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Caça às bruxas, a violência contra a mulher

* Por Breno Rosostolato - 21 de março de 2014 - 07:10

Uma verdadeira carnificina em relação às mulheres acontece todos os dias. Uma em cada quatro mulheres sofre com a violência doméstica. No Brasil, entre 2001 a 2011, estima-se que ocorreram mais de 50 mil, ou seja, em média, 5.664 mortes de mulheres por causas violentas a cada ano, 472 a cada mês, 15,52 a cada dia, ou uma morte a cada 1h30. Os dados foram divulgados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). O que chama mais atenção, além da violência gratuita, é que em pleno século XXI, tenho a impressão que essas agressões, pela crueldade e com requintes de uma barbárie, são equiparadas a uma época em que conceitos arcaicos predominavam as mentalidades da sociedade, a Idade Média. Uma época que não se foi, em que o homem não tinha valor nenhum. Tempos difíceis em que pessoas não viviam, mas sobreviviam em condições desumanas. O poder da igreja buscava se consolidar através da teocracia e para tal baseava-se no controle da sexualidade para defender seus interesses pessoais, como propagar a ideia de “danação divina” caso as pessoas fossem contra os preceitos de Deus.

A caça às bruxas é um elemento histórico da Idade Média e que aconteceu entre os séculos XV e XVI. O prazer sexual sempre foi alvo de represálias da igreja e do ascetismo religioso que prega a concepção de que os prazeres mundanos devem ser aniquilados em prol da fidelidade e obediência à Deus. Ao corpo atribui-se o lugar do prazer maléfico, logo, tudo que levasse a pessoa ao prazer era considerado pecado. A negligência ao corpo era sinal de redenção e uma tentativa de livrar-se dos prazeres mundanos, com isso, as pessoas não se lavavam e se torturavam para que não fossem assombradas pelos desejos mundanos. Foi a Santa Inquisição que em 1233, através do papa Gregório IX, instituiu o Tribunal Católico Romano, também conhecido como Tribunal do Santo Ofício e que tinha o objetivo de terminar com a heresia e com os que não praticavam o catolicismo. Em 1320 a bruxaria e a antiga religião dos pagãos foram consideradas uma ameaça ao cristianismo, que inicia, portanto, a perseguição aos hereges. Este período de assassinatos e de feminicídios se estendeu até e durante a Renascença.

Uma vez descoberto algo que denunciasse “feitiçaria”, a pessoa seria julgada e punida. Tudo serviria para incriminar uma mulher de bruxaria, desde sinais no corpo, considerados sinais demoníacos, ideias e reflexões que fossem intimidantes à igreja, posicionamentos sociais e políticos, pois, muitas mulheres participavam de revoltas camponesas, além do que mulheres parideiras e curandeiras eram acusadas de bruxaria por contrariar o poder médico que surgia. Mas nada foi tão culpado quanto a sensualidade das mulheres. Consideradas como amantes do diabo, o erotismo feminino foi considerado o grande malefício da sociedade. Muitas mulheres, inclusive, conduzidas à fogueira por despertarem o interesse sexual e acusadas de desvirtuaram os homens com atos libidinosos. Essas punições aconteciam em praça pública, para que todos pudessem ver e tinha pompas de um evento nefasto e mórbido, atraindo a atenção das pessoas.

Anna Pappenheimer tinha 59 anos em 1600, filha de coveiro, grupo de proscritos na Alemanha daquele tempo. Viviam na Baviera, controlada pelo jovem duque Maximiliano. Anna foi casada há 37 anos com Paulus Pappenheimer, um limpador de fossas. Tiveram sete filhos dos quais três sobreviveram. Denunciados como bruxos por um criminoso condenado, foram presos e levados a Munique. Após uma série de interrogatórios e de serem torturados no "strappado", instrumento de tortura que consistia em amarrar os pulsos da vítima atrás das costas e a corda passada por cima de uma viga. A pessoa era, repetidas vezes, içada e largada causando grande dor. Este processo terminaria na deslocação dos ombros da pessoa. Foi desta maneira que o casal começa se render e para diminuir o sofrimento, admitiram o pacto com o diabo. Anna confessou que havia voado em um pedaço de madeira para ir ao encontro do diabo, que havia feito sexo com seu amante demoníaco, matado crianças para fazer unguento com seus corpos e feito pó das mãos das crianças mortas. O ungüento e o pó, segundo ela, eram usados para cometer assassinatos. Condenados por feitiçaria, os adultos da família foram condenados à morte e a punição de Anna foi ainda mais sórdida. Ela foi despida e teve os seios decepados e colocados a força na boca de Anna e dos dois filhos, enquanto a cavidade do peito de Anna sangrava ininterruptamente. O ato de esfregar os seios decepados em torno dos lábios dos filhos é uma paródia com o papel de mãe e nutriz, sendo assim, uma tortura física e principalmente, psicológica. Após tudo isso, a família Pappenheimer foi obrigada a se ajoelhar diante de uma cruz e confessar seus pecados. Por fim, todos foram levados à fogueira, tendo o filho mais novo, e o único poupado da punição, acompanhado a morte de seus familiares.

Os crimes que presenciamos hoje contra as mulheres nos remete à idade das trevas, em que mulheres são tratadas como objetos e assassinadas porque não cumprem o papel retrógrado do passado, serem submissas e não contrariarem a posição arbitrária de seus homens. A “cultura do machão”, sustentado pelo sistema patriarcal, criou conceitos e estereótipos dos papéis sociais de homens e mulheres. Responsável pela perpetuação da misoginia, ou seja, a aversão às mulheres. Os homens deveriam ser soberanos e comandar a família, ser fortes e não demonstrar fraquezas, para tal, devem se impor, nem que para isso utilizem da violência. Controlar a esposa era uma características valorizada no machão, que enxerga a esposa como sua propriedade. Haja vista que para assegurar filhos legítimos, os maridos aprisionavam suas esposas em casa e restringiam a vida social delas. Uma maneira de coibir o adultério da esposa e garantir a legitimidade da paternidade. Mulheres subordinadas à dominação do marido é a regra básica do patriarcado que enaltece uma linhagem masculina.

O crime de muitos homens está associado ao medo das mulheres autônomas. Homens que são incapazes de lidar e compreender opiniões e ideias independentes ou contrárias às dele. Mulheres questionadoras e que não são subservientes. Mulheres que não se acovardam e enfrentam o mundo com determinação e aprenderam a dar vazão à seus desejos. Sentem prazer e não sentem vergonha ou culpa por isso. Homens preconceituosos que não sabem receber um “não” e que é a violência, evidência da inabilidade masculina de não renovar as mensalidades.

Muito embora esteja dando ênfase à violência física, refiro-me também a violência emocional e psicológica, aquela que possui como ingredientes gritos e xingamentos e ameaças constantes. Até mesmo uma “cantada” na rua como, “que gostosa” ou “eu chupo você toda”, não pode ser considerado como um galanteio, pois é invasivo e agressivo. A questão é que, o homem disposto a bater numa mulher quer torna-la uma “não mulher”. Este é o significado da violência, do estupro e dos assassinatos cometidos contra as mulheres. Os mesmos conceitos transmitidos nas punições às feiticeiras. Não seja feminina, não seja livre, não pense, não sinta prazer. Seja obediente e concordata.

Homens que cometem atos violentos contra uma mulher parecem ser guiados pelo Malleus Maleficarum, o temido “martelo das feiticeiras”, livro que serviria como um manual básico de caça às bruxas, aterrorizando suas companheiras com questionamentos, vigiando e sufocando-as como forma de controle. Homens que agem como inquisidores ou “alfinetadores”, carrascos que espetavam as mulheres para descobrirem marcas do diabo. Agulhas que são representadas através das ameaças, do medo e do abuso sexual, em que muitos homens se autorizam à vulgarizar uma mulher, simplesmente porque elas usam roupas curtas, coladas ao corpo ou porque acham que um decote é um convite para ela ser devorada. A divisão errônea da mulher em damas e feiticeiras, ou seja, Maria, a virgem santificada ou Eva, a eterna pecadora é demasiadamente, anacrônica.

A violência contra a mulher, doméstica ou não, diminuirá quando for revista a legislação que pune crimes deste tipo e denúncias acontecerem de maneira efetiva. Para se ter uma ideia, conforme ainda pesquisa do IPEA, 94% das mulheres conhecem a Lei Maria da Penha, mas apenas 13% sabem seu conteúdo. Talvez por isso um número irrisório de denúncias, a falta de conhecimento dos próprios direitos e como se defender desta violência. Ao primeiro sinal de comportamento hostil e agressão do companheiro, e, portanto, revelado o perfil agressor, a denúncia é imprescindível para coibir a violência. Quando a ideologia de dominação e opressão acabar, talvez tenhamos uma sociedade em que homens e mulheres consigam ser parceiros e aliados, e que o respeito prevaleça sobre a rivalidade.

* Breno Rosostolato é psicólogo e professor da Faculdade Santa Marcelina - FASM

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