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Cassilândia: 1ª parte da decisão sobre ex-prefeito e ex-servidores

TJMS - 11 de agosto de 2010 - 09:45

26.7.2010

Segunda Turma Criminal

Apelação Criminal - Reclusão - N. 2009.032671-2/0000-00 - Cassilândia.
Relator - Exmo. Sr. Des. Claudionor Miguel Abss Duarte.
Apelante - Waldimiro José Cotrim Moreira. Advogado - Ailton Luciano dos Santos. Apelante -Jorge Yoshishilo Kobayashi. Advogado -Amim Antonio Fonseca. Apelante -José Donizete Ferreira Freitas. Advogado - Antonio Cezar Lacerda Alves. Apelante - Ivete Rocha Vargas de Souza. Advogados - José Maria Rocha e outro. Apelante - Ronilda Ribeiro Machado. Advogada - Adailda Lopes de Oliveira Olanda. Apelado - Ministério Público Estadual. Prom. Just. - Aline Mendes Franco Lopes.

E M E N T A – APELAÇÃO CRIMINAL – PECULATO – DESVIO DE DINHEIRO PÚBLICO PARA PAGAMENTO DE DÍVIDA PARTICULAR – PAGAMENTO ANTECIPADO DE COMBUSTÍVEL – ART. 1.º, I, DECRETO-LEI 201/67 – MATÉRIAS PREJUDICIAIS AO MÉRITO – VERBA DO FUNDEF – INCOMPETÊNCIA DE JUÍZO – PRERROGATIVA DE FUNÇÃO – ART. 84, §§ 1.º E 2.º, CPP – INCONSTITUCIONALIDADE RECONHECIDA PELO STF – ADI 2797 – JUSTIÇA FEDERAL – ERRO NA PROPOSITURA DA AÇÃO – EVENTOS LIGADOS À LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA – INDEPENDÊNCIA DAS ESFERAS CÍVEL E CRIMINAL – IMPRESTABILIDADE DOS ELEMENTOS PROBATÓRIOS ANTERIORES À DENÚNCIA – INQUÉRITO POLICIAL – PARTICIPAÇÃO DE MEMBROS DO MINISTÉRIO PÚBLICO – VALIDADE – DECRETO-LEI 201/67 – NORMA ANTERIOR À CONSTITUIÇÃO DE 1988 – PRINCÍPIO DA LEGALIDADE – RECEPÇÃO PELA NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL – BIS IN IDEM – CONDENAÇÃO ANTERIOR POR PECULATO – FATOS DIVERSOS – IMPOSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO – INDENIZAÇÃO À VÍTIMA – ART. 387, IV, CPP – ARBITRAMENTO NA SENTENÇA – INEXISTÊNCIA DE PEDIDO – DECISÃO ULTRA PETITA – NULIDADE PARCIAL DA SENTENÇA CONDENATÓRIA – MÉRITO – PAGAMENTO ANTECIPADO DE DESPESA PÚBLICA – LEI 4.320/64 – AUSÊNCIA DE HIPÓTESES LEGAIS DE ADIANTAMENTO – PROCEDIMENTO EXPRESSO EM LEI – DOLO ANALISADO, CASO A CASO – CONDENAÇÃO DEPENDENTE DE LASTRO PROBATÓRIO – REDUÇÃO DE PENA-BASE – CIRCUNSTÂNCIA JUDICIAL DUPLAMENTE VALORADA – BIS IN IDEM CARACTERIZADO – SITUAÇÃO IDÊNTICA DO CO-RÉU – ART. 580, CPP – EFEITOS ESTENDIDOS, EX OFFICIO – PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE SUPERIOR A 4 ANOS – IMPOSSIBILIDADE DE FIXAÇÃO DE REGIME ABERTO E DE SUBSTITUIÇÃO POR PENA RESTRITIVA DE DIREITOS – EMENDATIO LIBELLI – ART. 383, CPP – ABSOLVIÇÃO DO PREFEITO MUNICIPAL – ADEQUAÇÃO TÍPICA AO ART. 312, CP – SENTENÇA PARCIALMENTE ANULADA E, NO RESTANTE, PARCIALMENTE, REFORMADA.
Não há que se falar em foro por prerrogativa de função, após o término do mandato do Prefeito Municipal, com base nos §§ 1.º e 2.º, do art, 84, do CPP, eis que a inconstitucionalidade destes dispositivos legais já foi reconhecida pelo Plenário do STF (ADI 2797).
Não obstante o FUNDEF ser composto por verba oriunda da União Federal, não há que se falar em competência da Justiça Federal para processamento e julgamento da acusação de peculato, eis que a verba já havia sido transferida e incorporada ao Erário Municipal (Súmula, 209, STJ).
Ainda que os eventos narrados na denúncia possuam ligação com a Lei de Improbidade Administrativa, não há nenhuma ilegalidade na condenação criminal, ante à independência existente entre as esferas cível e criminal.
A participação de membros do Parquet nas investigações policiais não invalida as evidências colhidas. A discussão jurisprudencial existente é referente à validade de elementos informativos colhidos em procedimento administrativo investigativo instaurado pelo Promotor de Justiça. Todavia, a participação de membro do Ministério Público na produção de elementos probatórios, em sede de Inquérito Policial, é perfeitamente admissível.
O fato de o Decreto-lei n.º 201/67 ter sido produzido em período anterior à promulgação de nova Constituição não lhe retira a validade. A legislação anterior que for compatível com as diretrizes da nova ordem constitucional deve ser recepcionada. Precedentes do STF.
Não há bis in idem pelo simples fato de ocorrer nova condenação pelo mesmo tipo penal, se os fatos narrados em cada denúncia são diversos. Ainda que as condutas delitivas sejam semelhantes, havendo multiplicidade de fatos criminosos, deve-se reconhecer a validade de múltiplas condenações.
O art. 387, IV, do CPP, com redação dada pela Lei n.º 11.719/08, possibilita a fixação de quantum destinado à reparação dos danos causados à vítima, na sentença penal condenatória. Entretanto, é imprescindível o respeito aos princípios da inércia da jurisdição e da ampla defesa. O arbitramento de quantum na sentença, sem nenhum pedido ou defesa das partes durante todo o processo, torna a decisão ultra petita e deve ser excluído da decisão.
A Lei 4.320/64 determina que “o pagamento da despesa só será efetuado quando ordenado após sua regular liquidação” (art. 62). Assim sendo, o pagamento realizado, dolosamente, antes da entrega do produto caracteriza o crime de peculato, mormente quando o caso não se enquadra na hipótese de adiantamento (art. 68).
A condenação pelo crime de peculato pressupõe a demonstração, sem espaço para dúvidas, de que o acusado agiu com dolo no desvio ou na apropriação do dinheiro público.
Caso um mesmo fato seja utilizado para fundamentar a existência de mais de uma circunstância judicial do art. 59, do CP, a pena-base deve ser reduzida. Com base no art. 580, do CPP, se a mesma situação ocorre em relação ao co-réu, os efeitos da redução de pena devem ser estendidos a ele.
Havendo condenação à pena privativa de liberdade superior à 4 (quatro) anos, não há como aplicar regime prisional mais ameno que o semi-aberto e nem como substituir da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, tendo em vista as restrições temporais estabelecidas pelo art. 33, § 2.º, ‘b’ e pelo art. 44, I, ambos do Código Penal.
Havendo comprovação da ocorrência de peculato, mas a absolvição do Prefeito Municipal, deve-se aplicar o instituto da emendatio libelli (art. 383, do CPP), para que a tipificação legal da condenação ocorra com fundamento no art. 312, do Código Penal.
A C Ó R D Ã O
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os juízes da Segunda Turma Criminal do Tribunal de Justiça, na conformidade da ata de julgamentos e das notas taquigráficas, afastar as preliminares, por unanimidade. Vencido o vogal, apenas quanto ao julgamento da preliminar \\\"ultra petita\\\", a qual foi acolhida, por maioria. Providos os recursos de José Donizete e de Ivete. Unânime. Negado provimento aos recursos de Waldimiro, Jorge e Ronilda. Unânime.

Campo Grande, 26 de julho de 2010.

Des. Claudionor Miguel Abss Duarte – Relator


RELATÓRIO
O Sr. Des. Claudionor Miguel Abss Duarte
Waldimiro José Cotrim Moreira, Jorge Yoshishilo Kobayashi, José Donizete Ferreira Freitas, Ivete Rocha Vargas de Souza e Ronilda Ribeiro Machado interpõem recurso de Apelação Criminal, inconformados com a sentença (fls. 1336-1366) que os condenou pela prática do crime previsto no art. 1.º, I, do Decreto-lei n.º 201/67.
Os recorrentes José Donizete Ferreira Freitas, Waldimiro José Cotrim Moreira e Jorge Yoshishilo Kobayashi foram condenados às penas de 6 (seis) anos de reclusão e de 100 (cem) dias-multa. Já as recorrentes Ivete Rocha Vargas de Souza e Ronilda Ribeiro Machado foram condenadas às penas de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de reclusão e de 70 (setenta) dias-multa.
O apelante Jorge Yoshishilo Kobayashi, em suas Razões Recursais (fls. 1412-1429), em apertada síntese, sustenta que deve ser absolvido, por ausência de dolo, falta de provas do fato criminoso ou por atipicidade da conduta, eis que não tinha consciência de que o dinheiro que recebia do acusado Waldimiro seria oriundo do FUNDEF, bem como não tinha nenhuma atribuição de fiscalizar as despesas ou autorizar pagamentos.
O apelante Waldimiro José Cotrim Moreira, em suas Razões Recursais (fls. 1431-1452), em apertada síntese, sustenta que: 1) não praticou o crime pelo qual foi condenado, devendo ser absolvido; 2) a sentença seria extra petita, na medida em que estabeleceu indenização para reparação de dano à vítima, com fundamento no art. 387, IV, do CPP, mesmo não havendo nenhum pedido neste sentido; 3) não há fundamentação para a fixação da pena acima do mínimo legal.
A apelante Ivete Rocha Vargas de Souza, em suas Razões Recursais (fls. 1453-1503), em apertada síntese, sustenta que: 1) haveria nulidade no feito, por erro na propositura da ação, já que a denúncia teria efetuado pedidos relativos à Lei de Improbidade Administrativa e a condenação fora criminal; 2) as provas produzidas em sede de Inquérito Civil, pelo Ministério Público Estadual, seriam imprestáveis; 3) haveria nulidade da ação, por incompetência absoluta de juízo, em razão do foro por prerrogativa de função; 4) haveria incompetência de juízo estadual, também, pelo fato de as verbas desviadas serem do FUNDEF, devendo os autos serem remetidos à Justiça Federal; 5) o Decreto-lei n.º 201/67 estaria revogado, impossibilitando a condenação, eis que teria sido produzido por ato privativo do Poder Executivo, sob regime de exceção, violando o princípio da legalidade; 6) no mérito, sustenta não existirem provas suficientes para a sua condenação; 7) a pena privativa de liberdade deveria ser substituída por restritiva de direitos; 8) a pena corporal deveria ser reduzida ao mínimo legal, pois a recorrente seria uma funcionária pública exemplar; 9) deve ser excluída a obrigação de reparar o dano a vítima.
A apelante Ronilda Ribeiro Machado, em suas Razões Recursais (fls. 1504.1519), em apertada síntese, sustenta que: 1) teria ocorrido o bis in idem, eis que já fora anteriormente condenada por outra ação penal, que tramitou perante este Tribunal; 2) não teria praticado a conduta prevista no art. 1.º, I, do Decreto-lei n.º 201/67.
O apelante José Donizete Ferreira Freitas, em suas Razões Recursais (fls. 1566-1580), em apertada síntese, sustenta que: 1) não tinha a obrigação de fiscalizar as contas do FUNDEF; 2) não haveria prova suficiente de que ele tivesse autorizado ou permitido a realização de empenho com notas fiscais “frias”; 3) tendo em vista que, no seu entendimento, todos os argumentos defendidos em alegações preliminares, alegações finais e embargos de declaração “não foram enfrentados pelo eminente julgador da instância inferior” (sic – fls. 1579), ratifica todos estes argumentos.
O Ministério Público Estadual, em suas Contra-razões Recursais (fls. 1520-1558), em apertada síntese, pugna pelo improvimento dos recursos.
A Procuradoria-Geral de Justiça, em seu parecer (fls. 1585-1593), opina pelo improvimento dos recursos.
VOTO
O Sr. Des. Claudionor Miguel Abss Duarte (Relator)
Tratam-se de recursos de Apelação Criminal interpostos por Waldimiro José Cotrim Moreira, Jorge Yoshishilo Kobayashi, José Donizete Ferreira Freitas, Ivete Rocha Vargas de Souza e Ronilda Ribeiro Machado, inconformados com a sentença (fls. 1336-1366) que os condenou pelo crime previsto no art. 1.º, I, do Decreto-lei n.º 201/67.
Consta na denúncia que, no dia 7 de novembro de 2006, Waldimiro José Cotrim Moreira e Jorge Yoshishilo Kobayashi, Secretário de Finanças e Contador do Município de Cassilândia respectivamente, desviaram a quantia de R$ 67.873,73 (sessenta e sete mil, oitocentos e setenta e três reais e setenta e três centavos), em proveito próprio.
A exordial narra, ainda, que os acusados Ana Regina Arantes, Ronilda Ribeiro Machado e Ivete Vargas Rocha de Souza tiveram participação efetiva para que o desvio de dinheiro público se concretizasse.
A Seção Criminal deste Tribunal de Justiça, em julgamento da admissibilidade do Feito Não Especificado de n.º 2007.017828-7, realizado no dia 3 de setembro de 2007, entendeu que a competência para julgamento da ação de n.º 007.07.000993-3 era deste Sodalício e determinou a subida imediata dos autos. Após o recebimento dos autos nesta Corte, foram devidamente autuados na classe Feito Não Especificado e receberam o número 2007.027742-0.
A Procuradoria-Geral de Justiça, em sua manifestação (fls. 724-732), pugnou pelo reconhecimento da litispendência em relação ao crime de usura (art. 4.º ‘a’ (crime de usura) e § 2.º, IV, ‘a’, segunda figura (praticado por funcionário público) da Lei de n.º 1.521/51) imputado ao acusado Jorge Yoshishilo Kobayashi e o que constava na Ação Penal de n.º 2007.029858-9.
A Procuradoria-Geral de Justiça requereu, ainda, o aditamento da denúncia (fls. 733-738), com a finalidade de estabelecer nova tipificação às condutas delitivas e incluir entre os réus o Sr. José Donizete Ferreira de Freitas, Prefeito Municipal de Cassilândia àquela época, adequando a tipificação das condutas ao art. 1.º, I (desvio de verba pública em proveito próprio e alheio), do Decreto-lei de n.º 201/67.
A Seção Criminal deste Tribunal, em julgamento unânime, realizado no dia 18 de março de 2008, reconheceu a litispendência, suscitada pelo Parquet, ratificou o recebimento da denúncia, recebeu o aditamento, incluindo José Donizete Ferreira Freitas e adotando a nova tipificação legal, e determinou a anulação de todos os atos processuais praticados após o recebimento da denúncia em 1.ª instância (fls. 548-554).
Remetidos à Secretaria deste Sodalício, os autos foram devidamente classificados como Ação Penal e receberam o número 2008.010259-7. O processo teve tramitação regular e, em 19 de fevereiro de 2009, esta relatoria declinou a competência para o juízo de 1.ª instância, face ao reconhecimento de incompetência superveniente, em decorrência da conclusão do mandato do Alcaide (fls. 1.162-1.163).
Remetidos os autos à 2.ª Vara da Comarca de Cassilândia, o juízo singular proferiu sentença (fls. 1.336-1.366v), julgando parcialmente procedente a denúncia, para condenar todos os recorrentes e absolver a acusada Ana Regina Arantes.
Existem diversos fundamentos defensivos nos recursos dos acusados, entretanto, antes de analisar o mérito, algumas questões preliminares devem ser superadas, por ordem de prejudicialidade.
1 – MATÉRIAS PREJUDICIAS AO MÉRITO:
1.1 – Da incompetência do juízo:
Ainda que não tenha sido colocada no início da peça recursal, a análise da preliminar de incompetência – fundamentada na violação de foro por prerrogativa de função e, também, na violação de competência da Justiça Federal –, suscitada por Ivete Rocha Vargas de Souza, deve preceder as demais. Isso porque só há sentido em se apreciar os demais pedidos, se este for o juízo competente para a tarefa.
A apelante entende que houve violação à competência do juízo em razão de suposto foro por prerrogativa de função e pelo fato de as verbas desviadas serem do FUNDEF, devendo os autos serem remetidos à Justiça Federal.
Inicialmente, a alegação de existência de foro por prerrogativa de função não merece maiores digressões. A recorrente sustenta sua pretensão nos parágrafos do art. 84, do CPP:

“Art. 84. A competência pela prerrogativa de função é do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, relativamente às pessoas que devam responder perante eles por crimes comuns e de responsabilidade.
§ 1.º A competência especial por prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente, prevalece ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública.
§ 2.º A ação de improbidade, de que trata a Lei no 8.429, de 2 de junho de 1992, será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública, observado o disposto no § 1.º.”

Não obstante a recorrente embasar seu pedido em tais dispositivos de lei, é certo que o Plenário do Pretório Excelso já reconheceu a sua inconstitucionalidade, há tempos. Para melhor compreensão da questão, transcreve-se trecho da extensa e didática ementa da ADI, relatada pelo eminente Min. Sepúlveda Pertence:

“III. Foro especial por prerrogativa de função: extensão, no tempo, ao momento posterior à cessação da investidura na função dele determinante. Súmula 394/STF (cancelamento pelo Supremo Tribunal Federal). Lei 10.628/2002, que acrescentou os §§ 1.º e 2.º ao artigo 84 do C. Processo Penal: pretensão inadmissível de interpretação autêntica da Constituição por lei ordinária e usurpação da competência do Supremo Tribunal para interpretar a Constituição: inconstitucionalidade declarada.
1. O novo § 1.º do art. 84 CPrPen constitui evidente reação legislativa ao cancelamento da Súmula 394 por decisão tomada pelo Supremo Tribunal no Inq 687-QO, 25.8.97, rel. o em. Ministro Sydney Sanches (RTJ 179/912), cujos fundamentos a lei nova contraria inequivocamente.
2. Tanto a Súmula 394, como a decisão do Supremo Tribunal, que a cancelou, derivaram de interpretação direta e exclusiva da Constituição Federal.
3. Não pode a lei ordinária pretender impor, como seu objeto imediato, uma interpretação da Constituição: a questão é de inconstitucionalidade formal, ínsita a toda norma de gradação inferior que se proponha a ditar interpretação da norma de hierarquia superior.
4. Quando, ao vício de inconstitucionalidade formal, a lei interpretativa da Constituição acresça o de opor-se ao entendimento da jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal - guarda da Constituição -, às razões dogmáticas acentuadas se impõem ao Tribunal razões de alta política institucional para repelir a usurpação pelo legislador de sua missão de intérprete final da Lei Fundamental: admitir pudesse a lei ordinária inverter a leitura pelo Supremo Tribunal da Constituição seria dizer que a interpretação constitucional da Corte estaria sujeita ao referendo do legislador, ou seja, que a Constituição - como entendida pelo órgão que ela própria erigiu em guarda da sua supremacia -, só constituiria o correto entendimento da Lei Suprema na medida da inteligência que lhe desse outro órgão constituído, o legislador ordinário, ao contrário, submetido aos seus ditames.
5. Inconstitucionalidade do § 1.º do art. 84 C.Pr.Penal, acrescido pela lei questionada e, por arrastamento, da regra final do § 2.º do mesmo artigo, que manda estender a regra à ação de improbidade administrativa.
IV. Ação de improbidade administrativa: extensão da competência especial por prerrogativa de função estabelecida para o processo penal condenatório contra o mesmo dignitário (§ 2.º do art. 84 do C Pr Penal introduzido pela L. 10.628/2002): declaração, por lei, de competência originária não prevista na Constituição: inconstitucionalidade.
1. No plano federal, as hipóteses de competência cível ou criminal dos tribunais da União são as previstas na Constituição da República ou dela implicitamente decorrentes, salvo quando esta mesma remeta à lei a sua fixação.
2. Essa exclusividade constitucional da fonte das competências dos tribunais federais resulta, de logo, de ser a Justiça da União especial em relação às dos Estados, detentores de toda a jurisdição residual.
3. Acresce que a competência originária dos Tribunais é, por definição, derrogação da competência ordinária dos juízos de primeiro grau, do que decorre que, demarcada a última pela Constituição, só a própria Constituição a pode excetuar.
4. Como mera explicitação de competências originárias implícitas na Lei Fundamental, à disposição legal em causa seriam oponíveis as razões já aventadas contra a pretensão de imposição por lei ordinária de uma dada interpretação constitucional.
5. De outro lado, pretende a lei questionada equiparar a ação de improbidade administrativa, de natureza civil (CF, art. 37, § 4º), à ação penal contra os mais altos dignitários da República, para o fim de estabelecer competência originária do Supremo Tribunal, em relação à qual a jurisprudência do Tribunal sempre estabeleceu nítida distinção entre as duas espécies.
6. Quanto aos Tribunais locais, a Constituição Federal -salvo as hipóteses dos seus arts. 29, X e 96, III -, reservou explicitamente às Constituições dos Estados-membros a definição da competência dos seus tribunais, o que afasta a possibilidade de ser ela alterada por lei federal ordinária.”
(STF. ADI 2797. Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE. Tribunal Pleno. j. 15/09/2005. DJ 19.12.2006)

Aliás, destaca-se que, surpreendentemente, a própria apelante ressalta trecho do voto do eminente Ministro Sepúlveda Pertence na ADI ementada acima, que é o sustentáculo de seu pedido (fls. 1.478).
Vê-se, portanto, que a pretensão de reconhecimento de foro por prerrogativa de função não encontra nenhum sustentáculo legal ou jurisprudencial, devendo ser rejeitada.
Quanto à pretensão de reconhecimento da competência da Justiça Federal, porque a ação penal envolve verba do FUNDEF, melhor sorte não resta à apelante. Na realidade, a matéria já foi, inclusive sumulada pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça:

“Súmula 209, do STJ: Compete à Justiça Estadual processar e julgar Prefeito por desvio de verba transferida e incorporada ao patrimônio municipal.”

Conforme esclarecido em todo o trâmite processual, em que pese haver participação de verba originária da União Federal no FUNDEF, é certo que esta há incorporação ao patrimônio do Município de Cassilândia, antes de ser utilizada. Neste compasso, constata-se a completa impossibilidade de deslocamento da competência para a Justiça Federal.
Desta forma, seja sob o fundamento da violação da prerrogativa de foro, seja em razão da matéria, a preliminar de incompetência de juízo deve ser rejeitada.
1.2 – Da nulidade do feito (erro na propositura da ação):
Ainda em sede preliminar, a apelante Ivete Rocha Vargas de Souza sustenta a existência de nulidade no feito, por erro na propositura da ação, já que a denúncia teria efetuado pedidos relativos à Lei de Improbidade Administrativa e a condenação fora criminal.
Para amparar seu raciocínio, a insurgente efetua longa explicação acerca das distinções existentes entre a ação civil pública e a ação civil por improbidade administrativa.
Ocorre, entretanto, que a explicação não possui utilidade para a solução da presente ação, que possui natureza jurídica de ação penal pública, para apuração do crime de peculato.
Neste sentido, a denúncia é clara ao pedir a condenação dos acusados pelo crime de peculato, ora tipificado no art. 312, do Código Penal. Posteriormente, com o aditamento da denúncia (fls. 733-738), houve a inclusão do Prefeito Municipal no pólo passivo da demanda e, consequentemente, a alteração da tipificação penal para o crime de peculato previsto no Decreto-lei n.º 201/67.
Desta forma, a preliminar de nulidade do feito, por erro na propositura da ação, deve ser rejeitada.
1.3 – Da imprestabilidade das provas anteriores à denúncia:
A apelante Ivete Rocha Vargas de Souza, na sequência, argui a preliminar de imprestabilidade das provas produzidas em sede de Inquérito Civil, pelo Ministério Público Estadual.
Em primeiro lugar, é imperioso esclarecer que não há nenhum Inquérito Civil nos autos. Ainda que o Parquet tenha participado da produção dos elementos informativos que acompanham a denúncia, esses não foram produzidos em sede de Inquérito Civil, mas sim em Inquérito Policial.
É evidente nos autos que houve participação de membros do Parquet na confecção dos elementos informativos que acompanharam a denúncia. Entretanto, a matéria já foi amplamente debatida nestes autos e noutros referentes à atividade simbiótica entre a Polícia Civil e o Ministério Público. Concluiu-se que a participação de membros do Parquet nas investigações policiais não invalida as evidências colhidas.
Deve-se reconhecer que há discussão jurisprudencial, inclusive no próprio STF, acerca da validade de elementos informativos colhidos em procedimento administrativo investigativo instaurado pelo Promotor de Justiça. Todavia, não é esse o caso dos autos.
Desta forma, a preliminar de imprestabilidade das provas anteriores à denúncia deve ser rejeitada.
1.4 – Da ocorrência de bis in idem na condenação:
A apelante Ronilda Ribeiro Machado sustenta que teria ocorrido o bis in idem, eis que já fora anteriormente condenada por outra ação penal, que tramitou perante este Tribunal.
Deve-se consignar que tanto a ação penal que tramitou perante este Tribunal (sob o n.º 2007.29858-9) quanto a ação penal referente a este recurso de apelação versam sobre o crime previsto no art. 1.º, do Decreto-lei n.º 201/67; entretanto, não tratam dos mesmo fatos.
O simples fato de uma pessoa ser acusada da prática de um crime não obsta sua acusação posterior, da prática de outra conduta tipificada no mesmo dispositivo legal. Nesse caso, a ocorrência de dupla condenação não significa bis in idem, mas reincidência específica.
Aliás, importante destacar que a alegação de litispendência já fora devidamente apreciada pelo juízo a quo, não sendo questionada pela recorrente:

“Litispendência. Ação Penal 2007.029858-9.
A ação penal 2007.029858-9, em trâmite no e. TJMS, tem como objeto a condenação dos acusados nas mesmas penas da infração penal, cuja capitulação é a mesma deste processo, qual seja, Art. 1.º do Decreto-Lei 201/67.
No entanto, os fatos são distintos.
Observe-se, que naquela ação penal, o objetivo era apurar, em síntese, os seguinte:
A denúncia narra a existência de um grande esquema de corrupção da Prefeitura de Cassilândia que possuía a finalidade de se apropriar e desviar dinheiro da municipalidade para interesses particulares.
(.....)
O principal artifício para alcançar o dinheiro do Erário seria a utilização do dinheiro em espécie que ficava no cofre e nos caixas da Prefeitura, já que a arrecadação de todos os tributos municipais era desvinculada da rede bancária. Na ausência de dinheiro em caixa, a acusação sublinha que cheques da Prefeitura – relativos aos diversos convênios – eram descontados diretamente na rede bancária e aplicados em finalidades outras, que não a do convênio.
Para organizar as retiradas de dinheiro do caixa, eram elaborados ‘vales’, que ficavam aguardando a chegada de ‘notas fiscais frias’, elaboração de empenhos ‘fraudulentos’ e de processos licitatórios ‘invertidos’, a fim de justificar a saída de dinheiro público do Erário.
Com relação a esta ação, a denúncia imputa aos acusados a seguinte infração penal:
Segundo consta do incluso caderno investigatório, o denunciado Jorge Yoshishilo Kobayashi emprestou dinheiro a juros superiores aos permitidos legalmente para Waldimiro José Cotrim Moreira, razão pela qual Jorge era credor de Waldimiro.
Para pagar tal dívida, o denunciado Waldimiro José Cotrim Moreira pagou o denunciado Jorge com dinheiro público, da conta municipal do FUNDEF.
A denunciada Ana Regina Arantes ciente deste fato, realizou o pagamento da dívida com a emissão de dois cheques da conta do FUNDEF, conforme documentação anexa, participando de forma direta da subtração.
Para ocultar a ilegalidade da situação, a denunciada Ronilda Ribeiro Machado teve participação material direta, pois entregou as notas fiscais ‘frias’ por determinação do denunciado Waldimiro José Cotrim Moreira, e assinou o emprenho como se estivesse realizando o regular pagamento pelas notas apresentadas.
A denunciada Ivete Vargas Rocha de Souza também participou do ato criminoso, vez que a mesma recebeu as Notas Fiscais ‘Frias’, bem como atestou o recebimento do produto pela Administração Pública municipal mesmo sabendo que não houve qualquer entrega do produto constante das notas fiscais apresentadas. (fs. 03-05).
Dimana dos autos que a participação do Chefe do Poder Executivo José Donizete no delito foi extremamente arrojada, posto que, na qualidade de principal ordenador de despesas do município autorizava a emissão de cheques do Banco do Brasil S.A., da conta-corrente do FUNDEF, para abastecer o ‘Caixa 2’. (f. 734).
Isto é, são fatos diferentes que devem ser analisados e julgados separadamente, como de fato foram distintamente processados.
Ademais, para que não pairem quaisquer dúvidas quanto à inexistência de litispendência, analisa-se, as condutas imputadas na denúncia individualmente.
(...)
Ronilda Ribeiro Machado
Conduta analisada na ação penal 2007.029858-9: A conduta imputada à acusada Ronilda Ribeiro Machado é de providenciar as ‘notas fiscais frias’ necessárias para o funcionamento da atividade de expropriação do dinheiro público.
(.....)
Verifica-se, desta forma, que a participação da acusada Ronilda Ribeiro Machado foi efetiva para que se conseguisse a expropriação do patrimônio público, por reconhecer que partiu dela a solicitação para que o acusado Aleuto Teixeira Lata fornecesse as referidas notas fiscais frias para a Municipalidade.
Conduta analisada nesta ação penal: Para dar aparente legalidade ao esquema criminoso, a acusada, teria entregado notas fiscais ‘frias’, bem como, assinado o empenho como se estivesse realizando o regular pagamento das notas apresentadas.
(...)
Desta forma, não se operando a litispendência desta ação com relação à 2007.029858-9 (TJMS) quanto a quaisquer dos acusados, não há se falar em extinção do processo sem julgamento do mérito.”

Assim sendo, observa-se grande similitude entre as condutas das duas denúncias, mas não são as mesmas condutas e, consequentemente, não há que se falar em litispendência e, muito menos, bis in idem.
Desta forma, a preliminar de ocorrência de bis in idem na condenação deve ser rejeitada.
1.5 – Da impossibilidade de condenação com base em tipo penal revogado (Decreto-lei n.º 201/67):
Por fim, a recorrente Ivete Rocha Vargas de Souza argumenta que o Decreto-lei n.º 201/67 estaria revogado, impossibilitando a condenação, eis que teria sido produzido por ato privativo do Poder Executivo, sob regime de exceção, violando o princípio da legalidade.
Deve-se notar que o simples fato de a norma infraconstitucional ter sido produzida em período anterior à promulgação de nova Constituição não lhe retira a validade.
Se a promulgação de uma nova Constituição acarretasse a revogação automática de toda legislação anterior, haveria o verdadeiro caos legislativo. Nesta ótica, a legislação anterior que for compatível com as diretrizes da nova ordem constitucional deve ser recepcionada.
Sobre o Decreto-Lei n.º 201/67, em específico, o Plenário da Suprema Corte já se manifestou:

“DECRETO-LEI 201/67. VALIDADE. SÚMULA 496 DO STF. CASO DE EX-PREFEITO.
I. O Decreto-lei 201 teve sua subsistência garantida pela Carta de 1967-69, e não e incompatível com a Constituição de 1988. É válido o processo que, nos seus termos, prossegue contra ex-prefeito, se o domínio versado não é o de verdadeiros delitos de responsabilidade (artigos 4.º e seguintes), mas o de crimes ordinários, processados pela Justiça e sujeitos a penas de direito comum (artigos 1.º a 3.º).
II. O habeas corpus não é sede idônea para a revisão - e menos ainda para a revisão precoce - do processo penal.”
(STF. HC 69.850/RS. Rel. Min. Francisco Rezek. Tribunal Pleno. j. 09/02/1994. DJ 27-05-1994)

Desta forma, a preliminar de impossibilidade de condenação, porque tipo penal (Decreto-lei n.º 201/67) estaria revogado, deve ser rejeitada.
1.6 – Do julgamento extra petita (art. 387, IV, CPP):
O apelante Waldimiro José Cotrim Moreira, ainda que não mencione claramente a matéria como preliminar, afirma que a sentença seria extra petita, na medida em que estabeleceu indenização para reparação de dano à vítima, com fundamento no art. 387, IV, do CPP, mesmo não havendo nenhum pedido neste sentido.
Mesmo não tendo tratado a matéria como preliminar, a apelante Ivete Rocha Vargas de Souza busca a exclusão da quantia fixada para ressarcimento da vítima, por fundamentos similares.
Esta preliminar merece acolhimento, mas não porque a decisão seria extra petita e sim porque é ultra petita. Sobre a questão, os ensinamentos de Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael Oliveira são de clareza bastante didática:
“É muito comum confundirem-se, na teoria e na prática, as decisões ultra e extra petita. Mas há um critério que pode facilitar a compreensão desses dois fenômenos: (a) na decisão ultra petita, o magistrado analisa o pedido da parte ou os fatos debatidos nos autos, mas vai além deles, concedendo um provimento ou um bem da vida não pleiteado, ou ainda analisando outros fatos, também essenciais, não postos pelas partes; (b) na decisão extra petita, o magistrado, sem analisar o pedido formulado, delibera sobre o pedido não formulado, ou ainda, sem analisar fato essencial deduzido, decide com base em fato essencial não deduzido.”
Desta forma, ainda que o pedido tenha sido de reconhecimento de sentença extra petita, nota-se que toda a argumentação expendida foi de que a decisão seria ultra petita, o que não prejudica a sua análise.
Deve-se ressaltar que o reconhecimento da decisão ultra petita não tem o condão de invalidar a sentença penal condenatória por inteiro, mas apenas de excluir dela a parte dispositiva referente à indenização da vítima.
Inicialmente, cumpre mencionar a nova redação do art. 387, IV, CPP, após a alteração efetuada pela Lei n.º 11.719/2008:

“Art. 387. O juiz, ao proferir sentença condenatória: (...)
IV - fixará valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido;”

Tenho me posicionado, reiteradamente, no sentido de que a utilização do art. 387, IV, do CPP, que permite a fixação de indenização mínima à vítima, só é possível quando houver pedido expresso – do órgão ministerial ou de um assistente de acusação –, em respeito aos princípios do contraditório e da ampla defesa.
Verifica-se que a alteração legislativa representou grande inovação no sistema processual brasileiro, eis que, em tese, permitiria a prestação da tutela jurisdicional de forma mais rápida e efetiva. Entretanto, pela falta de legislação expressa sobre o procedimento a ser adotado, a sua aplicação deve ocorrer de acordo com os princípios processuais constitucionais e infraconstitucionais.
O princípio da inércia da jurisdição preceitua que o Poder Judiciário não deve decidir de ofício, salvo em se tratando do poder geral de cautela, que não é o caso. Assim sendo, mesmo que não se exijam formalidades, para que haja fixação de algum quantum reparatório é imprescindível que exista um pedido, do Ministério Público ou do ofendido.
Ante a ausência de qualquer pedido neste sentido, a decisão do julgador sobre este aspecto é ultra petita, devendo ser reconhecida a nulidade parcial. Ademais, é conditio sine qua non o respeito ao princípio da ampla defesa em qualquer procedimento judicial. Isso porque, ainda que exista previsão legal que possibilite a fixação de quantum indenizatório mínimo na sentença, não é possível que o acusado seja surpreendido ao final do processo, sem que tenha oportunidade de defesa sobre isso durante toda a instrução probatória.
Calha à fiveleta o comentário de Guilherme de Souza Nucci :

“Reparação dos danos: sejamos absolutamente realistas, sem nos impressionarmos com a pretensa reforma autêntica do processo no Brasil. Há muito, aguarda-se possa o juiz criminal decidir, de uma vez, não somente o cenário criminal em relação ao réu, mas também a sua dívida civil no tocante à vítima, de modo a poupar outra demanda na esfera cível. O que se faz? Menciona-se que o magistrado pode fixar um valor mínimo para a reparação dos danos causados pela infração, levando em conta os prejuízos sofridos pela vítima. Ora, para o estabelecimento de um valor mínimo o juiz deverá proporcionar todos os meios de provas admissíveis, em benefício dos envolvidos, mormente do réu. Não pode arcar com qualquer montante se não tiver tido a oportunidade de se defender, produzir prova e demonstrar o que, realmente, seria, em tese, devido. (...)
Procedimento para a fixação da indenização civil: admitindo-se que o magistrado possa fixar o valor mínimo para a reparação dos danos causados pela infração penal, é fundamental haver durante a instrução criminal, um pedido formal para que se apure o montante civilmente devido. Esse pedido deve partir do ofendido, por seu advogado (assistente de acusação), ou do Ministério Público. A parte que o fizer precisa indicar valores e provas suficientes a sustentá-los. A partir daí, deve-se proporcionar ao réu a possibilidade de se defender e produzir a contraprova, de modo a indicar valor diverso ou mesmo a apontar que que inexistiu prejuízo material ou moral a ser reparado. Se não houver formal pedido e instrução específica para apurar o valor mínimo para o dano, é defeso ao julgador optar por qualquer cifra, pois seria nítida infringência ao princípio da ampla defesa” (grifo nosso)

Portanto, por violação aos princípios constitucionais do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, deve ser reconhecida a nulidade da parte da sentença que fixa a indenização à vítima, por ser decisão ultra petita.
Este Sodalício tem posicionamento firme sobre o tema:

“Somente deve haver a condenação por danos prevista no artigo 387, IV, do CPP, quando houver pedido formal do Ministério Público ou da assistência da acusação, com a devida instrução processual, a fim de garantir a ampla defesa e o contraditório.”
(TJMS. Apelação Criminal 2009.016665-9. Rel. Des. Carlos Eduardo Contar. Rel. Desig. Juiz Manoel Mendes Carli. 2.ª Turma Criminal. j. 17/05/2010. DJ 28/05/2010)

“Quanto ao valor fixado de reparação de danos, merece reparo a sentença, pois em que pese o dispositivo inserido pela Lei 11.719/20.06.2008, artigo 387, IV, do CPP, o valor, no caso em apreciação, foi fixado sem o devido contraditório, exigível para tanto.”
(TJMS. Apelação Criminal 2009.031666-3. Rel. Des. Dorival Moreira dos Santos. 1.ª Turma Criminal. j. 02/03/2010. DJ 25/03/2010)

“O art. 387, IV, do CPP, com redação dada pela Lei n.º 11.719/08, possibilita a fixação de quantum destinado à reparação dos danos causados à vítima, na sentença penal condenatória. Entretanto, é imprescindível o respeito aos princípios da inércia da jurisdição e da ampla defesa. O arbitramento de quantum na sentença, sem nenhum pedido ou defesa das partes durante todo o processo, torna a decisão ultra petita e deve ser excluído da decisão.”
(TJMS. Apelação 2009.005489-7. Rel. Des. Claudionor Miguel Abss Duarte. 2.ª Turma Criminal. j. 27/04/2009. DJ 05/05/2009)

Para haver condenação à indenização, é necessário que haja pedido da vítima ou do Ministério Público, sendo que, em nenhum momento nos autos, houve tal pedido nem instrução específica, não tendo sido oportunizadas ao apelante, as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa, fica, portanto, afastada.
(TJMS. Apelação 2008.034740-7. Rel.ª Des.ª Marilza Lúcia Fortes. 1.ª Turma Criminal j. 17/02/2009. DJ 13/03/2009)

O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios também possui precedente no mesmo sentido:

“PENAL – FURTO QUALIFICADO (...) INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS – AUSÊNCIA DE CONTRADITÓRIO (...) Para indenização por danos morais e materiais mister se faz que haja pedido EXPRESSO, e ainda que seja oportunizado o contraditório.”
(TJDFT. Apelação Criminal 20080310177455. Rel. Edson Alfredo Smaniotto. 1.ª Turma Criminal. j. 16/07/2009, DJ 18/09/2009)

Desta forma, a preliminar de nulidade parcial da sentença, no ponto que em estabelece um quantum mínimo indenizatório para a vítima, com fundamento no art. 387, IV, do CPP, deve ser acolhida.
Tendo em vista que a nulidade é apenas de parte da sentença condenatória, deve-se prosseguir a análise do mérito recursal relativo aos demais pontos.


O Sr. Des. Romero Osme Dias Lopes (Revisor)

De acordo com o relator.
Acolho a preliminar de nulidade parcial da sentença de acordo com o relator.


O Sr. Des. Carlos Eduardo Contar (Vogal)

Divirjo quanto à preliminar de nulidade parcial da sentença, por suposta ausência de pedido expresso por parte do MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL para que se procedesse à fixação do quantum mínimo indenizatório para a vítima, pois entendo ter ocorrido requerimento neste sentido.
De outra banda, ainda que se conclua de maneira diversa, perfilho o entendimento, de acordo com o qual, o julgador não se encontra adstrito a tal pedido, podendo e devendo livremente estabelecer o quantum mínimo da indenização a ser paga à vítima.
Neste sentido, trago à baila o seguinte julgado:

“A aplicação do previsto no art. 387, IV, do Código de Processo Penal, prescinde de requerimento expresso na denúncia ou queixa, uma vez que constitui, em face da reforma empreendida pela Lei nº 11.719/2008, requisito obrigatório da sentença, não havendo, portanto, qualquer ofensa aos princípios do contraditório e ampla defesa.”

Ante o exposto, afasto a preliminar de nulidade parcial da sentença. No mais, acompanho os termos do voto e. relator.



O Sr. Des. Claudionor Miguel Abss Duarte

2 – MÉRITO:
Conforme narrado linhas acima, a conduta delitiva tratada nesta ação penal é de que o recorrente Waldimiro José Cotrim Moreira – Secretário Municipal de Finanças – devia grande quantia em dinheiro a Jorge Yoshishilo Kobayashi – Contador Municipal. Para a quitação do débito, o Secretário Municipal teria se utilizado de dinheiro público, com o conhecimento do seu credor.
Quanto aos demais recorrentes – José Donizete Ferreira Freitas, Ivete Rocha Vargas de Souza e Ronilda Ribeiro Machado –, o órgão ministerial narra condutas – tanto na denúncia, quanto em seu aditamento (fls. 733-737) – que teriam sido imprescindíveis para a apropriação indevida de dinheiro proveniente do Erário Municipal.
A vantagem percebida seria a quantia de quantia de R$ 67.873,73 (sessenta e sete mil, oitocentos e setenta e três reais e setenta e três centavos) proveniente do FUNDEF, que seria destinada ao abastecimento de combustível dos veículos que transportavam estudantes da rede públicas até as escolas.
Importante destacar que a conduta a ser analisada, nesta ação penal, não se confunde com a questão da emissão de “vales”, para gastos diversos, que, posteriormente, eram “cobertos” com notas fiscais frias. A questão referente aos “vales” já foi tratada, à saciedade, no julgamento da Ação Penal de n.º 2007.029858-9.
A presente ação penal versa sobre o narrado desvio de verbas do FUNDEF, mediante apresentação de “notas fiscais frias” do Auto Posto Petrobrás, para o pagamento de dívida particular do Secretário de Finanças.
Assim sendo, toda narrativa – acusatória e defensiva – acerca do esquema de corrupção existente dentro da Prefeitura Municipal é dispensável; não possuindo nenhuma relevância para a prestação da tutela jurisdicional adequada aos limites traçados pela exordial acusatória.
O que importa, nesta ação penal, é saber se houve ou não o desvio da verba pública em questão, para pagamento de dívida do Secretário de Finanças e, havendo comprovação, quem são os responsáveis.
No caso dos autos, de uma forma geral, a linha mestra de todas as defesas seria a inexistência de lesão ao patrimônio municipal, alegando que o procedimento normal era a liberação de dinheiro para o fornecedor de combustível antes do fornecimento, que geraria um crédito para os motoristas dos veículo escolares abastecerem durante o mês.
Neste ponto inicial, deve-se esclarecer que, mesmo que a comunidade local acredite ser este o procedimento correto, a Lei 4.320/64 (que estatui Normas Gerais de Direito Financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal) determina procedimento absolutamente distinto.
Na realidade, em linhas gerais, a realização de uma despesa pública se inicia com a requisição de compra encaminhada ao ordenador de despesas. Após a autorização desse, é realizado o empenho (embasado em contrato – precedido de licitação ou certificação de sua dispensa ou inexigibilidade), autorizando a entrega do produto ou realização do serviço. Somente após isso é realizado o pagamento.
A Lei 4.320/64 preceitua:

“Art. 62. O pagamento da despesa só será efetuado quando ordenado após sua regular liquidação.
Art. 63. A liquidação da despesa consiste na verificação do direito adquirido pelo credor tendo por base os títulos e documentos comprobatórios do respectivo crédito.
§ 1.º Essa verificação tem por fim apurar:
I - a origem e o objeto do que se deve pagar;
II - a importância exata a pagar;
III - a quem se deve pagar a importância, para extinguir a obrigação.
§ 2.º A liquidação da despesa por fornecimentos feitos ou serviços prestados terá por base:
I - o contrato, ajuste ou acôrdo respectivo;
II - a nota de empenho;
III - os comprovantes da entrega de material ou da prestação efetiva do serviço.” (grifos nossos)

Assim sendo, no caso do fornecimento de combustível, é nítido que o pagamento só pode ser realizado após a comprovação do abastecimento, esta é a liquidação exigida pela lei. Sobre o tema, José Teixeira Machado Jr. e Heraldo da Costa Reis ensinam:

“Como é fartamente sabido e já dissemos, a despesa passa, entre outras, pelas seguintes fases: o empenho, já analisado; a liquidação, definida no caput do artigo acima transcrito; e o pagamento, que veremos adiante.
A liquidação é, pois, a verificação do implemento de condição. Quando o órgão de pessoal prepara a folha de pagamento do mês, deduzindo faltas e impontualidades, está na verdade liquidando a despesa de pessoal do mês, embora na prática não se costume utilizar tal expressão em relação a esse tipo de despesa.
Trata-se de verificar o direito do credor ao pagamento, isto é, verificar se o implemento de condição foi cumprido. Isto se faz com base em títulos e documentos. Muito bem, mas há um ponto central a considerar: é a verificação objetiva do cumprimento contratual. O documento é apenas o aspecto formal da processualística. A fase de liquidação deve comportar a verificação in loco do cumprimento da obrigação por parte do contratante. Foi a obra, por exemplo, construída dentro das especificações contratadas? Foi o material entregue dentro das especificações estabelecidas no edital de concorrência ou de outra forma de licitação? Foi o serviço executado dentro das especificações? O móvel entregue corresponde ao pedido? E assim por diante. Trata-se de uma espécie de auditoria de obras e serviços, a fim de evitar obras e serviços fantasmas. Este aspecto da liquidação é da mais transcendente importância no caso das subvenções, exatamente para evitar o pagamento de subvenções e auxílios a entidades inexistentes. O documento da liquidação, portanto, deve refletir uma realidade objetiva.”

Destarte, ainda que fosse um costume local o procedimento de pagar antecipadamente o fornecedor de combustível, gerando um crédito para cada perueiro, não é difícil perceber que a sua aplicação vai no sentido oposto ao que preceitua a Lei 4.320/64.
Pelo procedimento traçado na aludida lei, antes do abastecimento, o pagamento só poderia ser considerado lícito se fosse o caso de adiantamento:

“Art. 68. O regime de adiantamento é aplicável aos casos de despesas expressamente definidos em lei e consiste na entrega de numerário a servidor, sempre precedida de empenho na dotação própria para o fim de realizar despesas, que não possam subordinar-se ao processo normal de aplicação.”

Importante mencionar ensinamento doutrinário sobre a excepcionalidade da utilização do adiantamento. Sobre esta questão, segue lição de José Teixeira Machado Jr. e Heraldo da Costa Reis :

“Já o art. 65 definira o adiantamento como um dos meios de ser efetuado o pagamento, em casos excepcionais. É necessário, sobretudo, que a excepcionalidade não se transforme em regra, como acontece sempre. Deste modo:
- a lei especificará os casos em que é aplicável o adiantamento, isto é, o tipo de despesa que pode ser paga por este meio;
- a Administração determinará quem pode receber adiantamento e quando; o limite máximo do adiantamento e o prazo para prestação de contas.
É preciso prestar atenção ao fato de que a própria lei exclui do adiantamento aquelas despesas que se subordinam ao processo normal de aplicação. Desta forma, aquisição de material e equipamento, realização de obras, etc. não devem ser pagas por meio de adiantamento, a não ser fora da sede do Município, quando então, se caracteriza a excepcionalidade.”

No caso concreto, não se nota nenhuma das características apontadas pela doutrina como necessárias para embasar o adiantamento. Na realidade, pelo que se nota, o adiantamento em questão teria ocorrido, unicamente, por conveniência dos fornecedores de combustível, que possuíam fortes vínculos com o Secretário de Finanças. Conforme esclarece a sentença (fls. 1.343):

“Constata-se, então, pelo documentos apresentados nos autos, e pelo depoimento de Luceni Quintina Correia que Waldimiro José Cotrim Moreira era sócio-proprietário da empresa Auto Posto Petrobrás, nesta cidade, e mesmo sendo Secretário de Finanças do Município, era sua empresa - ainda que em nome seu irmão Paulo Cotrim - quem fornecia grande parte do combustível à Administração Municipal local.”

Importante perceber que, aparentemente, os funcionários da Prefeitura Municipal até tinham conhecimento da forma correta de se proceder, ou seja, prévio empenho, liquidação e posterior pagamento. Entretanto, buscavam “adequar” a contabilidade pública às exigências legais, diante das “peculiaridades” da gestão de recursos públicos.
É o que se nota das declarações de Hidelma de Fátima Dutra, na fase inquisitiva (fls. 310-311):

“QUE a depoente, esclarece que o empenho pode ter saído com data de novembro ou dezembro, fato comum na Prefeitura. QUE, pelo Tribunal de Contas não se pode fazer o empenho com data posterior à da nota fiscal, mas com data anterior pode;”

O depoimento, na fase judicial, do recorrente Jorge Yoshishilo Kobayashi é ainda mais enfático (fls. 952-961):

“JUIZ: Como é que o senhor esclarece essa movimentação que consta aqui na emenda da denúncia de fl. 734. O senhor já teve acesso a isso, já se defendeu previamente, em que há essa movimentação aqui nessa conta-corrente, pelo cheque nº 002199 de 41 mil; pelo cheque nº 002200 de 26 mil e pouquinho de 07 de dezembro de 2006. O que o senhor fala sobre essa movimentação- Como que ela ocorreu- Se está certa e como que foi que aconteceu.
INTERROGANDO: Isso é uma contabilidade que vem sendo formalizada há dez anos já, desde a criação da lei, que até o dia 30 de dezembro nós somos obrigados pela Constituição a aplicar os 25% obrigatório pela lei. Então quando o fundo, os fundos têm essa obrigatoriedade, nós já antecipamos todos os gastos deles para não ter que correr até o final do ano e ficar devendo para alguém, ou ficar sem processar documentos. Então nós antecipamos todos esses lançamentos e isso é feito há dez anos atrás e continua sendo feito até hoje, não mudou a lei. Quer dizer esse procedimento é obrigatório dentro dos 365 do exercício, 365 dias do exercício.
JUIZ: Esse movimento que fala na denúncia.
INTERROGANDO: Sim.
JUIZ: Então é considerado pelo senhor como normal.
INTERROGANDO: Normal, perfeitamente viável.”

O depoimento judicial do recorrente Waldimiro José Cotrim Moreira é no mesmo sentido (fls. 961-968):

“JUIZ: E o senhor afirma, afirmou no comecinho que esse pagamento que foi feito aqui com esses cheques diz respeito ao combustível de novembro e dezembro.
INTERROGANDO: Transporte escolar.
JUIZ: Por que era pago em novembro, Sr. Valdir.
INTERROGANDO: Eu não sei, é alguma coisa assim relativo à contabilidade né, porque em novembro começa a se fechar todas as contas, empenhos, enfim. Em novembro se fecha tudo né- E eu entendo que a educação nessa época tinha que fechar em novembro, então já foi adiantado todos os pagamentos.
(...)
DEFESA: Tenho, Excelência, o senhor já perguntou e ele respondeu até de maneira... Excelência, apenas para que não reste nenhuma dúvida. Se ele tem conhecimento que o pagamento do combustível foi feito antecipadamente.
INTERROGANDO: Perfeitamente. Em função até mesmo do fechamento do balanço do FUNDEF em novembro. Veja bem, nos agimos assim, porque é assim que age a contabilidade conosco.
(...)
MP: A dúvida levantada Sr. Valdemiro, é exatamente porque está sendo afirmado que o pagamento era feito previamente.
INTERROGANDO: Só no caso.
MP: E para ele ser feito previamente para estar com requisição, com empenho tinha que ter sido apresentado a requisição ao Poder Público. E como então que havia um controle do perueiro, de quem ia usar efetivamente o combustível já que estava pago, se pressupõe que o que usa é exatamente a requisição e lá já não estava mais com ele. Como é que era feito esse controle então, no final de ano, o senhor está entendendo.
INTERROGANDO: Ah! Tá. O perueiro ia no posto, entregava a requisição e ficava-se no posto com uma... No computador ficava-se um crédito. Ele tem lá 500 litros de combustível, saía como um crédito. Toda vez que ele ia lá comprava um, abastecia o carro dele e abatia dez litros, então ele assinava uma notinha lá dele, dele mesmo, pessoal, porque ele já tinha esse crédito, ele já tinha esse crédito. Esse crédito é pessoal dele, não era da Prefeitura, era dele. Então ele assinava lá dez litros e já o sistema do posto já abatia não tinha mais 500, já era 490, e ia abatendo até acabar. Mas a requisição já havia sido entregue para o posto, o senhor entendeu- A requisição já estava no posto. Porque para ele ter aquele crédito, ele tinha que ter depositado alguma coisa, esse alguma coisa era exatamente a requisição.”

Assim sendo, resta evidente o desvio de dinheiro público, consubstanciado no pagamento antecipado de combustível ao fornecedor, sem possibilidade de concreta fiscalização posterior.
A irregularidade do procedimento adotado pelos gestores do FUNDEF e demais funcionários da Prefeitura Municipal é tão evidente que causa estranheza a inocorrência, ao menos, de indiciamento da Secretária de Educação responsável pela gestão do fundo, Sr.ª Elza Cordoni, que fora a signatária dos cheques e das notas de empenho, inclusive.
Para a adequada prestação da tutela jurisdicional, contudo, faz-se necessária a análise das condutas de cada um dos recorrentes.
2.1 – Waldimiro José Cotrim Moreira:
Inicialmente, o apelante sustenta que não praticou o crime pelo qual foi condenado, devendo ser absolvido.
Não é possível acolher esta pretensão recursal.
Em verdade, conforme esclarecido pelo depoimento do próprio recorrente, linhas acima, era de seu conhecimento aquilo que se pode denominar de “sistema de pagamento antecipado de combustível”.
Neste aspecto, os fatos de a Prefeitura Municipal ser devedora da empresa Auto Posto Petrobrás, de o Secretário de Finanças ter crédito com seu irmão (que seria o proprietário de direito do Posto de Combustível) e dele possuir uma dívida com o Contador Municipal não são relevantes para a verificação da culpabilidade deste acusado.
O importante é perceber que o acusado, na condição de Secretário Municipal de Finanças, determinou o pagamento antecipado do fornecimento de combustível, com verba do FUNDEF. E obteve benefício desta ação. Este fato é incontroverso. A defesa entende, apenas, que a sequência negocial seria lícita.
Destarte, o momento da consumação do crime de peculato está no instante em que o acusado determinou o pagamento antecipado de combustível. O fato de o dinheiro ter sido utilizado para o pagamento de dívida particular pode até ser encarado como fator motivador da atividade delitiva, principalmente do co-réu Jorge Yoshishilo Kobayashi, conforme será abordado a seguir, mas não possui vínculo com a consumação.
Se o produto (combustível) não havia sido entregue à Municipalidade, o pagamento realizado só poderia ser realizado por erro contábil grave ou por conduta dolosa. Pelo conjunto probatório, tudo demonstra que ocorreu a última opção, ou seja, o Secretário de Finanças determinou a confecção de “notas fiscais frias” para justificar o pagamento de combustível, que ainda não tinha sido fornecido.
Desta forma, seja porque o acusado era o Secretário de Finanças Municipal, porque era um dos gestores do FUNDEF ou, ainda, porque teria sido beneficiado diretamente do “pagamento antecipado” (já que este dinheiro foi utilizado para saldar dívida particular sua), a condenação de Waldimiro José Cotrim Moreira é medida que se impõe, devendo ser mantida.
Por fim, o insurgente alega que não há fundamentação para a fixação da pena acima do mínimo legal, do regime prisional mais severo que o aberto e da impossibilidade de substituição de pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.
O art. 1.º, I, c/c § 1.º, do Decreto-lei 201/67, prescreve a seguinte pena, in abstrato:

“Art. 1.º São crimes de responsabilidade dos Prefeitos Municipal, sujeitos ao julgamento do Poder Judiciário, independentemente do pronunciamento da Câmara dos Vereadores:
I - apropriar-se de bens ou rendas públicas, ou desviá-los em proveito próprio ou alheio; (...)
§ 1.º Os crimes definidos neste artigo são de ação pública, punidos os dos itens I e II, com a pena de reclusão, de dois a doze anos, e os demais, com a pena de detenção, de três meses a três anos.” (grifo nosso)

Ao sentenciar, o juízo a quo fundamentou a fixação da pena-base da seguinte forma (fls. 1.364 e 1.365v):

“- Waldimiro José Cotrim Moreira. I. Culpabilidade: o grau de reprovabilidade e censurabilidade da conduta do acusado é de grande intensidade, porquanto, na qualidade de Secretário Municipal deveria ter agido dentro da estrita legalidade. II. Antecedentes: não registra maus antecedentes. III. Conduta Social: sem elementos. IV. Personalidade: a personalidade do acusado demonstra ser de má índole, porquanto acessa cargo público de primeiro escalão em Município e contribui para a dilapidação dos escassos recursos públicos. V. Motivos do Crime: Não se verifica nos autos elementos que minimizem a conduta ilícita do acusado, eis que apesar de ser muito mais fácil cumprir a legislação de regência no que concerne à administração de dinheiro público, opta por agir à marginalidade, como se os cofres públicos pudessem ser geridos como uma pessoa jurídica informal. VI. Circunstâncias e Conseqüências do Crime: as circunstâncias são as normais para o tipo penal, mas com um plus em que demonstra a ausência absoluta de medo de punição, acreditando na impunidade que rege os sistema brasileiro. Quanto às conseqüências do crime, é certo que são as normais à espécie também, que por si são muito graves, pois se trata de um Município onde falta dinheiro para tudo, a pobreza é generalizada, e o Governo Municipal mostrou-se ausente por muito tempo, deixando de promover serviços básicos, por certo, por falta de recurso. VII. Comportamento da Vítima: em nada contribuiu para a prática delitiva.
Diante disso, fixa-se a pena-base acima do mínimo legal, em 06 anos de reclusão e 100 dias-multa, sendo o valor de cada dia-multa 1/30 do salário-mínimo vigente à época dos fatos nos termos do Art. 49, § 1.º, do Código Penal. De fato, não há circunstâncias atenuantes e ou agravantes, tal como não há causa de diminuição ou de aumento da pena. A pena de multa deve ser direcionada ao próprio poder público municipal.
(...)
Para todos os réus:
1. Regime. O regime é o inicialmente semi-aberto, conforme Art. 33, § 2.º, “b”, e Art. 59 do CP.
2. Recurso. Autoriza-se o recurso em liberdade, até mesmo porque o(a,s) acusado(a,s) assim respondeu(ram) o processo.
3. Substituição da Pena. Deixa-se de substituir a pena privativa de liberdade aplicada por vedação nos termos do Art. 44 do CP, dado ao critério quantitativo.”

Sucintamente, o apelante busca a diminuição de sua pena-base porque não possuiria antecedentes criminais e não teria a personalidade voltada para o crime. A meu sentir, a pena estabelecida, de fato, merece ser parcialmente reformada, mas não pelos motivos apontados no recurso.
Isso porque, quanto aos antecedentes, não houve valoração negativa pela sentença. Aliás, está consignado, expressamente, “Antecedentes: não registra maus antecedentes”.
Quanto à personalidade do agente, não há desacerto na análise elaborada pela sentença, todavia, constata-se que o fato de: o agente ter assumido cargo público e se utilizado deste fato para a dilapidação do Erário, mediante procedimentos que fogem da legislação de regência foi valorado negativamente tanto na análise da personalidade do agente, quanto na dos motivos do crime.
Desta forma, verifica-se que uma mesma circunstância pessoal fora duplamente valorada, acarretando o bis in idem. Isso demanda que a circunstância judicial dos motivos do crime seja desconsiderada.
Diante disso, com base nas demais circunstâncias analisadas pela sentença, a pena-base deve ser fixada em 5 (cinco) anos de reclusão e 80 (oitenta) dias-multa. Na ausência de elementos modificadores, resta definitiva esta pena.
Tendo em vista que a pena estabelecida por este juízo ainda excede 4 (quatro) anos, resta impossibilitada a aplicação de regime prisional mais ameno e a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, em observância às restrições temporais estabelecidas pelo art. 33, § 2.º, ‘b’ e pelo art. 44, I, ambos do Código Penal.
2.2 – Jorge Yoshishilo Kobayashi:
O apelante sustenta que deve ser absolvido, por ausência de dolo, falta de provas do fato criminoso ou por atipicidade da conduta, eis que não tinha consciência de que o dinheiro que recebia do acusado Waldimiro seria oriundo do FUNDEF, bem como não tinha nenhuma atribuição de fiscalizar as despesas ou autorizar pagamentos.
A manutenção da condenação de Jorge Yoshishilo Kobayashi é medida que se impõe, por fundamentos bastante similares àqueles utilizados para fundamentar a de Waldimiro José Cotrim Moreira.
Na realidade, o apelante tenta justificar a sua conduta sob o argumento de que não tinha conhecimento de que o pagamento que estava recebendo seria oriundo do FUNDEF.
Com efeito, a questão já fora satisfatoriamente enfrentada linhas atrás. O ponto fundamental para a manutenção da condenação é que o acusado Jorge Yoshishilo Kobayashi compactuou com o pagamento antecipado de combustível com as verbas do FUNDEF. Isso é um fato confirmado por ele próprio.
Ainda que não fosse dele a atribuição de gerir as verbas do FUNDEF, ele era o Contador Municipal e, em particular, do FUNDEF. Nesta condição, tinha a obrigação de orientar todos os funcionários sobre a impossibilidade de utilização deste expediente, mas o conjunto probatório demonstra que ocorria exatamente o oposto, isto é, a orientação era exatamente para que se adotasse o procedimento em questão.
O trecho do depoimento judicial do apelante, colacionado anteriormente, deixa isso claro. Não fosse o suficiente, no mesmo depoimento, o recorrente deixa claro que o co-réu Waldimiro José Cotrim Moreira emitiu o cheque para a empresa Auto Posto Petrobrás e, em seguida, efetuou o pagamento da dívida particular, com o mesmo numerário (fls. 952-961):

“JUIZ: E que pertinência tem de relação, que relação tem entre esse movimento aqui e eventual dinheiro que o senhor tinha de crédito com o senhor Valdir- Como o senhor explica- Qual é o nexo entre isso aqui e o crédito do senhor, tem algum nexo-
INTERROGANDO: Doutor, isso daí eu não sei, eu recebi do Sr. Valdir Cotrim Moreira o meu dinheiro, é o que ele devia para mim. Quanto ao saque do banco eu não sei por quem foi feito, por que foi feito esse saque desse banco. Então não sei essa intermediação. Eu recebi o dinheiro do Sr. Valdir Cotrim Moreira, tá-
JUIZ: E para ele receber esse dinheiro que chegou a ele, o senhor teve alguma participação nisso-
INTERROGANDO: Não.
JUIZ: O senhor pagou-
INTERROGANDO: Não, não. Eu fiz só o processamento normal da contabilidade, pagando a empresa AUTO POSTO PETROBRAS.
JUIZ: E por acaso ele passou direto o cheque que ele recebeu da Prefeitura do senhor-
INTERROGANDO: Não, senhor, passou em dinheiro, foi recebido na minha casa um valor...
JUIZ: Em cheque-
INTERROGANDO: Não, foi em dinheiro.
JUIZ: Isso foi pago a ele com cheque, ou não-
INTERROGANDO: Foi pago para ele não, foi pago para a empresa AUTO POSTO PETROBRAS um cheque.
JUIZ: E a empresa era dele-
INTERROGANDO: Não, era de um outro senhor, eu não lembro o nome dele de memória, não.
JUIZ: Como é que o senhor justifica então o nexo de, se a empresa não era dele, como é que ele...
INTERROGANDO: Não. JUIZ: O cheque, o dinheiro que foi parar com o senhor, como é que o senhor, esclarece isso.
INTERROGANDO: Não sei, não sei se o cheque era dele, eu recebi do Sr. Valdir, agora, se a outra pessoa entregou o dinheiro para ele eu não sei. Nesse dia...
JUIZ: O senhor sabe direitinho como é que ocorreu esses pagamentos aqui desses dias aqui, como é que foi-
INTERROGANDO: Da forma que eu estou falando, ele assinou o cheque, quem recebeu foi a empresa AUTO POSTO PETROBRAS.
JUIZ: Ele, o Valdir-
INTERROGANDO: Não, a empresa AUTO POSTO PETROBRAS.
JUIZ: A empresa que recebeu então-
INTERROGANDO: A empresa que recebeu. E eu recebi do senhor--
JUIZ: Quem que assinou pela empresa, o senhor sabe-
INTERROGANDO: Não sei, não sei, os contratos não ficam na nossa mão, é outra pessoa quem toma conta de contratos.
JUIZ: Quem que efetivava o pagamento propriamente dito, a entrega dos cheques-
INTERROGANDO: A entrega dos cheques é feita do pessoal da contabilidade, tesouraria e já tem um pessoal já escalado para isso, faz-se o pagamento mediante o processamento contábil.”

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