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Luciane Buriasco

Luciane Buriasco: House of Cards, versão brasileira

Magistrada Luciane Buriasco Isquerdo - 22 de maio de 2017 - 10:20

Luciane Buriasco: House of Cards, versão brasileira

Assistir ao seriado americano House of Cards, da Netflix, a alguns enoja, a outros instiga, mas de maneira geral não surpreende. Sabemos como são as coisas no Poder. A relação com a imprensa, por exemplo. Quando se quer derrubar alguém, procura-se algo errado em sua vida, ainda que seja um mero deslize que se possa mostrar de forma modificada e a informação é vazada para a mídia, sedenta de matérias bombásticas, que geram acessos aos sites, assinaturas, ascensão na carreira jornalística.

A relação com grandes empresas privadas, outro exemplo. Propinas e financiamento de campanhas eleitorais são trocadas por contratos públicos ou empréstimos de dinheiro público bilhonários, legislação favorável, aprovação de fusões, não fiscalização do serviço por agências reguladoras, enfim.

O que choca ao ver o seriado é a transparência disso. Parece que sabemos, mas nunca sabemos muito bem e podemos fingir que não sabemos e olhar as coisas de outro modo. O seriado nos força a ver as coisas como são.

Na semana passada, com os acontecimentos no cenário político do nosso país, o seriado tweetou "Tá difícil competir", em português mesmo, para os brasileiros. Não era para menos. Nosso Presidente da República, Michel Temer, que era Vice-Presidente, e, portanto, assumiu o cargo porque a Presidente eleita sofreu 'impeachment', teve contra si admitido processo, na nossa Suprema Corte, por corrupção passiva, formação de organização criminosa e obstrução de justiça, com parte das provas do processo consistentes em áudios gravados de conversa sua com grandes empresários acerca de propina para compra do silêncio do ex-Presidente da Câmara dos Deputados, hoje preso, obstruindo assim processo judicial. À propósito, ao contrário do ocorrido com o Juiz Sérgio Moro, quando Lula e Dilma foram as vítimas, ninguém cogitou da ilegalidade da publicação dos áudios.

Esses empresários, inclusive, que fizeram a delação premiada acabando com o governo atual, ao que se sabe se tornaram grandes com empréstimos de dinheiro público obtidos no governo Lula/Dilma, se é que são os reais donos da empresa.

Um grupo faz o outro cair; aliados de antes se desaliam, num jogo de cartas dos mais difíceis de ser jogados. A cada derrubada, alguém tenta crescer e tomar o Poder. É daí a campanha por mudar as regras do jogo no meio dele e convocar eleições diretas em vez de indiretas, como prevê a Constituição (o argumento é a democracia, escolha do povo, mas para ir contra o Estado de Direito, que é obedecer a lei, quando logo mais veremos que a democracia só é apropriada para garantir o Estado de Direito). O expediente, a PEC - Proposta de Emenda Constitucional n. 227, que será votada pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania esta semana, dia 23, favorece o ex-Presidente Lula, favorito atual das pesquisas e ainda não preso, na crença (dele, provavelmente) que ele sim conseguiria obstruir a Justiça e acabar com a Lava Jato e suas adjacentes.

Acabar com a Justiça Eleitoral está sendo mais fácil. Uma portaria publicada na semana passada - sim, a mesma semana passada, talvez para passar desapercebida - implica no fechamento de boa parte das zonas eleitorais no país em até 60 dias. A quem interessa, afinal, essa Justiça Eleitoral que ao longo dos anos foi proibindo bonés, camisetas, showmício, levando a campanhas mais baratas, fiscalizadas, sob o comando isento de juízes concursados, que têm o respeito da comunidade, de forma que uma decisão de cassação implica em morte política ainda que possa ser revertida posteriormente?

Estamos sendo uma concorrência dura mesmo ao seriado americano.

Melhor recordar da Rainha Anne e sonhar com o governo da lei. Como já tive oportunidade de contar (1), sobre o que ouvi de Lord Laws, Juiz da Corte de Apelação no Reino Unido, em palestra aos magistrados brasileiros no ano passado, na época da Rainha Anne, que viveu de 1665 a 1714, um embaixador russo foi levado à prisão por uma dívida de cinquenta libras. O Czar à época, Pedro, O Grande, pediu à Rainha Anne que condenasse à morte os executores de tal ato. Ela lhe respondeu, contudo, que muito embora simpatizasse com sua preocupação, desejava que ele entendesse que ela não tinha poderes para impor nenhum tipo de penalidade para quem tivesse agido de acordo com a lei. Pedro, O Grande, ficou assombrado com a ideia de que a lei estivesse acima da Rainha. Segundo o palestrante, esta estória é contada por William Blackstone no século XVIII, em seu Comentários sobre as Leis da Inglaterra.

Arthur Kaufmann, em seu Filosofía del Derecho, cita um notável pensamento de Gustav Radbruch, que segundo ele eminentes políticos gostam de citar: "A democracia é com certeza um bem louvável, mas o Estado de Direito é como o pão diário, como a água para beber e o ar para respirar, e o melhor da democracia é precisamente isto, que ela só é apropriada para garantir o Estado de Direito" (2).

O Estado de Direito é justamente esta noção de que o poder esteja sob o governo da lei (rule of law) que lhe precede. Com a democracia, tem-se a lei da maioria, que tem como limite não eliminar o próprio princípio da maioria e com ela a democracia, nem abolir os direitos humanos e fundamentais, pois estes valem pré-estatalmente, e o Estado não os outorga, senão os protege (3) - uma forma de se proteger contra leis más, como no caso do nazismo.

Claro que o Estado de Direito não é algo neutro, como alerta Anne-Cécile Robert, em artigo publicado no Le Monde Diplomatic deste mês. Seja porque o liberalismo foi se tornando lei, ao se proibir o déficit público, por exemplo, seja porque em questões que desagradariam eleitores, como a eutanásia, deixa-se aos juízes decidirem, para ficarem com a culpa.

Talvez a Rainha Anne na verdade não quisesse atender ao Czar. House of Cards, afinal de contas, é uma adaptação de uma série televisiva britânica com mesmo nome, por sua vez baseada no romance também homônimo de Michael Dobbs, britânico, político, membro do Partido Conservador. Os meandros do poder são bem como lá mostrados; é verdade. Mas não nos iludamos: ninguém é infalível. Frank Underwood ainda vai se dar mal irreversivelmente. Todos cairão enquanto a lógica for um derrubar o outro a qualquer custo para ocupar um lugar disputado, o topo do poder.

Seja como for, o governo da lei da maioria, logo, o Estado de Direito e a democracia, bem ou mal manejados, ainda são o que melhor a humanidade inventou até agora em ciência política. Vamos nos aprimorando. As leis, afinal, andam boas. Os homens é que ainda têm muito a melhorar.

(1) http://www.amb.com.br/congressouk/doc/LucianeBuriascoIsquerdo.pdf

(2) RADBRUCH, Gustav. Relativismo y Derecho, trad. Luis Villar Borda, Bogotá, Edit. Temis, 1992, p. 42. In: KAUFMANN, Arthur. Filosofía Del Derecho, trad. Luis Villar Borda e Ana María Montoya, Bogotá, Edit. Universidad Externado de Colombia, 2006, p. 516 (tradução nossa).

(3) KAUFMANN, Arthur. Filosofía Del Derecho, trad. Luis Villar Borda e Ana María Montoya, Bogotá, Edit. Universidad Externado de Colombia, 2006, p. 517.

Luciane Buriasco Isquerdo é Juíza de Direito em Cassilândia, Mato Grosso do Sul, membro do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, IBCCRIM – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e bacharel em Direito pela UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina.

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