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Luciane Buriasco

Luciane Buriasco - O que faremos com os perdedores?

Magistrada Luciane Buriasco Isquerdo - 04 de dezembro de 2017 - 08:20

Luciane Buriasco - O que faremos com os perdedores?

A inteligência artificial, termo utilizado pela primeira vez na década de 50, é cada dia mais presente nas nossas vidas e mesmo um imperativo no trabalho, sob pena de nos tornarmos obsoletos, perder nosso emprego para uma máquina, enfim. Segundo a reportagem de capa da revista Harvard Business Review Brasil do mês passado, « Na próxima década, a inteligência artificial não substituirá os gestores, mas os gestores que adotarem a inteligência artificial substituirão os que não o fizerem ».

A inteligência artificial está longe de substituir a humana. Esta é a boa notícia. Não consegue contar bem uma história/estória, escrever o texto de um jornalista, nem o roteiro de um filme; também não compreende bem sarcasmo. Pode até avaliar o estado mental ou moral de uma pessoa, mas não consegue trabalhar com afinco para mudá-lo, persuadir, motivar, inspirar.

Mas faz previsões muito bem, reconhece voz, imagem, daí poder, entre muitas outras coisas, descobrir e eliminar conteúdos pornográficos, violentos ou impróprios. Resolve também problemas, faz sugestões personalizadas, revê contratos, diagnostica câncer de pele, dirige um carro, redige resumos, entre outras atividades em desenvolvimento. No caso da escrita, pode muito na pesquisa e assim, além dos corretores e sugestores de palavras, já que não é boa em contar uma história/estória, pode ajudar quem o faz. Em síntese, complementa atividades humanas, o que agrega valor ao trabalho.

Ao menos ao trabalho de quem cria, como cientistas, empreendedores, inovadores, e daí se vê a importância de uma educação mais estimuladora da criatividade e menos do silêncio, da formação de filas, cópia de matérias do quadro negro e decorebas para provas, úteis apenas aos professores preguiçosos, que facilmente corrigem provas de apenas uma resposta certa. Porque funções como de guarda noturno já vem sendo substituídas por drones. A execução passiva de atividades encontra riscos sérios de substituição pela máquina. Muita coisa já foi automatizada nas insdústrias. Dirigir um veículo, por exemplo, a inteligência artificial consegue. Ainda bem que os juízes adotaram uma postura mais ativa desde o século passado. E ainda se espera sensibilidade de um julgamento. Se tivéssemos nos restringido a ser mera boca da lei, já teríamos nos tornado um aplicativo de celular. Ou estaríamos prestes.

Segundo a reportagem, Pablo Picasso disse dos computadores que eram inúteis, e nisso estava errado. Mas observou algo fundamental: eles só dão respostas. Isso até hoje é verdadeiro. Computadores não fazem perguntas. Logo, toda profissão que só dá respostas corre riscos de ser substituída por máquina.

A mensagem do texto é algo como « não é a mágica que dizem alguns, mas já faz e fará parte de nossas vidas, especialmente de nosso trabalho». Embora fazendo algumas concessões e alertas, há algo implícito do gênero « ou você incorpora isso ou ficará para trás », o que é inadmissível num mundo competitivo. E o que acontecerá com quem ficar para trás, os chamados perdedores?

Para pensar sobre isso, vale a pena assistir ao filme Eu, Daniel Blake, do Diretor Ken Loach, vencedor do prêmio Palma de Ouro, em Cannes, em 2016, quando eu estava por lá, na Inglaterra, onde se passa a estória. O filme mostra um cidadão que foi objeto das discussões do Fórum Mundial de Davos, neste ano, ou seja, que preocupa as pessoas muito ricas e influentes que ganharam dinheiro com a globalização e viram ser eleito um Trump nos Estados Unidos, com muito medo de que o fenômeno se alastrasse, como acabou não acontecendo, no resto do mundo, especialmente na Europa.

É o cidadão classe média, branco, executor de tarefas manuais, de pouco estudo, analfabeto digital, nascido e criado nos Estados Unidos ou Europa, do tipo que passa a vida trabalhando na mesma empresa e toma sua cerveja com amigos no fim de semana e acompanha um time qualquer de algum esporte como lazer. É que não há espaço para ele mais. Essas tarefas mais simples são executadas por estrangeiros imigrantes ou pessoas lá longe em países como a China. Acabam nos centros de emprego, equivalentes aos nossos INSSs e CRAS, destinatários de serviços que não funcionam, burocráticos para que as pessoas desistam de seus direitos, em 0800 que não resolvem nada. É sobre isso o filme. E qualquer semelhança com serviços de operadoras de telefonia ou outros por aqui seria por certo mera coincidência. Quais os maiores litigantes no Brasil? O Estado, instituições financeiras e operadoras de serviços como telefonia e energia elétrica.

Voltando ao exterior, foi esse cidadão, afinal, que elegeu um Trump, tido como um louco pela imprensa de seu próprio país, e votou a favor da saída do Reino Unido da União Européia, que é um tiro no pé que ainda não sabem como executar. E fez mal esse cidadão. Mesmo para si. Um Trump não somente não os representa - é rico, investe no exterior, agente, portanto, da globalização, ele mesmo e a esposa, do tipo objeto de luxo, oriundos de famílias imigrantes, - como vem fazendo uma política liberal, de direita, tentando, ao menos, cortar tributos e serviços sociais. Tudo na direção contrária do que precisam pessoas como Daniel Blake. No caso do Brexit, não vai impedir a imigração e a economia do país deve piorar, o que sempre acaba pesando aos mais fracos.

O que o mundo fará com essas pessoas? O filme grita essa humanidade, essa vulnerabilidade que não tem a inteligência artificial e por isso não confiamos nela, como também aborda a reportagem mencionada. Como colocá-la a serviço do ser humano sem desumanizarmo-nos? A conclusão meio vazia de Davos, em relação à globalização, foi a de investimento numa educação diferenciada: tornar criativo um executor. Ao menos os dos países ricos. Mas na lógica de competição sempre haverão perdedores.

Assim como os dados disponíveis se avolumam e os computadores se tornam mais e mais rápidos, fazendo explodir a inteligência artificial, a criatividade e a arte precisam explodir por toda a parte. Esta para desenvolver a sensibilidade, o sentido do humano, que o filme grita. Um certo dever de fraternidade sem fronteiras estimulado. E estímulo é um dos limites da máquina. Só nós, humanos, portanto também vulneráveis, capazes de se identificar de alguma forma com Daniel Blake ou sua amiga Katie, é que podemos encontrar meios de nos cuidar reciprocamente de forma humana e respeitosa. Esta é uma agenda muito séria para se restringir às discussões de Davos, que não deixam de ser a raposa cuidando do galinheiro. Precisa estar em todo lugar nas nossas vidas.

Ps: Aos leitores assíduos desta coluna, comunico que ela estará de férias até seu aniversário de um ano (13/01), retornando na segunda-feira seguinte, em 15/01/2018, salvo algum assunto muito irresistível. Bom fim de ano a todos!

Luciane Buriasco Isquerdo é Juíza de Direito da 2.a. Vara Cível e Criminal de Cassilândia-MS, apresentadora dos programas de rádio Culturativa (http://www.radiopatriarca.com.br/culturaativa.asp) e Em Família, na Rádio Patriarca. Siga-a no Tweeter: @LucianeBuriasco

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