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Artigo: O pior juiz, por Flávio Paranhos

Revista Bula/ Flávio Paranhos - 14 de abril de 2010 - 16:27

Costumo abrir o curso de ética para alunos da graduação em Medicina da PUC-GO de uma forma, digamos, um tanto inusitada. Escrevo no quadro, bem grande: Eu não presto. Daí peço para que leiam. De início, desconfiados, imaginando estar na sala errada, ou que o professor seja maluco, leem baixinho. Então os provoco até que atinjam o grau de catarse desejado por mim (alguns capricham até demais, numa espécie de confissão pública, vai saber). Sim, há um propósito nisso. Aliás, dois. O primeiro é ilustrar uma versão da falácia naturalista (do ser não se deriva necessariamente o deve ser — da constatação de que o ser humano não presta não se segue que ele não deva prestar).

O segundo propósito é o que me traz aqui. Pretendo que questionem a crença de que está tudo bem se fazemos algo em acordo com nossa consciência. Ora, quem é “nossa consciência”, essa coisa que enchemos a boca pra falar? Nós mesmos. Há, porventura, algum juiz mais complacente conosco do que nós mesmos? Quantas vezes nos perdoamos por pecados, pecadilhos e, em alguns casos (quiçá raros), pecadões nossos? Construímos labirintos lógicos (e ilógicos) de auto-convencimento da nossa mais absoluta inocência. E, olha só, somos o melhor advogado do mundo, pois sempre nos convencemos.

Claro, há gradações de consciência. Há a raríssima raskolnikoviana (de Raskolnikov, em “Crime e Castigo” de Dostoiévski), que é consumida pela culpa até ficar literalmente doente e se entregar. Há a judahiana (de Judah, o médico de “Crimes e Pecados” de Woody Allen), que até se consome um tanto pela culpa, mas racionaliza-a até se perdoar. Por fim, há a mirandiana (do médico Roberto Miranda, da peça e filme “A Morte e a Donzela”, de Dorfmann/Polansky), que não se deixa afetar por culpa alguma e está mesmo absolutamente convencido de que fez o correto.

Eu sempre imaginei que a primeira e a última fossem extremos, de frequência rara na humanidade. E que a do meio (a “judahiana”, que se mortifica, mas não a ponto de adoecer ou se entregar) fosse mais comum. Entretanto, os acontecimentos recentes têm provado diferente. Os protagonistas dos mensalões do PT e do Dem e sua asquerosa tática comum de negação da culpa (“é caixa dois de campanha” e “todo mundo sempre fez isso”) são um exemplo.

Mas o exemplo mais grave e estarrecedor é a reação do pai da menina Isabela Nardoni. Admitindo que ele seja de fato culpado pelo assassinato da filha, já que as evidências apontam para isso, é inacreditável que não tenha sido consumido pela culpa ao ponto de adoecer, ou mesmo, quem sabe, no limite, tentar acabar com a própria vida (não estou dizendo que deveria fazer isso, mas, sim, que seria compreensível que o tentasse, movido por profundo arrependimento). Fico imaginando que espécie de cálculo, que artimanha mental sua consciência faz para absolvê-lo.

Não que uma tal monstruosidade seja inédita. Infanticídios, parricídios, fratricídios e homicídios de toda forma abundam na história da humanidade. O que não significa que devamos nos conformar.

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