Geral
A face de Deus
As gêmeas nasceram com uma grave doença cerebral. Não andam, não falam. Acamadas, permanentemente, dependem de cuidados especiais. O tempo passou. Elas estão com seis anos. Os pais, separados. O pai mora longe e não mantém contato. Abandonou a família após o nascimento das filhas. A mãe, recentemente, não suportou o peso da vida. Cometeu suicídio. Deixou as filhas sozinhas. Não foram encontrados parentes. Elas vivem num abrigo desde a morte da mãe.
Noutro caso, um garoto, já adolescente. A mãe dele, no passado, dos oito aos treze anos, foi vítima de sucessivos estupros. O menino é fruto de uma dessas violências. E, quando garotinho, aos quatro anos, um pedófilo o vitimou também. A revolta o consome e o rapaz a traduz, ao que parece, praticando crimes. Detido, apresentado à justiça, na sala de audiências, ele confessa, espontaneamente, o seu maior desejo: encontrar e matar o próprio pai e aquele que o violentou na infância.
São histórias dramáticas, de um sofrimento cortante. Algumas daquelas que deparamos na Vara da Infância e da Juventude. Mas, nelas há também a força da revelação.
As órfãs do primeiro parágrafo estão num local aconchegante. Interessante notar que, na entrada do abrigo, há uma pequena pintura, num quadrinho simples, com a imagem de Jesus e uma inscrição logo abaixo: "Deus está aqui". O garoto, por sua vez, não cumpre apenas uma pena. Educadores, especialistas em recuperação de infratores, dedicam-se, dia e noite, a transmitir a ele bons valores, confiança e dignidade. Vez ou outra o menino se inquieta, mas não exprime mais aquele ódio inicial.
Nesses dramas humanos talvez possamos superar aquelas dúvidas bíblicas sobre a face divina. Só Moisés a viu? E como seria o semblante do Senhor? Para alguns teólogos, Deus assumiu a forma humana em Jesus Cristo e Nele revelou a Sua essência: o amor e a misericórdia infinitos.
Quem viu os braços carinhosos das cuidadoras a embalar as frágeis gêmeas, alimentando-as com mamadeiras de leite, a cantar lindas canções de ninar, quem viu o olhar daquelas meninas a mirar o rosto das mulheres dedicadas e amáveis, quem viu os “pescadores de homens” preocupados com o futuro do garoto infrator, num trabalho incessante para ajudá-lo a reparar os seus erros, a superar as suas tragédias e a fazer dele um homem, pode ser que tenha tido a graça de ver a face de Deus.
Evandro Pelarin é juiz de Direito em São José do Rio Preto