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Luciane Buriasco

Luciane Buriasco - Por que saímos de casa?

Magistrada Luciane Buriasco Isquerdo - 24 de julho de 2017 - 13:30

Luciane Buriasco - Por que saímos de casa?

Está longe de nós o problema da imigração na Europa, embora até tenhamos recebido um bom número de sírios em São Paulo. Alguma coisa vimos na televisão, talvez a foto do menino morto na praia, saído de uma embarcação clandestina, dessas que prometem levar as pessoas para uma terra sem miséria ou guerra, numa jornada em que valha a pena deixar tudo para trás: pais, mães, tios, sobrinhos, primos, avós, o caminho de casa, a paisagem que se vê todo dia, os cheiros das comidas preferidas, a sensação de estar em casa. Como alguém pode correr o risco de morrer num barco pela chance de morar num lugar onde poderá ter um emprego, um salário, dinheiro para se vestir, comer, pagar a moradia, a &aacut e;gua, a luz? Já dá para imaginar a resposta na pergunta. Como viver num lugar que não oferece esse mínimo? Só se sai de casa se a casa não é boa. Isso dá muito o que se pensar.

O adolescente, por exemplo, precisa sair de casa para estudar quando a casa não oferece estudo. Precisa sair construir um lar porque de alguma forma aquele lar não é perfeito e ele sai em direção a outro, que aposta vá ser perfeito de acordo com seus critérios. Já li da Rosely Sayão, psicóloga e consultora em educação que escreve às terças-feiras na Folha de S. Paulo, que os pais não devem deixar os filhos terem tudo em casa, como, por exemplo, onde exercerem suas vidas sexuais ou acesso da casa independente para não serem notados, logo não cobrados, quando chegarem bêbados. É saudável alguma dificuldade para que queiram sair de casa e assim construam suas próprias casas. O alerta é interessante aos pais.

No início da carreira de Juíza de Infância e Juventude, certa vez, fui solicitada pelo Conselho Tutelar para que fosse pessoalmente tirar duas meninas de suas casas e levá-las para a instituição de acolhimento. Elas estavam sendo abusadas pelo pai. Inexperiente, lá fui eu. Pensei, como elas viriam conosco? Como deixariam suas casas e sairiam com estranhos? Para minha surpresa, bastou nossa chegada e o pai foi se dirigindo para os fundos da casa, sem se manifestar. A mãe veio nos receber, mas não questionou a medida, já sabendo o que ocorria em sua casa, demonstrando uma impotência sofrida com toda aquela situação. Mas o mais interessante foi que a criança mais velha, mais vezes abusada, correu logo de minha chegada e me deu as mãos, num gesto de que iria comigo, ant es mesmo que eu a convidasse. A menor, ao lhe dizermos para pegar suas coisas, foi bem rápida. Seus olhares eram de agradecimento. Nunca imaginei que seria tão fácil. Passaram algumas horas ainda comigo, numa festividade para crianças carentes, e foram com as Conselheiras Tutelares. Depois que o pai foi preso, elas voltaram a viver com a mãe. Mas o interessante me foi isso: elas queriam sair de casa.

Então os lares têm que ser bons o suficiente, com afeto, sem abuso sexual, violência, alcoolismo, para que todos queiram estar lá e se desenvolvam de forma saudável. Mas também é saudável instigar nos filhos que algo falta ali: um curso universitário que se queira fazer, um trabalho, culturas diferentes para conhecer, outros sabores de comida, neve, ou um lar com quem ele ou ela já escolheram construir.

Um país também deve oferecer o mínimo ao menos, mas também não pode ser perfeito demais para nós a ponto de nos isolarmos em nossa cultura, como muitas vezes aconteceu com os asiáticos e árabes. Uma curiosidade ao menos, uma admiração, uma sensação de que há algo bom a se aprender com o outro é o mínimo a nos mover em direção a outros lugares. Para alguns a dor em outros lugares os impulsiona a ir lá ajudar.

No filme Mil Vezes Boa Noite, Juliette Binoche, atriz que adoro, faz o papel de uma fotógrafa de guerra questionada pelo marido e pelas filhas por sua escolha profissional. Por que sair de sua casa perto da praia, seu marido e filhas lindos, onde é amada, querida, acolhida, para ir a lugares de miséria, guerra, terrorismo, etc., para tirar fotos para os noticiários? Ela lembra o marido que ele no início da relação dizia admirar sua paixão, e responde à filha que sente raiva, muita raiva, que quer que alguém numa cidade dessas sem problemas, ao tomar seu café lendo o jornal, veja uma foto marcante, que incomode, que lhe lembre que há problemas sérios em outro lugar.

No filme Lion, Uma Jornada Para Casa, o protagonista, um indiano que se perdeu de casa e foi adotado por um casal australiano, em determinado momento, ao ser questionado por que simplesmente não curtia a festa onde estava com a namorada branca, ambos estudantes de hotelaria, numa cidade paradisíaca em suas paisagens, Melbourne, responde que ouve os gritos de seu irmão e sua mãe lhe buscando há 25 anos, imagina a dor deles, e não consegue ficar bem ali, no que chama de “vagando” em suas “vidas privilegiadas”. Não quer voltar para casa, mas quer pedir perdão, dizer que está bem, reencontrar pessoas que ama.

Há quem sinta culpa por uma vida perfeita. Dependendo do grau disso, pode acabar destruindo essa perfeição (talvez este seja o caso do irmão dele, que reage à adoção se drogando) ou buscar um trabalho (advogados, juízes, médicos, enfermeiros, psicólogos...), talvez uma caridade, que o mantenha conectado com a dor de alguma forma.

Há quem não sinta essa culpa e simplesmente viva sua vida privilegiada. E há ainda os que vagam por esta vida privilegiada, como disse o personagem mencionado. Vagar, pairar, já parece nos remeter àquelas pessoas que desconectadas da dor, seja por não a conhecer, seja porque se anestesiam dela, como pode ser o caso do alcoolismo e da drogadição. Vivem uma vida meio sem sentido, sem a paixão da fotógrafa ou a jornada até encontrar a casa do indiano.

O que nos move a sair de casa? Dor? Falta?

O medo de sair de casa nas grandes cidades faz com que cada vez mais se construam condomínios de casas ou apartamentos onde não falte nada: academia, esporte, lazer, natureza, vida social, festas, salão de beleza. Mas não tem jeito, alguma coisa vai faltar, nem que seja o trabalho para pagar tudo aquilo, a escola, algum curso. E que bom que seja assim. Por mais que haja lugares lindos que num primeiro momento não dê vontade de sair, já pensou que horrível nunca mudar de paisagem, não conhecer pessoas novas, lugares novos, não enfrentar desafios?

Que seja, portanto, uma saudável falta o nosso motor, e não a dor, salvo se muito bem canalizada numa paixão profissional ou busca legítima, como nos filmes acima mencionados.

Luciane Buriasco Isquerdo é Juíza de Direito da 2.a. Vara Cível e Criminal de Cassilândia-MS, apresentadora dos programas de rádio Culturativa (http://www.radiopatriarca.com.br/culturaativa.asp) e Em Família, na Rádio Patriarca. Siga-a no Tweeter: @LucianeBuriasco

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