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A crônica do Corino - Drummond entrevista Vinicius

Corino Rodrigues Alvarenga - 09 de setembro de 2006 - 04:51

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Carlos Drummond de Andrade estava agoniado lá no Céu diante daquela calmaria toda. Foi conversar com Deus, pois queria saber se o Criador não poderia lhe arrumar alguma ocupação. Era uma terça-feira, nem quente, nem fria, normal como todas as terças feiras celestiais.
- Olha, Drummond, há um conterrêneo seu, e também contemporâneo, que está na ala dos poetas não-abstêmicos, ainda mais entediado do que você. Sei não, acho que ele prefere estar no inferno a ficar neste ambiente sereno e equilibrado. Não tiro, Drummond, a razão de vocês dois. Às vezes até eu, o Todo-Poderoso, sinto-me enfastiado.
- Então o senhor não tem nada a me sugerir?
- Ao contrário, tenho sim. Nesta madrugada tive uma idéia divina: lançar aqui no Céu um periódico intitulado Resenhas Poéticas. Que tal você fazer a matéria principal? Você é um escritor e poeta dos mais talentosos. Sugiro-te fazer uma entrevista com o poetinha, também do Brasil, Vinicius... Vinicius do que mesmo?
- De Moraes.
- Isso: de Moraes. Pelo amor de Deus! Quer dizer, pelo amor de Mim! Como eu poderia ter esquecido o nome de um dos maiores poetas de todos os tempos, que Eu mesmo o inspirei a escrever os seus lindos poemas? Acho que estou ficando caduco.
- Qual é o tema da entrevista, Senhor?
- Tema livre. Confio no teu talento. Agora vá.
E, obediente, Drummond foi se encontrar com Vinicius. O poetinha estava entediado mesmo. Pior: estava a um passo da depressão. Lá não havia uísque nem guardanapo de bar para escrever seus poemas sobre a vida errante.
- É um prazer falar com você, Vinicius. Eu sou Carlos Drummond de Andrade...
- Eu sei! Eu sei! Sou teu fã. Li todos os teus livros. O prazer é meu, irmão.
- Eu vim entrevistá-lo para a primeira edição do jornal Resenhas Poéticas.
- Quem é o editor?
- Deus.
- Então o jornal tem procedência. Excelente procedência. Esse jornal tem futuro. Vamos lá, Carlinhos.
- Você foi um poeta que enalteceu a figura feminina. O que você tem a dizer sobre a mulher? E mais: o que diria sobre a mulher amada?
- A mulher amada carrega o cetro/O seu fastígio é máximo/A mulher amada é aquela que aponta para a noite/E de cujo seio surge a aurora./A mulher amada é quem traça a curva do horizonte e dá linha ao movimento dos astros.
- E como foi a sua relação com a família? Sempre recebeu os cuidados familiares?
- Minha mãe, alisa de minha fronte todas as cicatrizes do passado/Minha irmã, conta-me histórias da infância/Em que que eu haja sido herói sem mácula/Meu irmão, verifica-me a pressão, o colesterol, a turvação do timol, a bilirrubina/Maria, prepara-me uma dieta baixa em calorias, preciso perder cinco quilos.
- Você já escreveu algum poema para os animais? O som deles é sempre uma manifestação de Deus. Você distinguiu bem esses sons em seus trabalhos poéticos?
- Com certeza: Grita uma arara, e se escuta/De dentro um miado e um zurro/Late um cachorro em disputa/Com um gato, escouceia um burro.
- Eu, como mineiro e residente carioca, sempre invejei as homenagens constantes que você fazia à terrinha. O que você disse certa vez como saudação à Bahia de Todos os Santos?
- Olorô, Bahia/Nós viemos pedir sua bênção, saravá! /Hepa hê, meu guia/Nós viemos dormir no colinho de lemanjá!
- Você escreveu alguma coisa sobre as guerras?
- Sim. Num de meus poemas, citei: De início mancha tateante e informe/Crescendo às sombras da manhã exangue/Logo o vereis se erguer, o Russo enorme/Sob um sol rubro como um punho em sangue.
- Ao que eu saiba, você foi pouco religioso. Ao contrário, foi um defensor ferrenho do amor sem fidelidade, das bebericagens e da vida errante. Sempre foi ateu?
- Não, não. A sua informação não procede, Carlinhos. Eu até escrevi, certa vez, que “a Bíblia já dizia/Pra quem sabe entender/Que há tempo de alegria/Que há tempo de sofrer/Que o tempo só não conta/Pra quem não tem paixão/E que depois do encontro/Sempre tem separação/Que o dia que é da caça/Não é do caçador/E que na alternativa/Viva e viva/E viva o amor.
Como Carlos Drummond de Andrade permaneceu em silêncio, foi a vez de Vinicius fazer a sua pergunta, passando de entrevistado a entrevistador:
- E a caminhada até aqui, no Céu, foi tranqüila, Carlinhos?
- Não, Vinicius, pois no meio do caminho tinha uma pedra/Tinha uma pedra no meio do caminho/Tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra.
- Espera aí, Carlinhos Drummond... Você, sim, foi um poeta de mão cheia. Agora eu sou o repórter e você é o entrevistado.
- Sei - fez Drummond. - Não estou entendendo nada, mas vamos lá. Diga, poetinha.
- Você era muito amigo de Irene e escreveu alguma coisa sobre ela, parece-me que chegando ao Céu ou coisa assim...
- É verdade. Eu quis homenagear uma mulher, uma amiga, uma mulher extraordinária. Fiz um versinho assim: “Irene preta, Irene boa/Irene sempre de bom humor./Imagino Irene entrando no céu:
- Licença, meu branco!/E São Pedro bonachão: - Entra, Irene.Você não precisa pedir licença.
- Muito obrigado pela entrevista.
- De nada. Eu é que agradeço.
- Não, quem agradeço sou eu.
E ficaram lá, trocando gentilezas. Em verso e prosa. Literalmente.

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