4.º O conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, constitui o Sistema Único de Saúde (SUS).
Observa-se então, que a inexistência do tratamento necessário para salvaguardar o paciente nesta localidade, não pode ser óbice ao serviço de saúde, ainda mais considerando que o SUS não envolve apenas o Município, inclui Estado e União, os quais não podem quedar-se omissos, quiçá quando o Estado réu, por meio dos pactos e contratos, se obriga e recebe pelos tratamentos médicos em questão.
Se há alguma falha no serviço público, tal não pode ser oposta contra o cidadão que busca simplesmente seu direito ao pleno atendimento à saúde.
Não como negar que saúde seja um direito fundamental do cidadão. Como tal, não pode o cidadão passar por situações como as decritas nos autos.
É obvio que ao agir assim, o Estado não está respeitando o direito fundamental à saúde, aliás, não está respeitando direito algum.
O que ele faz é tratar o ser humano como se fosse uma coisa, um estorvo, um ser inanimado, um irracional para o qual basta “garantir” direitos no papel, sem necessidade de implementação de políticas públicas que consubstanciem tais direitos.
O dilema porque passam os médicos, os pacientes e a família destes pode muito bem ser sopesado nos fatos narrados nos autos, inclusive nos depoimentos.
É necessário cumprir o que prevê a Constituição Federal, que não é simplesmente uma carta de intenções. É uma norma de conduta, e lei máxima de um país, que por séria que é, deve garantir dignidade ao seu cidadão, não apenas formalmente.
No Brasil, o direito à vida e à existência digna é refletido, entre outros aspectos, pela obrigação atribuída ao Estado no seu dever de formular e implementar políticas públicas que garantam aos cidadãos o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar.
O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação, no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde.
Dessa forma, o Estado deve assumir uma postura consciente de seu dever-poder de proteção e promoção da dignidade humana, aqui exemplificada pela tutela do direito à saúde, já que, sem os bens de saúde, torna-se inimaginável a própria conservação da vida, quanto mais de uma vida digna, saudável.
A Constituição é muito clara: o direito à saúde deve ser realizado através de políticas públicas. E essas políticas públicas precisam ser preservadas.
Todavia, não se pode deixar um ser humano morrer à míngua simplesmente porque não tem dinheiro para arcar com o tratamento. O interesse público deve sim prevalecer sobre os interesses particulares. Mas não sobre os seus direitos mínimos, que são a própria razão da existência de uma sociedade.
A matéria, portanto, recebe tratamento de direito inalienável da pessoa humana, pois a Constituição Federal consignou a obrigação de Estado propiciar ao homem o direito fundamental à saúde, consagrando o Sistema Único de Saúde – SUS como responsável pelas ações e serviços públicos de saúde, composto por uma rede regionalizada e hierarquizada, e organizado de acordo com a descentralização, prestando serviço de atendimento de forma integral, ou seja, a assistência à saúde deverá seguir as diretrizes estabelecidas constitucionalmente, de forma ampla e universal, sem restrições por Autoridades Administrativas, no sentido de reduzi-lo ou dificultar o acesso a essa garantia constitucional.
Veja-se a jurisprudência:
Administrativo. Moléstia Grave. Fornecimento Gratuito de Medicamento. Direito à Vida e à Saúde. Dever do Estado. Direito Líquido e Certo do Impetrante.1. Esta Corte tem reconhecido que os portadores de moléstias graves, que não tenham disponibilidade financeira para custear o seu tratamento, têm o direito de receber gratuitamente do Estado os medicamentos de comprovada necessidade. Precedentes.2. O direito à percepção de tais medicamentos decorre de garantias previstas na Constituição Federal, que vela pelo direito à vida (art. 5º, caput) e à saúde (art. 6º), competindo à União, Estados, Distrito Federal e Municípios o seu cuidado (art. 23, III), bem como a organização da seguridade social, garantindo a “universalidade da cobertura e do atendimento” (art. 194, parágrafo único, I).3. A Carta Magna também dispõe que “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (art. 196), sendo que o “atendimento integral” é uma diretriz constitucional das ações e serviços públicos de saúde (art. 198).4. In casu, não havendo prova documental de que o remédio fornecido gratuitamente pela administração pública tenha a mesma aplicação médica que o prescrito ao impetrante – declarado hipossuficiente -, fica evidenciado o seu direito líquido e certo de receber do Estado o remédio pretendido.5. Recurso provido. (RMS n.2003/0202733-4, 2ª Turma, Rel. Ministra Eliana Calmon, j.14.09.2004, DJ 22.11.2004 p. 293).
O direito à saúde representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar - políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas - representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional [...]. 9 9. STF, REsp 27.1286 AgR/RS, 2ª T., Rel. Min. Celso de Mello, DJU 24.11.2000, p. 101.
É urgente uma tomada de decisão por parte dos responsáveis pela implementação do SUS. Ao invés de se justificar a ausência de políticas públicas adequadas na área da saúde pública, em razão de uma suposta "escassez" de recursos, cumpre que a Constituição seja sentida como um compromisso democrático a ser cumprido.
Mister que haja um sentimento constitucional fraterno, que norteie a implementação de políticas públicas que viabilizem a fruição deste direito e, assim, impeça que cidadãos sofram e/ou venham ter interrompido o seu ciclo vital, pela falta de serviços mínimos de saúde.
Ademais, sobre a responsabilidade do Estado, destaque-se que haver entre ele e o Município, acordo realizado para organização e controle do acesso à saúde, de acordo com as peculiares locais.
Por meio desse acordo, fixou-se o Estado, a pessoa competente para a Central de Regulação do Acesso à Saúde.
Ou seja, ainda que os pacientes sejam atendidos nesta cidade, em hospitais conveniados ao SUS, certo é, que compete ao Estado a regulação do acesso aos hospitais especializados, que fornecem o tratamento adequado às pessoas que efetivamente necessitem, tudo, a fim de evitar que mortes ocorram, agravamento do quadro clínico, o que de fato, vem ocorrendo.
Destaque-se quanto a este acordo, o que disse o Ministério Público em suas alegações finais:
No caso desta ação, estamos diante de tratamentos que exigem especialidades e estruturas não existentes neste pequeno Município (com cerca de 22.000 habitantes), e cuja responsabilidade é do Estado de Mato Grosso do Sul, administrador da citada “Central de Vagas” ou “Central Reguladora”, inclusive por conta daquilo que se denominou “contratualização”, ou pactos em prol da saúde.
Neste ponto faremos uma breve explanação.
Evidente que em um pequeno Município não é possível serem oferecidos todos os tratamentos de saúde ao cidadão, muitos demandam recursos incompatíveis com a própria receita do ente local.
Por tal razão, e para operacionalizar o Sistema Único de Saúde – SUS em todo o território nacional, de forma a não ser privilégio dos grandes centros urbanos, foi estabelecido o que se chamou “processo da Programação Pactuada e Integrada da Assistência em Saúde”, por meio da Portaria nº 1.097, de 22 de maio de 2006, do Ministério da Saúde (em anexo).
Citado processo, que “tem por objetivo organizar a rede de serviços” (art. 1º, p.ú.), prevê os “pactos” entre os gestores (estadual e municipal) “para garantia de acesso da população aos serviços de saúde” (art. 1º).
Também prevê como objetivo da “Programação Pactuada e Integrada”, a PPI, “buscar a equidade de acesso da população brasileira às ações e aos serviços de saúde em todos os níveis de complexidade” (art. 3º, I).
E tal processo de “pactuação” é coordenado pelo próprio Estado junto aos demais gestores municipais, definindo-se, assim, o que caberá ao primeiro e o que será afeto aos Municípios na prestação de serviços à saúde (art. 4º, II).
E para melhor viabilizar tal divisão de tarefas, foi instituída, no âmbito do SUS, a Portaria GM nº 1.559, de 1º de agosto de 2008 (em anexo).
Esta institui a “Política Nacional de Regulação do Sistema Único de Saúde – SUS”, que tem como objeto, também, a organização e o controle do acesso aos serviços de saúde, conforme “pactuação estabelecida no Termo de Compromisso de Gestão do Pacto pela Saúde”.
E prevê que a “Regulação da Atenção à Saúde”, a cargo do “gestor estadual” (art. 4º, IV), se fará por meio da “contratualização de serviços de saúde” (art. 4º, III).
Em síntese: para existir o acesso integral da população aos serviços de saúde, Estados e Municípios se organizam e “pactuam” os serviços que ficarão a cargo de cada um, de acordo com as peculiaridades locais. Estabelecem as denominadas “contratualizações”.
E compete ao Estado réu, por meio do que se denominou “regulação de acesso”, a cargo do chamado “Complexo Regulador”, formado por unidades operacionais denominadas centrais de regulação (art. 6º, §§ 3º e 4º), gerenciar o acesso às internações e demais procedimentos de sua responsabilidade (contratado), sempre se atendo à atribuição de “garantir o acesso aos serviços de saúde de forma adequada” e “garantir os princípios da equidade e da integralidade” (art. 8º, § 1º, I e II).
Como se vê, a Portaria GM nº 1.559, de 1º de agosto de 2008, é cogente e determina o acesso integral à saúde, competindo ao Estado réu organizar o processo de Programação Pactuada e Integrada junto com os gestores municipais, “pactuando” aqueles serviços que administrará. Tais “pactos” ou “contratualizações”, destaque-se, são dinâmicos, variando conforme a gradativa evolução no atendimento local.
E a presente ação, frise-se, busca a tutela jurisdicional para estes casos cujos atendimentos são ou forem “contratados” pelo Município junto ao Estado, ficando a cargo deste.
Não se pretende obrigar o Estado a realizar algo que compete ao Município (quando legítima a recusa), mas sim de obrigar o Estado réu a fazer o que é de sua atribuição, e de forma adequada.
E se o Estado não dispõe de vaga para o atendimento necessário e emergencial, cujo procedimento lhe compete, deverá providenciá-la a suas expensas, até que possa proporcioná-la em estabelecimento público ou conveniado ao SUS.
O direito à saúde, notadamente nestes casos de elevada gravidade – urgência e emergência – deve ser efetivado pelo Poder Público de forma integral (art. 198, II, da CF/88), e somente assim ocorrerá se de fato for em caráter de urgência e emergência – imediato.
Aspectos burocráticos não podem servir para legitimar uma omissão que mata e transgride direito fundamental. Relembremos, ainda, a própria redação do art. 197 da CF/88. – fs. 376-9, Destacado.
Em que pesem os argumentos do Estado, de que, com a presente ação, estaria ofendendo ao princípio da igualdade – porque na Administração Pública é vedado tratamento privilegiados – destaque: não se busca tratamentos privilegiados aos morados desta cidade, busca-se, tão-somente, a efetivação de um direito constitucionalmente garantido à população.
Ressalta o Ministério Público:
Esclarecemos, ainda, que não buscamos com a presente ação qualquer tratamento privilegiado aos cidadãos do Município de Cassilândia.
Busca-se, somente, seja efetivado o direito fundamental à saúde, e este não existirá se o atendimento for inadequado ou muitas vezes ineficaz dada a letal morosidade.
Nunca se pensou, com a interposição da presente ação, conferir algo “diferenciado” aos cidadãos locais. Apenas presenciamos o drama daqueles que, sem recursos, viam seus entes queridos padecerem pela omissão do Estado réu em providenciar o atendimento que lhe competia. Não podíamos ficar inertes.
Não é justo buscar a tutela jurisdicional quando um direito fundamental, trazido pela Constituição Federal, está sendo negado ao cidadão? Há o direito, há a lesão ao direito, logo, a tutela é devida.
Vimos na mídia, recentemente, a compra de leitos de UTI na rede privada, em Campo Grande/MS, para por fim às filas naquela cidade. Magnífico, mas, e nas regiões menos assistidas por recursos humanos e técnicos, onde compete ao Estado os tratamentos mais complexos, a ser oferecido em outros centros, poderia ser legítima sua omissão, a qual inegavelmente comprovada nestes autos?
Não vemos o fortalecimento do Sistema Único de Saúde – SUS em mencionada atuação deficitária. – fs. 379-380 – Destacado.
Enfim, se ao Estado Brasileiro é imposto até o fornecimento de medicamento, com muito mais propriedade, impõe-se-lhe o fornecimento de tratamento médico com as respectivas internações, na exata medida da necessidade conforme recomendação médica a cada caso.
Se da divisão de obrigações entre os entes federados, decorre prejuízo ao cidadão, impõe-se ao Estado Brasileiro a solução do problema.
Sobre a defesa do Estado, não há que se falar em aplicação da teoria da reserva do possível, vez que o fornecimento de um ou vários medicamentos a uma pessoa, que de fato necessita, não tem o condão de lesar os cofres públicos. E por isso mesmo, perfeitamente possível que o Estado resguarde os interesses de pessoas desprovidas de satisfatória situação econômico-financeira.
Destaque-se ainda, que o respeito à vida deve prevalecer em detrimento do interesse financeiro do Estado, conforme entendimento jurisprudencial, verbis:
Entre proteger a inviolabilidade do direito à vida, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado pela própria Constituição da República (artigo 5º, caput), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo – uma vez configurado esse dilema – que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: o respeito indeclinável à vida. PETMC 1246/SC.
Em relação à alegação do efeito multiplicador das decisões como a dos autos, é importante esclarecer que somente ocorre em razão da conduta omissa do Estado que inconseqüentemente ignora as garantias constitucionais, tornando necessária a urgente correção de sua postura via judicial.
Da mesma forma deve ser rejeitado o argumento de violação do princípio da Tripartição dos Poderes, eis que demonstrado que a presente prestação jurisdicional tem por fim único adequar a realidade fática visualizada à previsão constitucional estabelecida no Art. 196 da Constituição

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