Geral
Alcides Silva: Língua portuguesa, inculta e bela
João amava Teresa, que amava Raimundo...
Os versos são de Carlos Drummond de Andrade, do poema "Quadrilha:
João amava Teresa que amava Raimundo / que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili / que não amava ninguém. / João foi para os Estado Unidos, Teresa para o convento, / Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, / Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes / que não tinha entrado na história.
Se o J. Pinto Fernandes só entrou para a história no final, o que ali se meteu por seis vezes e desde o primeiro verso. Afinal, qual a função desse quê, que dá certa graça à poesia drumoniana?
Que basicamente é o pronome relativo. É invariável: usa-se com referência a coisa ou pessoa, no singular ou plural.
Por que pronome relativo? Porque geralmente se refere a um termo anterior, relacionando-o com o posterior, permitindo a concordância do verbo com o sujeito. Diferentemente das conjunções (que são meros conectivos), relaciona o termo antecedente ao conseqüente, desempenhando a função sintática de sujeito ou de complemento.
Quanto à concordância: primeiro macete, o termo antecedente é quem determina a variabilidade do verbo: Em casa que falta pão... (termo antecedente: casa, substantivo singular = verbo no singular). Nos versos de Drummond, João, Teresa, Raimundo, Maria, Joaquim e Lili são, também, termos antecedentes. Foram eles que chegaram tarde (termo antecedente: eles, pronome pessoal da terceira pessoa do plural = verbo no plural).
Havendo dois ou mais antecedentes, segunda dica, o verbo vai para o plural da pessoa que tem precedência sobre as demais (a 1ª pessoa eu, nós tem precedência sobre a 2ª - tu, vós e a 3ª - ele, ela, eles, elas, e a 2ª pessoa, sobre a 3ª): Não serei eu e nem você que deixaremos de honrar o compromisso.
Se o pronome que integra um vocativo, e está a terceira regra, o verbo vai para a segunda pessoa: Pai Nosso, que estais no Céu,...
Até aqui, tudo simples, pois na própria fala corrente é essa a forma normal. A situação começa a se complicar quando a concordância não agrada aos ouvidos ou parece controvertida como a do exemplo: Bom número dos eleitores que votou (ou votaram) no Lula está descontente com sua política agrária. Mas isso é assunto para matérias específicas.
Por ora, fiquemos com algumas da outras funções sintáticas desse pequenino que. Algumas, que para falar de todas seria insuficiente esta página do jornal.
É pronome interrogativo: Que história é a do J. Pinto Fernandes?
É pronome exclamativo: Meu Deus, que susto!.
É preposição, com o significado de exceto, salvo: Nada mais esperava, que a morte.
É conjunção coordenativa aditiva: Dizei-me com quem andas que te direi quem és ( que = e).
É conjunção subordinativa: 1 comparativa: Estava mais feroz que um leão indomável; 2 integrante: Contou-me que te ama (introduz uma oração que funciona como sujeito ou complemento de outra oração); 3 causal: Vamos embora que os outros não mais virão; e 4 final: Saudades de minha infância, que os anos não trazem mais.
É interjeição: Que! Novamente você!
E é substantivo: Fulano tem um quê de misterioso.