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Alcides Silva: Língua portuguesa, inculta e bela!
Língua portuguesa, inculta e bela!
Alcides Silva
A vírgula e o e
Dizia-se no meu tempo de grupo escolar, como verdade revelada, autêntico dogma, que não se usava vírgula antes de e. Segundo a lição dominante na época, a vírgula funcionava como uma pausa de pequena duração e aquela conjunção exercia a mesmíssima função. Daí, a desnecessidade da vírgula. Antes de e, a vírgula era pecado capital, caminho direto para o inferno do lápis vermelho.
Aquilo porém, não era uma verdade absoluta.
Said Ali, o grande filólogo fluminense do século passado, com certeza o mais respeitado de seu tempo (faleceu com 92 anos de idade, em 1953), ensinava, com profunda razão, que para mostrar que é preciso descansar a voz, põe-se a vírgula antes da conjunção e.
Embora seja ressabido que a vírgula substitui o e, pode a mesma ser empregada para facilitar a passagem de uma idéia a outra, quando repetidas ritmicamente, como no texto de Machado de Assis:
E a minha terra se chamará a terra de Jafé, e a tua se chamará a terra de Sem; e iremos às tendas um do outro, e partiremos o pão da alegria e da concórdia
Ou então, como quando, no resumo poético, mostra o trabalho beneditino: no aconchego do claustro, na paciência, no sossego trabalha, e teima, e lida, e sofre, e sua.
Em duas orações, quando a coordenada tem sujeito diferente do da coordenante, a prudência aconselha o emprego de vírgula, principalmente se houver uma pausa na leitura, como neste exemplo recolhido em Said Ali: A tempestade da sua alma asserena-se, e a dor mitiga-se.
Experimente ler, sem a vírgula, a frase João namora Maria, e Rita se magoa. Tem-se a impressão de que João namora as duas concomitantemente. Com a vírgula, a coitada da Rita é a preterida.
Morreu o pai, e o filho tomou seu destino.
A vírgula é empregada também se o e, por ênfase ou enumeração, estiver repetido na frase: Deus fez o céu, e a terra, e o mar, e tudo quanto há neles. Quando, porém, seu emprego for facultativo, siga o ritmo ou a sonoridade da frase, haja com cautela e bom senso, evitando a virgulação excessiva. Intercalações exageradas cortam a fluência do texto, dificultando a sua compreensão.
Descrevendo as grandes emoções esperadas para os últimos capítulos de A Favorita, novela das 21h da TV Globo encerrada na noite de ontem, quando Flora (Patrícia Pillar) se reencontrou com sua ex-companheira de dupla sertaneja Donatela (Cláudia Raia), assim virgulou um grande jornal do Rio: Ao ver Donatela, Flora fica emocionada, em saber que ela está viva, quatro meses após sua suposta morte, e chora. "Nem acredito. meu Deus!", diz a vilã. "Você fala, como se estivesse feliz", responde a namorada de Zé Bob.
Desvirgulando, isto é, podando o demasiado, o conteúdo fica mais nítido: Ao ver Donatela, Flora fica emocionada em saber que ela está viva quatro meses após sua suposta morte e chora. "Nem acredito! Meu Deus!", diz a vilã. "Você fala como se estivesse feliz", responde a namorada de Zé Bob.
Observação importantíssima: nunca separe por vírgula, nem mesmo no desespero (ou na ignorância), o sujeito do verbo e nem o verbo do complemento. Eles obrigatoriamente estão sempre unidos.