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Bruxa da Sapolândia: a história que de tanto assombro virou lenda urbana

Campo Grande News - 17 de agosto de 2014 - 07:52

Apelidada de bruxa, Célia aparece ao lado de cova rasa no quintal de casa.
Apelidada de bruxa, Célia aparece ao lado de cova rasa no quintal de casa.

Primeiro de julho de 1971, Campo Grande, Mato Grosso. Um documento põe em liberdade Célia de Souza, 51 anos. Absolvida, fica para trás a acusação de ser uma fria assassina de crianças. À frente, não se tem mais notícias da mulher que deixa a cadeia para se eternizar no imaginário de uma cidade como a Bruxa da Sapolândia.

Mais de quatro décadas depois, a história sobrevive na base do boca a boca. E tanto há quem não acredite no fato, como aqueles que acham que ela morreu na cadeia ou que a polícia encontrou dezenas de cadáveres de meninos e meninas no quintal da casa, hoje rua Dracena, na mesma Vila Afonso Pena, que de tanto brejo só poderia ser conhecida à época como uma sapolândia.

Nesse aniversário de 115 anos, o Campo Grande News traz documento de 1969 a 1971, quando a trajetória de Célia foi registrada. O processo criminal 22/69 faz parte do projeto Memória Judiciária do TJ/MS (Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul).

Os arquivos revelam que a história começa em 11 de janeiro de 1969, na delegacia de polícia do bairro Amambaí. José Fernandes, acompanhado do cunhado Bertolino Larson, relata ao delegado uma história de assombrar.

Quatro crianças foram mortas por espancamento, fome, maus-tratos e rituais de “saravá”. Das vítimas, três foram enterradas nos quintais de duas residências.

A polícia foi a casa de Célia, presa de imediato, junto com o amásio João Luiz da Silva, 27 anos, e o próprio Bertolino. No quintal, ela indicou onde estavam enterrados duas crianças, um menino e uma menina: Jesus Aparecido Larson, que morreu em agosto de 1967, e Dirce Silva, falecida em maio de 1967.

A retirada dos corpos, sepultados em covas rasas, foi acompanhada pela imprensa, que eternizou em fotos a mulher agachada ao lado de um caixão e fumando cigarro. A notícia que alarmou os moradores da cidade relatava que Célia era macumbeira e matou as crianças em bárbaros rituais de saravá.

“Num caixão tosco, a 3 palmos de fundura, sepultou o corpo de Jesus Aparecido Larson, de três anos, filho de Durvalino (na verdade Bertolino) e Luzia Larson, Dirce, de 7 anos, filho de Manoel Joaquim e Júlia de tal, foi sepultada apenas envôlta numa rêde também à cêrca de 3 palmos”, noticiou o jornal Diários da Serra em 12 de janeiro de 1969. Ela também foi denunciada pela morte de um menino, que morreu em janeiro de 1969 e foi sepultado no cemitério.

No depoimento, José Fernandes, afirma que os três casais chegaram a dividir o mesmo teto e que as crianças davam banho em Célia e João Luiz. A comida era folhas de cenoura e feijão carunchado. “E quando matava galinha fazia com que aquelas pessoas comecem as penas e tripas”. Na casa, moraram, ao menos, 11 crianças. Na casa de mãe de Célia, foram encontradas duas crianças em “deplorável” estado de saúde, levadas para a Santa Casa.

À polícia, Célia negou os maus-tratos e disse que as mortes foram por causas naturais. Já o relato de João Luiz fala em saravá e maus tratos.

“O qualificado era ciente de que Célia pegava menores para curar e cuidar, porém isto não fazia, porque não fornecia aos referidos menores uma alimentação sadia e um conforto condigno, os espancando, resultando desses espancamentos de quatro dêles faleceram; que por várias vezes ele qualificado também foi espancado por sua amásia por não querer compartilhar de seus instintos bestiais de fera humana”.

Bertolino também afirmou que as crianças morreram devido a espancamento e maus-tratos. Na delegacia, ainda disse que praticamente fugiu da casa de Célia em companhia da família.

Em juízo, Célia afirmou que falou para os pais levarem Jesus Aparecido ao médico, mas os pais diziam só confiar nela e que a mãe não quis que o menino fosse enterrado no cemitério. João Luiz, por sua vez, disse não saber de nada e que quase não parava em casa. “Vendo apenas umas crianças brincarem lá”.

No curso do processo judicial, atuou até mesmo o ex-senador ex-prefeito Juvêncio César da Fonseca. À época defensor público, ele foi nomeado para atuar na defesa de Célia em uma única audiência, diante da ausência do advogado da ré. “Não me recordo. Trabalhava demais, era muita gente na Defensoria”, conta. O fato foi em 17 de junho de 1969.

Na defesa, o advogado Odir Vidal aponta que a Célia acabou protagonista da “sanha policial com ânimo sanguinolento de perturbar a Justiça injustiçando uma pobre mulher que serviu de pasto ao noticiário impudico e sem entranhas da empresa desenfreiada e desabrida”.

Na sentença que absolveu os três acusados, o juiz da 5ª Vara, Milton Malulei afirma que não há nexo causal entre as lesões e a morte.

“Ora, está patente no autos que nem direta, nem indiretamente, tais lesões restaram provadas. Como então, admitir-se como provada a morte dos menores em consequência de tais lesões? Morreram, é verdade que sabe lá, se não foi como tem morrido milhares de seres humanos, vítimas de suas próprias desgraças: a ignorância, o desamparo, a desnutrição, a fome e a debilitação. A decisão foi publicada em 24 de maio de 1971. A história documentada acaba em primeiro de junho de 1971, com o alvará de soltura.

Quatro décadas depois - Quatorze de agosto, Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Na rua Dracena, Vila Afonso Pena, região do Taquarussu, até mesmo que só está “parando” na cidade conhece a fama do lugar. “Na época, morava em Fátima do Sul. Não sei contar a história, mas lembro de ter ouvido”, diz o solícito Oliveira José Palma, 79 anos, que logo indica a casa onde morou Célia de Souza.

O dono do imóvel não está, mas os serviços gerais Marcos de Oliveira, 36 anos, faz as honras da casa. Desde 2005, ele mora no terreno, perto da casa atração do bairro.

Ele conta que já recebeu muitos curiosos. Gente que vai tirar foto e até um estudioso estrangeiro. “Ele me disse que parece a história da bruxa de Blair”, diz. Entre os visitantes, ele garante ter até mesmo quem pague para levar terra próxima do imóvel.

Enquanto muitas galinhas circulam pelo quintal, Marcos conta que cachorro não fica por perto. Além disso, já viu vultos e que o ar fica “pesado” no Dia de Finados.

De concreto, relata que o maior susto foi ter encontrado um caixão no forro da casa. “Foi em 2009, o caixão era grande, não tinha pintura e estava cheio de roupas de criança”, diz. Em seguida, completa que o objeto pode ter sido obtido de uma fábrica de caixão que funcionava nas imediações.

Há 40 anos no bairro, há tempo de ver a farra dos sapos no brejo, Ester Barbosa de Souza, 70 anos, afirma já ter ouvido a história, mas duvida que tenha sido verdadeira. Aliás, a proporção foi tão grande que se fala em até 20 crianças enterradas no quintal.

Entre o diz que me disse, a construção de madeira parece parada no tempo. Dando a estranha impressão que tanto pode ser 1969, quanto 2014.

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