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Alcides Silva: Língua portuguesa, inculta e bela!

Alcides Silva - 17 de maio de 2012 - 17:32

Chão de estrelas

Um dos mais belos versos da poética brasileira está em uma canção popular, presença obrigatória em qualquer seresta que se preze: ‘tu pisavas nos astros, distraída’. De Orestes Barbosa, esse verso se ombreia às mais puras expressões do lirismo nacional, como o verso final da morte de Lindóia, Canto IV, do poema “Uruguai”, da Basílio da Gama: ‘tanto era bela no seu rosto a morte’.
A palavra, como elemento primordial da linguagem, é, ao mesmo tempo, uma representação mental (transmite a compreensão individual do mundo externo) e uma manifestação psíquica (traduz os diferentes estados de alma). No primeiro caso, função representativa da palavra, seu emprego é no sentido denotativo ou referencial, a palavra tem o conteúdo literal que lhe atribuem os dicionários: lua > satélite da Terra, sem luz própria; zinco > folha de metal. Esse é o modo como os dicionários definem essas palavras. No segundo caso, como a palavra expressa e desperta, num “halo de emoção”, novos conceitos ou sentimentos, seu sentido é conotativo.
Denotação é a significação básica e objetiva de uma palavra; conotação são as associações várias e subjetivas que a palavra pode despertar.
Nos versos de “Chão de estrelas” (aliás, perfeita antítese), lua não é um ser inanimado, o satélite, mas o foco luminoso, animado, capaz de ultrapassar os pequenos orifícios da cobertura do casebre e projetar-se no chão, formando minúsculas claridades, à semelhança das estrelas do céu. Aqui a palavra lua não pode ser entendida em seu âmbito meramente gramatical. Haverá de ser compreendida estilisticamente, no contexto de toda a estrofe.
A canção, de seu título à palavra derradeira de seu último verso, é toda ela conotativa, metafórica. Seus termos saem do plano real para o imaginário, para o subjetivo, para a comoção.
A base do sentido conotativo é a metaforização.
“Metáfora é a figura de palavra em que um termo substitui outro em vista de uma relação de semelhança entre os elementos que esses termos designam. Essa semelhança é resultado da imaginação, da subjetividade de quem cria a metáfora” (Hélio de Seixas Guimarães e Ana Cecília Lessa: “Figuras de Linguagem”).
Em ‘Tu pisavas nos astros, distraída’ a sensibilidade do poeta irisou em astros, que a cabrocha pisava, distraída, as réstias da luz espremida pelas rachaduras das folhas de zinco. O que importa aqui não é o significante “astros”, o significante “zinco”, mas a idéia da luz coada pelas frinchas do teto.
Gilberto Gil cantou que “o amor da gente é como um grão, uma semente de ilusão”; Caetano Veloso declarou que “a solidão agora é sólida, como uma pedra ao sol” e supinamente declamou Fernando Pessoa “ó mar salgado, quanto do teu sal / são lágrimas de Portugal”. Tudo metaforicamente, onde vale mais a alma, a emoção estética, a beleza, que a razão, o significante, como a sonoramente poética canção de Orestes Barbosa, interpretada magistralmente pelo imorredouro Sílvio Caldas.
Esta a estrofe final de Chão de Estrelas, de Orestes Barbosa, onde aparece um dos melhores versos da língua portuguesa: “A porta do barraco era sem trinco / mas a lua furando o nosso zinco / salpicava de estrelas nosso chão / Tu pisavas nos astros, distraída, / Sem saber que a ventura desta vida / É a cabrocha, o luar, o violão”.

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