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Alcides Silva: Língua portuguesa, inculta e bela

Alcides Silva - 07 de outubro de 2010 - 15:26

Idioleto

O comodismo é próprio do ser humano; normalmente aceitamos as coisas como elas nos são apresentadas: é a lei do menor esforço. Daí porque volta-e-meia embarcamos em canoas-furadas, compramos quinquilharias e mezinhas salvadoras, ofertamos contribuições a entidades-fantasmas, caímos no conto-do-vigário, comemos gato por lebre, enfim, somos ludibriados por mera preguiça de pesquisar ou de indagar.
Mas em língua portuguesa, o comodismo de aceitar as palavras e expressões sem se lhes buscar a exata significação, a grafia verdadeira ou a correta pronúncia, faz com que costumeiramente caiamos em erro. A isso se dá o nome de idioleto que é a variação de uma língua única a um indivíduo. É manifestada por padrões de escolha de palavras e gramática, ou palavras, frases ou metáforas que são únicas desse indivíduo. Cada indivíduo tem um idioleto; o arranjo de palavras e frases é único, não significando que o indivíduo utiliza palavras específicas que ninguém mais usa. Um idioleto pode evoluir facilmente para um ecoleto - uma variação de dialeto específica a uma família de indivíduos, como o “Orra meu! Me vê dois pastel e um chopps!”, no sotaque do bairro paulistano da Mooca, típica mistura do português, italiano e espanhol cariocamente satirizado.
Determinado promotor, isso no antigamente da comarca, denunciou um cidadão que teria forçado uma moça a praticar com ele relações sexuais “no fundilho da estação rodoviária de Santa Fé”. Fundilho é a parte das calças correspondentes ao acento. A ‘rodoviária’ da denúncia era a antiga, hoje transformada em paço municipal. Esse mesmo promotor, de outra feita, concluiu seu arrazoado dizendo que estava provado ter o acusado praticado o delito e, por isso, pedia sua condenação “por ato de ‘pulsinânime’ Justiça.” ‘Pusilânime’, dentre outros sentidos, significa ‘fraqueza moral’, ‘covardia’, embora naquela peça de acusação o sentido que se lhe quis dar o troca-letras fosse o de “equânime justiça”... Isso é um idioleto, porque o erro é individual. Se fosse de uso comum pelo povo, chamar-se-ia barbarismo, que é um vício de linguge.
Tenho visto placas indicativas de minhocários e anúncios de jornais apregoarem a venda de humus e ouvido ilustradas senhoras dizerem que utilizam-no em seus vasos e xaxins (a maioria, aliás, pronuncia “xaxinhos”). Em português castiço, puro, a palavra é humo, derivada do latim húmus-i, significando matéria orgânica que dá fertilidade à terra. Mas o povo consagrou a forma húmus e assim permanecerá, porque consentânea com a estrutura da língua. E há uma razão lógica para a arcaização do termo humo. É que em latim existe o verbo transitivo humo – ãs- ãre- ãvi- ãtum- com significado de “enterrar”, “cobrir com terra”, “fazer os funerais de alguém”.
Com o advento do Renascimento, no século XVI, foram traduzidas obras dos grandes escritores latinos e gregos e essas traduções motivaram o aparecimento de palavras que, com pequenas modificações, já haviam ingressado na língua portuguesa, como o nome da matéria orgânica dos vasos e xaxins. Xaxim, porém, é palavra de origem tupi-guarani, nome de um samambaiaçu da mata atlântica. Isso, porém, é assunto reservado aos doutores em gramática histórica ou botânicos.
Mas não é o caso “fundilho” e do “pulsinâmine” do promotor, idioletos que deturpam e desfiguram as palavras. A esses erros também é dado o nome de barbarismo ou peregrinismo, quando deixa de ser individual e torna-se costume linguístico de um grupo. Difere da arcaização, que não é erro, pois restaura o termo primitivo. Constitui barbarismo o emprego de palavras estranhas na forma ou na idéia.

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