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A crônica do Corino - Um jacaré no Tietê

Corino Rodrigues de Alvarenga - 04 de setembro de 2006 - 07:56

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Um jacaré no Tietê

Um jacaré, de porte médio, de um metro e meio de comprimento, foi encontrado nas águas do rio Tietê, bem ali nas proximidades do Parque São Jorge, o pequeno estádio do Corinthians, no bairro do Tatuapé, na capital paulistana.
A notícia foi transmitida ao vivo pelo telejornal matinal. Logo após as imagens do animal intruso irem ao ar, uma verdadeira multidão se aglomerou às margens do poluído rio.
A diarista Adelaide estava indo para um serviço ali na rua Tuiuti, perto da estação Tatuapé do metrô. Não resistiu ao ver as imagens através de um aparelho de TV enquanto tomava o seu café com leite e comia um pão com manteiga numa movimentada lanchonete naquelas proximidades.
- Eu perco essa diária, mas quero ver esse bichano de perto – pensou, derrubando o café com leite. – Não perco isso por nada. Dinheiro a gente dá um jeito depois.
E foi para lá.
O jacaré, diante daquela barulheira toda, começou a nadar naquele lamaçal de poluição, entre sapatos, pneus velhos, resíduos industriais, naquela água azul, vermelha, verde, multicor.
O servente de pedreiro Juvenal já estava na obra, preparando-se para começar o seu trabalho de fazer o concreto. Não pensou duas vezes.
- Ô, Paulão, faz o concreto aí pra mim que eu vou ver esse jacaré de perto.
- Tá maluco, homem de Deus? Você veio esses dias do Ceará, tá precisando desse emprego e fica brincando. Daqui um pouco o encarregado da obra chega aqui e vai perceber a sua falta. E peão que falta no serviço o patrão vê que não faz falta.
- Num tô nem aí, ó! Vou ver esse bichão de perto. Se ele bobear, eu entro na água e tiro ele de lá.
- Tu tá é doido! Aquela água é mais preta do que esse café que a gente toma aqui. Só tem poluição lá. Quem entra lá vira suco de piche. Eu, hein?!
- Segura a minha aí. Fui.
Naquele ínterim, o pequeno jacaré deu um pulo e afundou na água. O cinegrafista da TV concorrente desceu até as margens do rio; o repórter fez pose, empostou a voz e começou o lead da notícia:
- Estamos ao vivo, na manhã desta segunda-feira, dia 19, agora são 8h10, e falamos diretamente do bairro do Tatuapé, bem nas proximidades do estádio Alfredo Schürig, o estádio do Corinthians, e há uma multidão incrível aqui, é grande o número de curiosos; a causa é o aparecimento de um jacaré, que, segundo o Corpo de Bombeiros, deve medir cerca de um metro e meio...
- Que um metro e meio! – interrompeu, aos gritos, um homem bêbado, com uma garrafa na mão. – Eu vi! Eu vi! O jacaré tem mais de sete metros. Eu vi agora ele nadando aqui.
O repórter tentou consertar a hipérbole afirmativa do homem alcoolizado.
- Bem, como ia dizendo, o jacaré tem cerca de um metro e meio e...
Aí o homem bêbado se sentiu indignado e agarrou no microfone, falando, entre solavancos:
- Um metro e meio uma porcaria! O bichão mede pelo menos sete metros, gente! É um verdadeiro crocodilo e todo mundo está correndo risco de vida...
Aí foi a vez do repórter fazer a interrupção:
- Bem amigos, antes de ser interrompido, a gente dizia que o animal é aparentemente inofensivo e deve estar com sua saúde precária devido ao grande volume de poluentes existentes nestas águas sujas do rio Tietê, que, sem dúvida, é um dos mais poluídos do planeta.
A seguir apareceu um grupo de ativistas, tendo à frente integrantes de ONGs, dois membros do Greenpeace e cinco jovens do Movimento dos Sem Terra, além do bispo católico da Pastoral da Criança, Dom Eduardo Costa-Larga Bretão. O líder religioso tomou a frente e começou a dar ordens:
- Ninguém chega perto do animal. Ele está se sentindo cercado. Deve estar traumatizado com tanta gritaria. Essa balbúrdia...
- Balbúrdia? – interrompeu a manicure Orlangilda, uma pernambucana que estava em São Paulo havia apenas três meses. - O que é balbúrdia? Sei o que é isso, não.
Um professor, que carregava uma pasta, interveio:
- Larga de ser desinformada, mulher! Balbúrdia quer dizer rebuliço, bagunça.
E o jacaré lá, aflito, tentando se desprender de uma borra de cola química.
Clóvis, um rapaz dono de uma vozinha bem afemininada e gestos frenéticos, fez cara de samaritano:
- Ai, gente! Eu quero levar esse aligator para a minha casa. Como ele é fofinho! Nossa, galera, estou passada! Deixa eu levar ele pra mim, gente...
- Saia pra lá, sua bicha! – gritou o homem bêbado, já sem a garrafa. – Isso é hora para frescura?
- Chega! Chega! – foi gritando o bispo. – Precisamos é cuidar do pobre animal. Vamos abrir espaço, pois essa é tarefa para os homens do Corpo de Bombeiros.
Logo apareceu o pastor evangélico Delcídio, com sua bíblia na mão. Como a TV estava ali, filmando, ele aproveitou a deixa e começou a falar em voz alta:
- Meus irmãos, tudo posso naquele que me fortalece! O Senhor Jesus enviou esse jacaré para chamar a atenção de todos nós, pecadores. A maioria já perdeu o temor de Deus e todo mundo vai para o inferno se não seguir a palavra do Senhor e...
- Vamos parar com esse lengalenga! – gritou, novamente, o bêbado.
E foi aparecendo gente. Surgiu um líder luterano. A seguir, um grupo de budistas deu as caras por lá. Minutos depois, quatro espíritas também se juntaram à verdadeira multidão ali reunida. Para se ter uma idéia do ecumenismo do evento, apareceram uns oito muçulmanos. E mais quinze ou vinte protestantes.
- Será que esse jacaré veio de onde? – indagou Rosalinda, uma enfermeira que deixou o hospital para se somar aos curiosos. – Deve ter vindo lá da nascente do Tietê. Lá não tem tanta poluição...
- Acho que não – emendou o balconista Carlão, de uma loja de retalho localizada na avenida Celso Garcia. - Ele não iria agüentar nadar de lá até aqui. São mais de dezentos quilômetros. Talvez trezentos, quem sabe?
- Que isso? - argüiu Rosalina, esfregando as mãos. - Jacaré é bicho que nada. Ouvi falar de um que nadou o rio São Francisco todo, saindo de Minas Gerais, passou por cinco Estados e foi parar no mar. Dizem que morreu no mar porque jacaré não agüenta o sal ou porque uma enorme baleia o engoliu por lá.
- Mentirosa! – berrou o bêbado. – Olha, faz tempo que eu não ouvia uma mentira tão cabeluda! Tenha paciência... sic! Sic!
Aí, quando o rebuliço estava generalizado, apareceu uma moça lindíssima (depois foi identificada como sendo a modelo Fernanda Albuquerque Fradique), acompanhada por um homem alto que carregava uma pasta preta. A moça chamou a reportagem da TV, os jornalistas e os curiosos, pedindo atenção para o que iria dizer. Fez cara de intelectual:
- Olha, gente, muito obrigada por terem vindo. Este jacaré que vocês estão vendo faz parte da estratégia de marketing do novo shopping center que estamos inaugurando hoje aqui neste bairro.
- Sua sacana! – berrou, novamente, o bêbado. – Tudo isso para lançar a porcaria de um shopping? Vai te catar, seus canalhas! Eu vou é beber cachaça. Imagina só. Eu interrompi as minhas biritas só para ver um jacarezinho porcaria para fazer propaganda para esses vagabundos!
O bispo também ficou irado. Todos os curiosos começaram a gritar palavras de baixo calão – que não caberiam neste pedaço de papel. Tanto pela quantidade quanto pela gravidade dos termos.
A polícia, quando percebeu que o rebuliço estava prestes a se transformar numa verdadeira tragédia, não pensou duas vezes. O tenente André, um homem jovem de bigode, deu a ordem:
- Vocês do shopping estão presos! Podem algemá-los! E se dêem por felizes. Se não forem presos, serão, com certeza, linchados. Ta todo mundo aqui pê da vida.
Naquele momento, os bombeiros conseguiram apreender o jacaré, usando uma rede presa a cordas. Içado, o jacaré foi colocado no carro do Corpo de Bombeiros.
Quando todo mundo estava indo embora, o bêbado não agüentou e filosofou, entre indignado e irônico:
- É por isso que este País não vai pra frente! Onde já se viu jogar o pobre jacaré nestas águas podres só para divulgar um shopping center?
- Você está certíssimo – assentiu o bispo. - Concordo com você em gênero, número e grau.
- É por isso que eu bebo, doutor. É por isso que eu bebo...

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