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Alcides Silva: Língua portuguesa, inculta e bela!

Alcides Silva - 22 de fevereiro de 2008 - 08:03

Língua portuguesa, inculta e bela!
Alcides Silva
Antíteses e paradoxos
Semana passada, Ilson José, nas páginas de “O Jornal de Santa Fé do Sul”, relatou a crônica Exitus Letalis, uma deliciosa página onde Rubens Fonseca fustiga a linguagem esotérica das bulas de remédios. Não há mesmo como combinar o substantivo êxito (= resultado feliz) com o lúgubre adjetivo letal. Nem mesmo num trabalhado jogo do sim e do não. È um despautério. um despropósito.
Lembrei-me, então, de “Certas Coisas”, música de Lulu Santos e Nelson Motta, cantada por Milton Nascimento, onde há um encadeamento de palavras cujos sentidos ou significação se contradizem: “Não existiria som / Se não houvesse o silêncio /Não haveria luz / Se não fosse a escuridão / A vida é mesmo assim, dia e noite, não e sim./ Cada voz que canta o amor / Não diz tudo que quer dizer / Tudo que cala fala mais alto ao coração. / Silenciosamente eu te falo com paixão / Eu te amo calado / Como quem ouve uma sinfonia de silêncio e de luz./ Nós somos medo e desejo, somos feitos de silêncio e som. / Tem certas coisas que eu não sei dizer.”
Essa canção foi concebida como um jogo de luzes e sombras, “dia e noite, não e sim”, numa seriação de sucessivas oposições. A isso se dá o nome de antítese, uma figura de pensamento que ocorre quando a uma idéia é oposta outra de sentido contrário. É uma síncrise, uma contradição: “Buscas a vida; eu a morte” – “Casa de ferreiro, espeto de pau” – “Quem ama o feio, bonito lhe parece”,
Em “Jaqueline”, poema de “Estrela da Manhã”, Manoel Bandeira condensou uma aparente falta de nexo:
“Jaqueline morreu menina./ Jaqueline morta era mais bonita do que os anjos/ Os anjos!... Bem sei que não os há em parte alguma./ Há é mulheres extraordinariamente belas que morrem ainda meninas”.
Mulheres ... ainda meninas. Conceitualmente, o termo ‘mulheres’ [o ser humano do gênero feminino que atingiu a idade adulta] contrasta com a palavra ‘meninas’ [criança do sexo feminino]. São formulações aparentemente inconciliáveis. A isso se dá o nome de paradoxo, que também é uma figura de pensamento*: numa mesma unidade da frase são empregadas palavras cujos conceitos se opõem, ao menos na aparência. É um oximoro (contra-senso), figura que consiste em reunir palavras contrárias, contraditórias: “Era o porvir – em frente do passado, / A liberdade – em frente à escravidão” (Castro Alves) – “Tanto era bela no seu rosto a morte” (Basílio da Gama).
Na antítese a contradição está nas idéias (Não há mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe); no paradoxo, nas palavras (“O amor... É um contentamento descontente.” - Camões). Em medicina legal, o feto viável expulso morto do útero materno é um natimorto. Em lingüística, o termo natimorto é um paradoxo.
Explica Rocha Lima que “todo paradoxo encerra, em última análise, uma antítese, porém uma antítese especial, que em vez de se opor, enlaça idéias contrastantes”. E cita, como exemplo, versos de Hermens Fontes:
“Este Amor, que, afinal, é a minha vida / e que será, talvez, a minha morte, / amor que me acalora e me intimida, /que me põe fraco quanto me põe forte; / este Amor, que é um broquel e é uma ferida, / vai decidir, por fim, a minha morte”.
*Figuras de pensamento - formas de expressão que fogem às normas gramaticais - são recursos estilísticos da língua e da retórica praticamente inesgotáveis. Concedem ao pensamento mais energia, mais beleza ou realce. O título desta coluna, extraído de um verso de Olavo Bilac, é uma antítese, talvez um paradoxo: “inculta e bela”: “Última flor do Lácio, inculta e bela / És a um tempo esplendor e sepultura”.

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