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"A Justiça só é eficiente em pequenas causas", diz Gomes

STJ - 05 de abril de 2006 - 17:24

O ministro Humberto Gomes de Barros, novo diretor da Revista Eletrônica do STJ, disse, em entrevista ao Núcleo de Editoria e Imprensa do Superior Tribunal de Justiça (Nedim), que, atualmente, "a Justiça só é eficiente nas pequenas causas". Ele disse, ainda, que considera perversa a solução que os juízes estão adotando ultimamente de só determinar o pagamento das pequenas condenações. "Isso é porque o Poder Judiciário não tem nenhuma força contra o Poder Executivo", explica.

Para exemplificar sua indignação, o ministro cita o caso dos fazendeiros que tiveram suas terras desapropriadas para a construção do aeroporto de Vitória em 1943 e, até hoje, não receberam suas indenizações. "Isso é luta. Talvez não seja para a minha geração, quem sabe seja para a próxima", finaliza.

Abaixo a entrevista do novo diretor da Revista

Ministro, como o senhor está vendo este novo desafio?
Vou completar 15 anos como ministro do Superior Tribunal de Justiça e vejo este novo cargo como um desafio prazeroso porque vou atuar numa esfera na qual circulo com grande prazer: a de reduzir a escrito o pensamento. A jurisprudência é justamente isso, transformar as decisões do Tribunal em escrito, perpetuando-as para experiências futuras.

É também uma medida democratizadora?
Eu, quando comecei a atuar em Brasília, em 1962, como advogado, para ter notícia da jurisprudência, tinha que comprar revistas especializadas que enchiam prateleiras e prateleiras da biblioteca do escritório. Pesquisar em tais revistas era trabalho que varava noites, porque nós tínhamos que ir aos índices e, quando os índices não registravam a palavra que procurávamos, precisávamos folhear as revistas. Era grande perda de tempo e insegurança sem tamanho. Hoje, com a informática, tudo é mais fácil e seguro.

O senhor pode falar um pouco sobre os serviços oferecidos pela Revista do STJ?
A Revista tem a missão de consolidar e divulgar a jurisprudência do STJ e, ao mesmo tempo, o que é um fator muito importante, credenciar as demais revistas como repertórios autorizados, para confronto entre acórdão entre Tribunais. É importante lembrar que uma das funções do STJ é ajustar as divergências de pensamento entre os tribunais diferentes pelo Brasil afora. Para isso, contamos com os advogados para colher e nos trazer essas diferenças. É necessário, contudo, que tenhamos certeza de que os acórdãos a nós apresentados realmente existem.

O senhor pode antecipar algum novo projeto para ampliação do trabalho desenvolvido pela Revista?
Para ampliar a divulgação desse trabalho é preciso rever a nossa linguagem. Não a linguagem técnica, que é indispensável para a fácil, segura e rápida comunicação entre os iniciados em questões jurídicas. A utilização de termos técnicos é importante porque permite que a utilização de uma só palavra transmita uma idéia integral. Mas isso não justifica a utilização de linguagem arrevesada. E como nossa linguagem é arrevesada! Vivemos afogados em vícios de comunicação injustificáveis quando cometidos por pessoas de nossa qualidade intelectual. O uso, por exemplo, da ordem indireta, dificulta o entendimento. Um texto não deve ser escrito assim. E ainda há juristas que, para fingir erudição, falam difícil, e, pensando que falam difícil, falam errado. Outros abusam de palavras que são de outro tempo. Tal anacronismo é desnecessário, além de trazer uma sensação de bolor, de atraso. Meu pai, que foi advogado e juiz, no final da vida dizia – e isso eu não me canso de repetir – que a sentença não é feita para os advogados nem para outros juizes, ela se dirige às partes. Cada parte – dizia ele - tem o direito de saber por que ganhou e por que perdeu. Então, é preciso que a sentença seja enxuta até o limite do possível, para que qualquer um do povo a entenda.
Outro vício: o uso excessivo de citações. Aqui no Tribunal, eu tenho combatido tal excesso. A pletora de citações inúteis faz com que nossos votos se transformem em trabalhos abstratos, acadêmicos. Em outros países desenvolvidos, a sentença é enxuta, e aponta, exatamente, o que a lei diz. Aqui no Brasil, não é raro encontrarmos magistrados que gastam cem folhas ou mais numa sentença recheada de citações inúteis. Outras, abusam de transcrições em línguas estrangeiras que servem apenas para mostrar que sabem ler em italiano, alemão ou qualquer língua exótica. Na verdade, a meu sentir, isso não demonstra nada. Como dizia meu velho pai: "quem cita deixa de pensar". Aqui no meu gabinete, eu não admito expressões como "na lição de fulano" porque, se eu estiver aqui para tomar lição de alguém, eu não mereço estar aqui. Na verdade, inchar decisões com opiniões alheias é simplesmente complicá-las, sem trazer benefício algum. Outra deformação consiste em encarar o direito como ciência abstrata, sem compromisso com a realidade e com as angústias que nela se encerram. É preciso que os juízes aprendam a misturar a técnica com o humanismo e sensibilidade. É necessário temperar a letra da lei e emprestar-lhe vida. A Lei de introdução ao Código Civil diz que o juiz deve conduzir a lei ao fim social a que ela se destina. Nosso saber jurídico deve ser feito de estudo, conhecimento acima de tudo, vivência que nos traz compreensão para a agruras da vida. Esses atributos geram clarividência, necessária para resolver, com simplicidade, questões mais complicadas.

Ministro, todos nós sabemos a enorme quantidade de processos que chegam ao STJ todos os dias. Que medidas o senhor pretende adotar para conciliar as funções da Revista e do gabinete?
Tenho grande preocupação com isso. Em minha passagem pelo Tribunal Superior Eleitoral, aprendi a acumular funções, sem atrapalhar o andamento. Para conseguir isso é preciso trabalhar em equipe. Em equipe, a gente se multiplica.Quando cheguei aqui, julguei cerca de 600 processos em meio ano. O trabalho era individual porque o número de processos era extremamente menor do que hoje. Atualmente a situação tornou-se irracional: os processos – iguais entre si – repetem-se aos milhares, como pragas de gafanhotos. Escrevi um poema em 96, quando eu era presidente da Primeira Turma. Essa poesia expressa minha tristeza ao constatar que, em uma única Seção, a Turma julgara mais de 500 processos. Nela, eu mostrei que o Tribunal se transformara em moenda e seus ministros, em chips de computador. Registrei que, a metamorfose, ao invés de me dar alegria, causava-me tristeza. Só que, de lá pra cá, esse volume que, digamos, era de cinco mil processos para cada ministro durante o ano, multiplicou-se por três. A esse problema a apregoada reforma do Judiciário não deu resposta e não vai dar. Não vai dar, a solução não interessa ao Poder Executivo brasileiro que o Poder Judiciário funcione bem. Esse desinteresse está entranhado em uma cultura que já vem de pelo menos 40 anos. Hoje, o Judiciário serve ao Executivo como instrumento para alongar o perfil da dívida pública.

De onde veio a vocação para atuar no Direito?
Foi um caminho bem interessante. Meu pai, que era advogado na época, não me influenciou. Eu, no curso secundário, adorava matemática. Divertia-me resolvendo problemas de matemática e demonstrando teoremas de geometria. Pensei em ser engenheiro. Mas percebi que o engenheiro ou vai ser empresário para enriquecer e aí deixa de ser engenheiro, ou vai ser empregado dos outros. Eu sempre fui um sujeito muito rebelde a respeito de receber ordens. Não quis ser engenheiro. Tornei-me advogado. Descobri, então, que o raciocínio jurídico – de quem aplica o Direito – é igual ao matemático. É o raciocínio dedutivo em que se aplica uma lei a determinado fenômeno e isso simplifica muito o caminho do advogado. A formação dedutiva facilitou muito minha habilidade para expor e resolver questões jurídicas. Facilitou, também, a minha capacidade de expor o Direito. Fui feliz na advocacia – meu desafio e projeto de vida, pois jamais quis ser juiz – principalmente por isso: porque minhas petições eram enxutas e objetivas. Os desembargadores aqui do Tribunal de Justiça local, ainda hoje dizem que eu argumentava de forma muito simples e eficiente.

Como o senhor vê a Justiça do nosso País atualmente?
Eu vejo com muita tristeza. Acho que há imensa deformação cultural. O nosso Direito foi trazido de Roma, via Alemanha, com passagem pela Itália. Por outro lado, houve, em Portugal, a inquisição. Perante a inquisição, pouca gente tinha coragem de expressar idéias próprias. Havia o perigo de ser considerado herege e ir para a fogueira. Então, o prudente era atribuir a idéia a alguém que estivesse nas boas graças da Igreja, ou seja, da doutrina dominante. Infelizmente, isso se tornou um vício de pensamento do brasileiro. Tornamo-nos alienados: deixamos que outras pessoas pensem por nós. Quanto mais distantes essas pessoas estiverem, melhor. Quem cita italiano é bom; citar alemão é mais completo ainda. Isso nos tem roubado a criatividade. Nosso direito Processo Civil veio empacotado, trazido da Alemanha, após a tradução pelos italianos. Então veio um pacote com rótulo de ciência. Os processualistas viajavam para a Itália e traziam as idéias científicas e as aplicavam aqui, sem tropicalizá-las. Restou-nos, então, um processo abstrato, desvinculado de nossa realidade, extremamente complicado, em que ninguém tem coragem de mexer. A prometida reforma do Judiciário não superou essa deformação. Alguns juristas atribuem a mim o impulso que resultou no encurtamento do processo executivo. Fico muito honrado com tal registro. No entanto, observo que a nova reforma não extinguiu o processo de execução. Simplificou-a, mas acabou o tormento que é tornar eficaz uma decisão judicial. Não acabou, porque não interessa à administração pública uma justiça capaz de cobrar-lhe as dívidas. Ninguém, entre nós, consegue enxergar o processo como ferramenta de política judiciária, como um instrumento simples, enxuto e seguro. Nós o vemos como ciência abstrata – ciência estranha, cujo objetivo é "não conhecer". Esse é o grande vício do Poder Judiciário, do qual se aproveita o Poder Executivo. Eu sou um juiz que gosta do que faz, mas sou, ao mesmo tempo, angustiado. Não posso admitir que este Tribunal e o Supremo Tribunal Federal julguem 200 mil processos em um ano. Em verdade ninguém pode julgar tantos processos em tão pouco tempo. Dizer que cheguei ao fim do ano passado com 13 mil processos julgados é mentira. Eu dei 13 mil assinaturas, não significa que tenha aberto 13 mil processos. A minha equipe funcionou, mas eu corri o risco de ter cometido graves injustiças. Diz-se que este Tribunal não foi feito para resolver injustiças, mas para fiscalizar a boa aplicação da lei.

Que saídas o senhor vê para a diminuição do número de processos?
Para começar, acabaria com o instituto dos precatórios – odiosa injustiça contra quem litigou com o Estado e obteve vitória. Por efeito do precatório, as decisões do Poder Judiciário nada valem contra o Poder Executivo. Hoje, somente as condenações de pequeno valor são cumpridas. A Justiça só é eficiente nas pequenas causas. Basta dizer que o aeroporto de Vitória implantou-se em terras desapropriadas no ano de 1943. No entanto, até hoje, quem era dono das fazendas onde se plantou esse aeroporto não recebeu o dinheiro. Tenho um projeto segundo o qual, em vez de cumprir precatório, o Estado emite títulos da dívida pública, capazes de circular no mercado cambial. Para chegar a tanto é necessário muita luta e muito tempo. Talvez não seja para a minha geração. Os dois maiores cargos administrativos do Poder Judiciário serão agora exercidos pelos ministros Ellen Gracie e Barros Monteiro. Acredito que, após o espasmo dos últimos anos, chegaremos a uma época de bonança. Ambos são juízes profissionais, comprometidos com o Judiciário e, ao mesmo tempo, dotados de intuição política. Acredito que, com os dois, iremos dar passos à frente, para que tenhamos, não apenas reforma do Poder Judiciário, mas efetiva reforma cultural.

O senhor é também escritor e poeta, inclusive, imortalizado pela Academia Alagoana de Letras. Como o senhor concilia os lados jurídico e literário? Um auxilia o outro?
Eu não me considero poeta, apenas brinco com as palavras. Poeta é quem escreve sonetos e eu jamais me atrevi a tanto. A poesia começou de brincadeira, em glosas divertidas e contundentes, mas recheadas de camaradagem, de amor até. Eu comecei a fazer prosa treinando para redigir votos claros. Eu tenho aqui no gabinete um anti-dicionário: uma relação de palavras complicadas e de mau gosto, cujo uso é proibido. Isso não significa que eu aprove uma linguagem chula ou pobre demais. Na busca de uma linguagem clara, não admito palavras como sodalício, colendo, genitora, sobrestar. Você apresentaria seu marido como cônjuge varão? E, se ele a apresentasse como minha virago? Há coisa mais ridícula do que a expressão acórdão vergastado?

Matéria de autoria de Ana Gleice Queiroz

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