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A crônica do Corino - Laureno Schettert Machado

Corino Rodrigues Alvarenga - 12 de setembro de 2006 - 06:55

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Até os quatro anos de idade a minha vida foi difícil. Lá no Entroncamento do Itajá, devido aos problemas de saúde enfrentados por meu pai José Marinho e por minha mãe Almira, as dificuldades sempre tiveram um peso maior do que determina um IDH normal – isto é, aqueles parâmetros tidos como ideais dentro da burocracia dos números do Índice de Desenvolvimento Humano. Assim, posso dizer que o meu IDH não era dos melhores.
Aos quatro anos, passei a viver com meu irmão João Marinho e a cunhada Delaide, que, assim, viraram pai e mãe, por sinal, dos mais zelosos e dos quais nada tenho a reclamar – ao contrário, só a agradecer.
Na infância, sempre fui o diabo em pessoa. Dei trabalho pra caramba, como se diz em São Paulo, e uma trabalheira retada, como se diz aqui na Bahia. Mas tudo dá na mesma: os quatro filhos que eu tenho hoje são verdadeiros santos perto do que eu fui, e, já em função disso, sou eternamente grato ao rapaz lá de cima. Ele tem sido generoso demais comigo.
E, por falar em pessoa generosa e boa barbaridade, obrigo-me a lembrar do meu grande amigo Laureno Machado, pai do Lúcio Gaúcho e do José Ronaldo.
Eu tenho certeza que Lúcio e Zé Ronaldo não sabem disso. Eu, criança, e Laureno Machado, já um senhor de cabelos grisalhos, tínhamos uma afinidade e uma sintonia própria de dois bons amigos. Mas amigos de uma amizade gratuita e muito construtiva.
Seu Laureno parecia um pai para mim. Ele usava longas botas de couro de vaca, quase sempre bombachas e aquela vestimenta gaúcha que sempre me despertou admiração.
- Bah, tchê! – exclamava ele. – Passe lá para engraxar minhas botas, guri! Tu te chamas Corino, mas prefiro dizer guri.
- Tem problema, não, seu Laureno – e ia lá fazer o serviço de engraxate.
Ah, eu esqueci de dizer que tinha uma caixa de engraxar sapatos. O seu Laureno era o meu melhor cliente.
Ele gostou muito de mim – talvez até pelo meu desapego a dinheiro. Quando ele me viu pela primeira vez carregando aquela caixa de engraxate, ali na Praça São José, fez-me a proposta:
- Quanto você cobra pra engraxar esta bota? Mas, olhe bem primeiro, porque ela tem o cano longo e vai até lá em cima.
Nem olhei. Respondi na bucha:
- Eu engraxo. Se o senhor gostar, o senhor paga o que acha que vale. Se não gostar, não paga.
- Eu aceito, guri. Gostei de você.
Fiz o serviço naquela tarde quente em Cassilândia.
Resultado: o serviço valia, a valores de hoje, uns R$ 3,00. Ele me deu R$ 10,00 e ainda me pagou um sorvete. Não é a questão do dinheiro, não. É a forma com que ele me deu o dinheiro, que era justo, pois eu era um excelente engraxate. E ainda sabia fazer samba em vários ritmos. Em tempo: samba é a forma com que você bate o pano no couro do calçado ao lustrá-lo depois das três mãos de graxa. Ah!, esse era o meu diferencial. Todos os engraxates davam duas mãos. Mas eu, talvez com visão de globalização econômica já nos anos 70, tinha essa percepção de serviço diferenciado. Não dava outra: todo mundo gostava.
E o amigo Laureno, ao se despedir, disse:
- Passe lá em casa na semana que vem. Você ganhou o freguês.
Passei. Laureno passou não só a ser o meu melhor cliente de engraxadas, mas um verdadeiro amigo. Aquele homem tinha a generosidade no semblante e fiquei triste quando soube de sua partida. Não perdi um freguês. Perdi um amigo. Amigo desses que é difícil você encontrar, uma vez que, para mim, amigos verdadeiros, se você contar nos dedos, não chegam a encher uma mão.
Mas, no fundo, quem não justificou muito essa amizade, fui eu. Numa das minhas idas à casa de Laureno, fiquei boquiaberto diante de uma coleção de chaveiros do seu filho Lúcio. Aqueles lindos chaveiros, de plástico, de metal e de vidro, estavam lá, coloridos, pendurados na parede.
Cleptomaníaco, fui lá e peguei um pra mim. Com dor na consciência, levei o chaveiro para casa. E comecei também ali a minha coleção. Hoje, graças a esse delito praticado contra Lúcio, tenho uma coleção de mais de 500 chaveiros. E não é uma coleção recente. Ela fez agora, em 2006, exatamente 31 anos. Faz 31 anos que eu junto chaveiros. E tenho um ciúme retado deles. Ai de quem chega perto...
Tudo graças à amizade com Laureno Machado. Tudo graças a um furto inconsciente. Laureno Machado me ensinou coisas muito boas. Pena que eu não tenha cumprido à risca todas elas. Do contrário, aquele chaveirinho do seu filho Lúcio ainda estaria lá na parede, pendurado, tão brilhante e refinado quanto o meu eterno amigo Laureno Machado.

Corino Rodrigues de Alvarenga
Contato com o colunista:
[email protected]

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