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Artigo - A Fundação de Cassilândia: Um campo de disputas

Ciro Rocha Jr - 03 de agosto de 2012 - 08:15

Artigo que trata da história da historiografia de Cassilândia. Foca a visão de diversos pioneiros, aponta as contradições e procura desfazer distorções ocorridas nos trabalhos anteriores, seja por interesses particulares, seja por falta de fontes fidedignas.

A FUNDAÇÃO DE CASSILÂNDIA: Um campo de disputas

Ciro Rocha Jr.

RESUMO

Três personagens disputam o título de principal fundador de Cassilândia: Joaquim Balduíno de Souza ? defendido por Corino Rodrigues de Alvarenga; Amin José ? defendido por ele mesmo; e, por fim, o senhor Sebastião Leal ? defendido por sua viúva Hermelina Barbosa Leal. Há, portanto, uma divergência em torno da questão da fundação da cidade entre as obras que temos em mãos. Por isto apresenta-se neste artigo uma descrição dos eventos da fundação de acordo com a ótica de cada autor. Para completar, avalia-se o papel atribuído pelo autor aos personagens que concorrem ao posto de fundador de Cassilândia. A finalidade desse procedimento é apanhar o discurso historiográfico cassilandense em seu campo de debates. Atenta-se aqui para os confrontos intertextuais para desvendar as ?intenções? políticas de cada historiador.

PALAVRAS-CHAVE: 1. Historiografia 2. História Oral 3. Fundador de Cassilândia

A ÓTICA DE HERMELINA BARBOSA LEAL.

A ótica de Hermelina Barbosa Leal sobre a fundação de Cassilândia se encontra, a princípio, na descrição das condições da viagem, nos idos de 1920, de Paranaíba a Cassilândia. Apresenta, logo depois, os fazendeiros que já viviam na região da futura cidade de Cassilândia à década de 1920. A saber: Antônio Paulino, Isaías Teixeira Borges e Evangelista Cândido de Oliveira.
Logo depois, narra a vinda daqueles que considera como os principais agentes da fundação da cidade: em 1926, vindo ?das bandas de Patrocínio, Minas Gerais?, Joaquim Balduíno de Souza ? o Cassinha. Logo em seguida, narra a chegada e estabelecimento de Sebastião Leal, seu irmão João dos Santos Leal e suas mulheres e filhos. Sebastião Leal veio de Santana do Paranaíba, em 1936.
Antes mesmo de narrar a chegada de Amin José ? a quem, como veremos, a autora atribui papel menor na obra de fundação ? Leal narra os eventos da criação da cidade. O primeiro passo neste sentido teria sido dado por Sebastião Leal e Antônio Paulino; eles teriam resolvido requerer as terras do vale ao Estado, pelo usucapião. Para isso, teriam organizado uma reunião com os posseiros da região. Decidiu-se, na referida reunião, que Sebastião Leal iria a Cuiabá, fazer o requerimento. Antônio Paulino, por ser estrangeiro (espanhol), não poderia, à época, fazer tal trabalho. Daí, segundo a senhora Leal, ter ficado com os demais posseiros no vale do Aporé. Sebastião Leal, portanto, teria escriturado todos os posseiros.
De acordo com Leal, ?o segundo pensamento de seu marido foi fundar uma cidade, onde teria escolas para seus filhos e também facilitaria o pagamento de impostos, pagos em Paranaíba, sobre o dorso de animais, o que tornava tudo mais difícil e cansativo?. Em fevereiro de 1943, com o advogado Wlasdislau Garcia Gomes, de Paranaíba, Sebastião Leal convoca uma reunião e explica à todos a necessidade de fundarem uma vila.
Logo depois, teria contemplado o vale e ?o seu espírito de bandeirante lhe ditou que seria ali o lugar ideal para uma cidade?. O lugar escolhido pertencia a Joaquim Balduíno de Souza. Este permitiria a formação do povoado em suas terras, doaria o terreno para a construção da igreja ao santo de sua fé ? São José. Em troca, a vila deveria se chamar São José da Cassaria, em homenagem a seu santo e a seu próprio apelido (Cassinha). A maioria discordou do nome, acharam-lo feio, até que Isaías Cândido Barbosa propôs Cassilândia, nome derivado de Cassinha ? o apelido de Joaquim Balduíno. Todos concordaram, inclusive Cassinha. Quanto ao nome da igreja, ficou São José em homenagem ao santo de devoção do senhor Balduíno.
Em meados de 1940, segundo Leal, Cassinha ?adoece da cabeça?. Logo que melhora, é assassinado a facadas na balsa sobre a qual fazia a travessia entre Goiás e Cassilândia. Sebastião Leal, então, ficou ?envolvido com a construção da cidade e encarregado de inspecionar e orientar o inventário a pedido da viúva? de Joaquim Balduíno de Souza. Sebastião Leal teria comprado as terras à viúva de Cassinha, feito lotes, registrando-os ?na forma da lei? e teria dado continuidade à venda de lotes, iniciada por Cassinha. Leal teria feito, ainda, a planta da cidade e com seu irmão e particulares efetivado o trânsito rodoviário entre Cassilândia e Santana do Paranaíba, além de construir o campo de aviação... enfim, dá continuidade à obra de edificação da cidade. Em outubro de 1948, o povoado é elevado à categoria de distrito de Paz. Em 31 de julho de 1954, enfim, Cassilândia seria elevada à categoria de município.
Já no que se refere à ação pioneira de Joaquim Balduíno de Souza, em relação a Sebastião Leal, há algumas controvérsias no posicionamento da autora de Cassilândia de meus Amores. É sem dúvida, como veremos, que a autora se armou de algumas estratégias para minimizar o papel de Cassinha e maximizar o de Sebastião Leal. O papel de Joaquim Balduíno de Souza, segundo a senhora Hermelina Barbosa Leal, não inclui nenhuma iniciativa idealizadora. O idealizador, pelo contrário, teria sido apenas Sebastião Leal. Ele, com Antônio Paulino ? teria requerido as terras pelo usucapião aos posseiros; teria tomado a iniciativa, também, de fundar a cidade e coube a ele, ainda, segundo a autora, convocar a reunião para comunicar aos demais sobre a necessidade de uma vila. Depois, ainda, teria escolhido o terreno, comprado terrenos, etc...
Entretanto, aí surge um problema, que embora não formulado explicitamente, a autora teve que responder: se a Sebastião Leal coube o principal papel na obra de fundação, como explicar que o nome da cidade contemple Cassinha e não ao senhor Leal? O nome da cidade não seria um indício de que o principal agente na obra de fundação fora Cassinha? Já vimos como a autora responde a estes problemas. Segundo sua narrativa, o nome não contemplou o idealizador da cidade, mas aquele que doou as terras onde a cidade idealizada por Sebastião Leal deveria se erguer. Com esta estratégia discursiva, parece-me, a autora visa acabar com a suspeita de que o nome de Cassilândia seja uma homenagem ao fundador Cassinha. Não, segundo a narrativa de Leal, este nome só homenagearia o doador das terras, não o idealizador da referida cidade.
Segundo a visão da autora, portanto, Cassinha teve um papel menor. A narrativa de Hermelina Barbosa Leal não confere a ele iniciativa alguma. A Cassinha coube, apenas, doar as terras escolhidas por Leal para a igreja e cidade. E, além disso, demarcar a primeira rua, fazer e vender os primeiros lotes. No entanto, depois veio a loucura e a morte. E isso teria favorecido ainda mais o destaque de Leal na obra de fundação. Nas palavras da senhora Leal, ?a obra do sonhador (Cassinha) continuaria, agora dirigida por seu amigo Sebastião Leal, outro idealista?...
É aí que está a controvérsia. A princípio, o papel de idealizador é todo de Leal. Depois a autora se trai pelas palavras, pois Cassinha aparece, na citação acima, como ?sonhador? que começa uma obra e como idealista, já que a senhora Leal chama seu marido de ?outro idealista?. Outra traição das palavras: no referido trecho, Sebastião Leal é rebaixado da posição de pioneiro idealizador para a condição de continuador da obra de Cassinha. Além disso, a obra de Sebastião Leal parece depender da morte de Cassinha para ser elevada a primeiro plano.
Noutra parte, após falar sobre a morte de Cassinha, novamente a autora coloca este no pedestal de iniciador e Leal no de continuador. Diz a autora: ?mas a obra do sonhador (Cassinha) continuaria, agora dirigida por seu amigo Sebastião Leal, outro idealista?. O ?agora? (ou seja, após a morte de Cassinha), sugere que até então Cassinha dirigisse a obra de fundação, e que só ?agora?, após o evento morte de Cassinha, Sebastião Leal teria sido alçado ao primeiro plano em tal obra. Portanto, partindo desse princípio, Sebastião Leal não poderia ser o idealizador de Cassilândia e iniciador da obra de fundação.
Ainda em outra parte do livro de Hermelina Barbosa Leal, Cassinha e Sebastião Leal são colocados em pé de igualdade. Diz a autora: ?os fundadores de Cassilândia foram, Joaquim Balduíno de Souza (...) e Sebastião Leal?.
O que essas contradições revelam? Que, como os lotes ficavam nas terras de Cassinha, este, após a iniciativa fundadora de Leal, teria se ocupado do grosso da obra de fundação e que só depois da morte de Cassinha, Leal teria ocupado este posto? Ou que Cassinha, de fato, teve um papel no campo da idealização e iniciativa de fundação, mais amplo do que a senhora Leal queira admitir?
Esta exaltação de uma individualidade como agente principal da história revela um traço comum à historiografia cassilandense: a ?cultura da personalidade?. Uso o termo no sentido utilizado por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil2. Neste livro, Sérgio Buarque de Holanda diz que o traço mais decisivo que o português nos comunicou foi o da ?cultura da personalidade?. Este traço penetrou na sociedade brasileira ? talvez tomando matizes particulares conforme as regiões e a época em questão ? por herança ibérica como encontrou, no nosso modo de organização social terreno propício para vicejar. Creio que Mato Grosso do Sul e, mais particularmente Cassilândia, desenvolveram condições econômicas e sociais adequadas para o implante desta ?cultura da personalidade?.
De acordo com Sérgio Buarque, o ?terreno? propício a esta ?cultura?foi a nossa tradição rural e patriarcal. Este modelo familiar ? com o patriarca sendo o centro da autoridade ao qual estavam ligado por lanços de sangue e afetividade a família, os escravos e agregados, de tão arraigado, serviu, segundo Sérgio Buarque, de modelo para a vida pública e para toda a esfera social colonial. As características desse personalismo: a ordem particular se impondo à ordem coletiva, a obediência à autoridade, o apego às tradições em oposição à novidade, e os laços de afeto, sentimento e emoção sobrepujando a abstração, a razão3.
Neste estudo, interessa-nos sobretudo esta última característica. Em Hermelina Barbosa Leal isso aparece na exaltação a seu marido ? o ?patriarca Sebastião Leal, a quem a autora faz questão de frizar pertencer à ?tradicional família dos Garcia Leal dos Sete Orelhas?, numa demonstração de deslumbre face as tradições de família ? um traço comum, aliás, à esta mentalidade presa a cultura da personalidade.
Nada na obra de Hermelina Barbosa Leal denuncia uma relação mais estreita com o raciocínio lógico e com as técnicas de investigação e interpretação de fontes históricas. O pano de fundo desta narrativa expressa muito bem a cultura da personalidade: ao invés da razão, a narrativa é fundada em afinidades de família, no sentimento e na exaltação da personalidade particular, ao invés das forças coletivas.
Além da exaltação a personalidade de seu marido, o devir histórico é visto, em Barbosa Leal, como conseqüência da ação pioneira, da ação de homens, de personalidades. As circunstâncias históricas, econômicas, geográficas, impessoais, são esquecidas. Tudo é depositado na personalidade, na vontade e ações individuais4.
Essa cultura da personalidade, aliás, encontrou condições propícias para se estabelecer no Mato Grosso do Sul. A grande propriedade rural predominando e influenciando a vida citadina, por muito tempo, a distância e o descaso das autoridades públicas centrais em relação a região. Tudo isso contribuiu para o desenvolvimento do poderio do coronelismo no sul do Mato Grosso.
É verdade, no entanto, que Cassilândia começa a se erguer numa época em que os poderes públicos já começavam a atuar com mais energia no Mato Grosso do Sul. Foi a partir da ação centralizadora do Estado Novo que isso se tornou uma realidade. Postos do exército foram designados para atuar na região e combater os bandidos. O coronelismo foi golpeado pelo avanço das instituições governamentais, pela abertura de estradas e incremento dos meios de comunicação e policiamento em geral5.
No entanto, tradições tão vigorosas não acabam por meio de decretos: ?por muito tempo, permaneceram, ainda, as mesmas circunstâncias favoráveis e o mesmo contexto sócio ? econômico que fomentou a violência e caracterizou por muito tempo a região de Mato Grosso e, em especial, o sul do Estado, como terra de bandidos, de violência e de povo armado6?.
Cassilândia nasce, assim, como uma ilha em meio ao mundo rural. E já nasce num momento de confrontos entre a ordem familiar privada e o avanço do mundo moderno, que fere as formas tradicionais de vida. Daí o apego da autora ? Hermelina Barbosa Leal ? a este passado que à época em que o livro foi escrito (1983) estava em decadência. A decadência desse mundo ao qual a autora se liga por laços afetivos talvez explique, também, o porquê dela se esquivar de falar das violências, de possíveis lutas entre famílias inimigas; a autora visa reconstruir seu mundo de uma forma ideal e para isso retira todas as ?nódoas? que pudessem manchar sua imagem de cidade, onde segundo Leal ? todos viviam como uma ?família feliz?.

A ÓTICA DE CORINO RODRIGUES DE ALVARENGA

Corino Rodrigues de Alvarenga, assim como Hermelina Barbosa Leal, também faz uma exaltação ao particularismo. Sua obra, como veremos, narra a saga de indivíduos e famílias tradicionais da região. No entanto, o posto de principal agente na obra de fundação não é atribuído a Sebastião Leal. Para Alvarenga, Cassinha foi o idealizador e iniciador do povoado de São José ? futura Cassilândia.
A obra de Alvarenga, aliás, apesar de não referir explicitamente ao fato, faz oposição ao discurso histórico de Hermelina Barbosa Leal. Um redator anônimo comprova esta tese, ao escrever na orelha do livro A Verdadeira História de Cassilândia que Alvarenga foi convidado a compor sua obra porque havia ?grandes contradições a respeito da história da cidade?. Como o livro da senhora Leal já circulava há três anos, creio que este deveria ser pelo menos um dos responsáveis, segundo a visão do referido redator, por fazer circular tais contradições. O próprio título da obra de Alvarenga revela o caráter combativo de seu discurso: A Verdadeira História de Cassilândia; título que sugere haver, de seu próprio ponto de vista, a falsa história da cidade.
A princípio, o autor narra a história de Joaquim Balduíno de Souza em ?Cassinha e a longa viagem?. Fala de seu nascimento, primeiros trabalhos, casamento e viagem para Cassilândia. Destaca, sempre, os obstáculos superados por seu herói. É a saga de Cassinha, de seu nascimento ao estabelecimento na região da futura Cassilândia. Trata-se de uma concepção romanesca da história, segundo a qual há uma superação heróica das barreiras que provam a tenacidade dos agentes sociais. Cassinha, no caso, é o herói que supera as barreiras da pobreza, da rudeza do meio em que nasceu, da viagem ao vale do Aporé, na qual teria curtido fome, até, enfim, idealizar e dar início, mesmo com todo o ceticismo dos que o rodeavam, ao povoado que viria a ser a futura Cassilândia.
Na região do vale do Aporé, inicia-se a ação fundadora de Balduíno: a princípio derrubar o mato, plantar, criar, vender. Depois, em ?A Brilhante Idéia7?, após atestar a capacidade de Cassinha como trabalhador e vencedor das difíceis condições do meio através da construção de engenhocas que lhe facilitariam os trabalhos no campo, narra como teria começado Cassilândia ? ?o sonho de Joaquim Balduíno de Souza?.
Cassinha, segundo Alvarenga, teria comunicado sua idéia, pela primeira vez, em casa do fazendeiro Isaías Bito. Estariam presentes: Isaías Bito, Amin José e dona Tonica, mulher de Bito. ?Lá ? diz Alvarenga ? tocou no assunto sobre a construção de um povoado para substituir aquelas densas matas e coisa e tal8?. E, para isso, queria que o senhor Isaías Bito cedesse um pouco de suas terras. Dona Tonica teria sido contra. E o senhor Isaías Cândido Barbosa (Bito) acata a recusa da mulher. Cassinha, então, teria falado sobre a construção do povoado a uns roceiros. Foi taxado de louco. Persistiu, no entanto, na idéia. E resolveu começar tudo em suas terras, com apoio de umas poucas pessoas. Achou o lugar ideal em suas próprias terras. E deu início aos trabalhos de fazer o loteamento e ruas.
Desde o início da narrativa sobre a saga de seu ?herói?, o autor destaca as qualidades criativas e de trabalho de Cassinha. A narrativa é estruturada de modo a dotar o personagem principal dos atributos que comprovam sua capacidade para ?a grande obra?: a construção da cidade. Quando empregado de Isaías Bito, de acordo com Alvarenga, ?o mineiro desbravador construiu de início um açude, cercas, pequenas obras rústicas de grande utilização a seu Isaías Bito, além de uma infinidade de outros trabalhos roceiros9?. O patrão, assim, teria passado a admirar ?sua grande determinação e iniciativa?. E ainda: ?havia nele (no Cassinha), de acordo com o depoimento tomado pelo autor a Sebastião Silva Borges, qualquer coisa de diferente (...). De um pedaço de pau bruto ele construía uma ferramenta ou qualquer coisa de utilidade10?. A obra de construção da cidade, assim, é atribuída às qualidades de Cassinha. Quais sejam: a iniciativa, a determinação, a criatividade.
Como se nota, a narrativa se estrutura de modo a atestar o potencial de Cassinha para a construção do povoado. E toda a iniciativa da fundação é atribuída a Joaquim Balduíno de Souza: da idealização ao início das obras. Sebastião Leal nem é mencionado nesta etapa inicial da construção do povoado. Pela ótica de Alvarenga, é Cassinha quem teve a idéia e a comunicou, quem escolheu o local da edificação e quem iniciou os trabalhos de idealização e execução. Cassinha é, de acordo com Alvarenga, o principal agente da fundação. Os outros seriam continuadores. Diz o autor: ?o ideal, hoje, uma realidade inconteste, tinha um dono: Joaquim Balduíno de Souza, o Cassinha11?.
A Sebastião Leal o autor atribui a tarefa de continuador da obra de fundação após a morte de Cassinha.
?Em que pese ? diz Corino Rodrigues de Alvarenga ? a dor haver impregnado o seio da família Balduíno, e o da cidade, novos homens assumiram o trato firmado por Cassinha e prosseguiu-se a obra. A dificílima obra: transformar aquela plaga numa cidade digna (...). Liderando, com seu espírito de desenvolvimento, destaca-se Sebastião Leal, já falecido12?
Leal, portanto, é colocado no posto de líder dos continuadores da obra de fundação de Cassilândia. Corino Rodrigues de Alvarenga lhe atribui os seguintes papéis: o de requerer as terras dos pioneiros ao Estado pelo usucapião, o de fazer a planta da cidade, o de cortar a área para a paróquia São José, a abertura da estrada para Paranaíba em 1974, a de construção do campo de aviação (inaugurado em 1948), o de ter trazido, como prefeito, a primeira agência de Correio e Telegrafo (1956) para Cassilândia, o de ajudar na inauguração do primeiro hospital.
Enfim, mais uma vez, repete-se um traço comum na historiografia cassilandense: o personalismo; a exaltação à personalidade. É como se o devir histórico fosse quase que exclusivamente movido pela vontade individual.


A ÓTICA DE AMIN JOSÉ

Dois problemas se colocam à apresentação do ?ponto de vista?de Amin José sobre a fundação de Cassilândia. A saber: o libelo A Visão de Um Pioneiro, ainda que seja verdade que fora baseado nas anotações que José fazia sobre ?os primeiros acontecimentos da cidade?, teria sofrido interferências na ordem da disposição dessas anotações. Desse modo, já que não conseguimos, por mais que tentássemos, os originais manuscritos, não podemos avaliar o teor dessas alterações. Elas modificam ou não algo da ?ótica do autor?? E se modificam, em que sentido modificam e quais os significados de tais modificações? Isso não podemos avaliar, por enquanto.
De qualquer modo, o libelo atribuído ao senhor José também traz os traços personalistas que apresentaram as obras verificadas anteriormente. Entretanto é aí que se impõe um segundo problema: o senhor José era libanês; desse modo, seria preciso conhecer melhor as condições de sua sociabilização no Líbano antes de vir ao sertão do sul do Mato Grosso. Em que medida andam as diferenças e semelhanças culturais libanesas e matogrossenses? Este é outro problema que, na altura em que estes estudos se encontram, não podemos solucionar. Isso demandaria mais tempo e recursos financeiros para a continuidade da pesquisa.
De qualquer modo, os mesmos traços personalistas encontrados em Alvarenga e Leal, encontramos nas notas atribuídas a José. Em que pesem esses problemas não solucionados, uma ?coisa? é certa: as filhas do senhor Amin José, ao tomarem a iniciativa da edição de suas notas, prestaram um louvor à memória do patriarca José. Desse modo, este libelo tem, como o da senhora Hermelina Barbosa Leal, as intenções de exaltar o próprio nome da família Amin. Realçar a memória de um antepassado, assim, é uma forma de angariar prestígio social aos membros da família. A memória não é isenta de intenções políticas. Neste caso, ao visar perpetuar o nome do patriarca José, suas filhas, mesmo que talvez inconscientemente, realçam seu próprio nome de família e, desse modo, manifestam a mesma mentalidade personalista dos autores que já tratamos. Feitas estas observações, podemos iniciar a exposição e análise do ponto de vista de Amin José sobre a fundação de Cassilândia. Iniciemos com os dizeres do próprio José:

Por muito tempo ? diz o autor ? anotei os primeiros acontecimentos da cidade, convicto de que seriam interessantes, não como algo expressivo na história da cidade, mas como complemento de pequenos fatos que muitas vezes se perdem no tempo e nunca mais são lembrados e sempre achei que o melhor e o mais gostoso numa história são as coisas simples que um dia todo mundo quis saber e não pode13.

Tomando essas palavras ao pé da letra, o objetivo do autor seria apenas informar os leitores sobre pequenos fatos que geralmente se perdem. E há, mesmo, uma série de pormenores narrados em A Visão de Um Pioneiro. No entanto, esse objetivo explícito de testemunhar pequenos fatos, oculta um outro, perceptível apenas quando se lê integralmente a obra. A saber: o de exaltar a ação pioneira de Amin José.
Logo à quinta página do libelo duas fotos, uma de Amin José e outra de Cassinha, indicam a posição de destaque que A Visão de Um Pioneiro atribui ao senhor José. Abaixo da foto do ?autor?, seguem os dizeres: ?Fundador Idealizador?. Do mesmo modo, abaixo da foto de Cassinha segue outra nota: ?Fundador Executor?.
O papel de idealizador, no libelo, aparece como sendo o principal. A propósito, até 1977, ano da morte do libanês, a impressão que A Visão de Um Pioneiro deixa é a de que a História de Amin José e a de Cassilândia se confundem. Vejamos, antes de mais nada, como o autor narra essa história de fundação.
Toda a iniciativa, na obra considerada, é atribuída a José - da idealização ao início dos trabalhos. Em primeiro lugar, Amin José teria solicitado a Isaías Bito um espaço para uma vila e futura cidade. Diante da recusa do senhor Bito, José teria procurado outro fazendeiro ? o senhor Joaquim Balduíno de Souza. Este cederia as terras, mas teria se recusado, de inicio, a ajudar na construção da cidade. Assim, José seria o único responsável pelo início da empresa. Para começar a desenvolver o vilarejo, constrói a primeira casa. Começa a residir nesta a 15 de dezembro de 1944. E então inicia outros trabalhos: derrubar o mato e fazer rua. Cassinha o incentivaria. Por causa desse incentivo e por Cassinha ter doado as terras, o senhor José teria batizado a primeira rua da cidade de Joaquim Balduíno de Souza.
De início, Cassinha teria se restringido, segundo José, a doar as terras e incentivar o trabalho. Aos poucos, no entanto, foi se envolvendo com a construção da vila. E assim, ia se tornando ?fundador executor?. A vila, de acordo com José, teria por finalidade trazer o ?bem estar? e o ?progresso?, tirando a gente que ali vivia do isolamento.
Vê-se que, em tudo, a versão do senhor José se diferencia da de Hermelina Barbosa Leal e de Corino Rodrigues de Alvarenga. Até no que se refere aos nomes da matriz de São José e da cidade. A senhora Hermelina Barbosa Leal diz que o nome da matriz foi uma homenagem ao santo da devoção de Cassinha. Já Amin José tem outra versão.
Narra o ?autor? a respeito de tal nome que ele e Cassinha tinham acabado de medir o largo da igreja. Então, Cassinha teria perguntado: ?como será o nome do padroeiro desta igreja?? José teria respondido: ?o senhor se chama Joaquim, vamos chamá-lo de São Joaquim?. Ao que Cassinha teria retorquido: ?Acho melhor não (...). O senhor se Chama Amin José, não é? Assim homenageio o seu nome, porque o senhor está começando tudo isto e também pelo trabalho que teve de abrir a rua que antes era trilheiro de gado, fica então Igreja de São José?. E assim teria se dado o batismo da igreja. Não em fução de uma homenagem ao santo de devoção de Cassinha, como assevera Hermelina Barbosa Leal, mas uma homenagem ao próprio nome de Amin José. O nome da cidade, por sua vez, teria sido uma retribuição a esta homenagem de Cassinha. A cidade, por decisão de Amin José, passou a se chamar Cassilândia em função do apelido de Joaquim Balduíno de Souza, Cassinha.
Segundo já acenamos, a senhora Hermelina Barbosa Leal havia dito, em seu libelo, que este nome foi dado em reunião, por idéia de Isaías Cândido Barbosa, porque Cassinha teria doado as terras para a construção da cidade. Em entrevista, quando questionada a respeito da posição de Amin José, a senhora Leal recusa com veemência a versão do senhor José. E essa recusa não está assentada, como veremos, em documentos, em provas. O seu motivador parece ser justamente os laços de família, de afeto que ligam a escritora a seu falecido marido. O mesmo se pode afiançar a respeito das afirmações do senhor José. São afirmações sem comprovação explicitada. O seu motivador é a exaltação de sua própria personalidade como força motriz da história.
Não é para menos que a versão de José fira a senhora Leal. Em A Visão de Um Pioneiro, o seu marido é reduzido a um papel miúdo, se comparado com a versão de Cassilândia dos Meus Amores e com a do próprio Corino Rodrigues de Alvarenga, em A Verdadeira História de Cassilândia. No campo da fundação da cidade, segundo a ótica de José, Sebastião Leal apenas teria inventariado os bens da vila e recebido autorização legal para a construção da igreja, da escola e da prefeitura. Seu nome não aparece, nenhuma vez, como idealizador; também em nenhum momento vê-se, em A Visão de Um Pioneiro, Sebastião Leal nas obras de iniciação da cidade; nem idealiza, nem toma decisões, nem mede e abre ruas. Cassinha, por sua vez, aparece como doador do terreno e como trabalhador.
O único idealizador da cidade, segundo a ótica de Amin José, é o próprio senhor Amin José. Ele idealiza, constrói casa, abre ruas, cuida do ensino, doa terreno para a escola. Em todas as atividades imprime seu nome. O livro é uma exaltação à personalidade. Dessa vez, à personalidade de José. O motor principal da fundação de Cassilândia seria esta personagem. Esta é a ótica do libelo. Eis a tese de A Visão de Um Pioneiro.


CONCLUSÃO

O pressuposto do qual parte este ensaio é de que o discurso da história se relaciona aos jogos de poder no contexto social. Partindo desse pressuposto, traçamos um perfil da historiografia cassilandense, através, principalmente, de uma análise intertextual. Por meio desse método, vimos que o principal problema dos autores que escreveram sobre o passado de Cassilândia é o de estabelecer o principal fundador da cidade. O perfil dessa historiografia, segundo este ensaio, é personalista e heroicizante. Este personalismo, como vimos, está ligado a uma cultura marcada pelo mundo rural.
A finalidade dessa exaltação de personalidades, assim, é a de justamente realçar os nomes de famílias tradicionais do local. O motor da história, na historiografia cassilandense, é a iniciativa pessoal. Mais particularmente a iniciativa pioneira. Cada autor, nessa historiografia, escolhe um personagem como sendo o principal na obra da fundação da cidade. Os critérios dessa escolha, como vimos, são os laços de afeto e de família, como convém a uma cultura eivada de patriarcalismo. Vale ainda dizer que, num universo ligado a essa ?cultura da personalidade?, pertencer a uma família considerada importante pela sociedade é conveniente. Pois em sociedades assim, os próprios critérios de escolha dos indivíduos para cargos importantes no funcionalismo público, por exemplo, não são o do valor individual, mas o das relações de afeto próprias dos valores familiares. É o que Sérgio Buarque de Holanda chamou de funcionalismo patrimonial, em oposição ao funcionalismo burocrático50. Desse modo, seria de suma importância para testar as hipóteses desse ensaio uma avaliação dos critérios de escolha dos funcionários de prefeitura, dos professores e demais cargos, às épocas mais remotas da cidade. E verificar em que critérios é feita a escolha do funcionário ? se na capacidade ou nas relações de afeto.
Na historiografia cassilandense, desse modo, Sebastião Leal e Amin José têm suas personalidades realçadas por escritores ligados a eles por laços afetivos e familiares; Sebastião Leal por sua viúva ? Hermelina Barbosa Leal - e Amin José por suas filhas ? Haidee Amin de Freitas e Isabel Amin de Moura - que tomaram a iniciativa da edição dos escritos do pai. Só Joaquim Balduíno de Souza não é defendido por um autor a ele ligado por relações de família. Ainda assim, como se viu, a noção de história de Alvarenga é personalista. Como Hermelina Barbosa Leal e Amin José, não há em Alvarenga um critério de análise ligado a uma clara orientação teórica e uma metodologia minimamente sofisticada. O seu personagem é visto como um herói.
É verdade que Corino Rodrigues de Alvarenga não visa, como os demais autores analisados, realçar seu nome de família ao exaltar Cassinha, mas, ainda assim, presta reverência à personalidade individual e valoriza as famílias tradicionais ao fazer girar sua narrativa ao redor delas.
Em suma, o perfil da historiografia cassilandense é personalista e heroicizante. O devir histórico é narrado como sendo o da fundação e desenvolvimento da cidade e instituições urbanas pela iniciativa pioneira. Do ponto de vista teórico e metodológico é marcado pela pouca afinidade com o labor historiográfico. Não há nenhuma referenciação e crítica dos testemunhos, nem sequer uma orientação teórica na condução da narrativa. A sua finalidade política, enfim, é exaltar os nomes das famílias tradicionais através de uma história narrativa centrada nos pioneiros que estiveram envolvidos com a fundação da cidade.
Em que pese esta fragilidade teórica e metodológica, essas obras podem, no entanto, ser úteis ao pesquisador da história local, pois se não servem como modelos historiográficos, ao menos apresentam uma síntese da fundação de instituições, abertura de pontes e estradas e outros meios de comunicação (rádio, cinema, telefone) que pode fornecer pistas temáticas ao historiador. Além do mais, ao datar acontecimentos e inaugurações, contribui para que o historiador contextualize o tema escolhido. Essas obras, portanto, devem ser lidas como pistas para o desenvolvimento de uma outra historiografia.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


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_______________________. Hermelina Barbosa Leal: Entrevista [abril, 2003]. Entrevistador: Ciro Rocha Jr. Cassilândia MS: FIC, 2003. 1 cassete sonoro e uma transcrição de 20.p. Entrevista concedida ao projeto Reflexões de Historiografia Regional: A história da história de Cassilândia.

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 Artigos e livros

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