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Luciane Buriasco

Luciane Buriasco - Direito Simbólico e Violência Doméstica

Magistrada Luciane Buriasco Isquerdo - 28 de agosto de 2017 - 07:40

Luciane Buriasco - Direito Simbólico e Violência Doméstica

António Manuel Hespana, no livro Cultura Jurídica Europeia: Síntese de Um Milénio, ao tratar do Direito na Pós-modernidade, período em que vivemos atualmente, destaca um tópico intitulado “O direito como universo simbólico”. Nele aponta que muitas normas não têm aplicabilidade direta, ou seja, pelo simples fato de serem normas. É o caso das que proíbem o aborto, a prostituição, entre outras. Mas desempenham um papel simbólico, de afirmação de valores e de modelação do imaginário social. Isto às vezes seria consciente e outras vezes não, produzindo efeitos contrários, como o caso das quotas para mulheres, negros ou de deficientes nos empregos, que contribuiriam para disseminar a idei a da inferioridade de tais grupos.

Na verdade, segundo o autor, muito embora o direito não dê conta de regular o cotidiano, que é o que se reconhece na pós-modernidade, regula-o indiretamente, “ao constituir uma fonte das imagens do senso comum que orientam os nossos comportamentos [...] É a essa capacidade de modelar, subliminarmente, os nossos imaginários – ou seja, de contribuir para a nossa imagem da ‘mulher’, da ‘sociedade civil’, do ‘meu’ e do ‘teu’, do ‘sujeito’, etc. -, de ‘inculcar’, a níveis por vezes muito profundos, esquemas de construção da realidade, que é descrita como a função constitutiva do direito”[1].

Hespana faz menção ao pensamento de Niklas Luhmann, que denomina de construtivismo autoreferencial, asseverando que bem se adéqua aos pontos de vista da pós-modernidade, especialmente no tocante à autonomia do direito em relação a outras dimensões da prática social, considerando-se a capacidade autonormadora do cotidiano, ou melhor, em como o direito atua sobre o cotidiano das pessoas[2]. Luhmann defi ne os sistemas sociais como sendo autopoiéticos, no sentido de capazes de se definirem ou, nas palavras do próprio Luhmann, de se selecionarem e a seus limites, decidindo com o auxílio dos presentes “quem e o que tem de ser considerado como presente[3]”.

Para ficar mais fácil, pensem nas pessoas num restaurante ou ao dirigirem um carro, exemplos dados por Luhmann. E pensem na lei e na sua aplicabilidade no cotidiano, sendo tanto o direito um sistema, como as pessoas em seu cotidiano outro. Imaginem esses sistemas praticamente fechados, interferindo-se um no outro apenas quando conseguirem produzir irritações, compressões, no outro. E vejam o exemplo dado por Hespana ao explicar isso: “Daí que, se a política do direito quiser provocar modificações, digamos, no sistema das relações entre os gêneros, tem que ter em conta a gramática interna deste último sistema, procurando produzir-lhe as ‘irritações’ que disparem um processo de reestruturaç ão que tenha as consequências desejadas”[4].

Embora eu seja feminista, a Lei Maria da Penha sempre me incomodou. É uma lei que chamei de panfletária desde o início. Com isso queria ressaltar esse seu caráter mais de campanha contra a violência doméstica que de lei propriamente dita, no sentido moderno do termo, prevendo uma conduta e uma consequência legal para ela. Isto porque a Lei Maria da Penha traz uma série de definições do que seja, por exemplo, violência psicológica ou financeira, sem consequências, como previsão da conduta como crime, aplicação de multa, enfim. Vejo hoje que uma medida protetiva, do tipo não se aproximar da vítima, poderia ser aplicada nestes casos para os quais não há uma pena, e inclusão de vítima e agressor em algum programa, onde ho uver. Mas a ideia era de um panfleto mesmo, que explicasse à vítima e ao agressor que aquela conduta era considerada uma violência, logo, que não deveria ser praticada. E um panfleto com a força simbólica de uma lei.

Penso que o que na verdade me incomodava era não só essa realidade da lei simbólica, que sempre me pareceu algo fraco, mas a mensagem subliminar, inconsciente, de que a mulher seja inferior ao homem, tanto que precisa de proteção “extra”, produzindo o efeito contrário apontado por Hespana, que mencionei de início.

Mas a teoria de Luhmann, tal qual explicada por Hespana, mostra uma saída: se a lei em si não faz parar a violência do cotidiano, ainda que tenha inclusive nessas definições de violência psicológica, financeira, etc. trazido a gramática cotidiana de relações de gênero abusivas para a lei, pode, por outro lado, desencadear, especialmente nas campanhas contra a violência doméstica utilizando-se dessa lei, uma irritação nas relações de gênero, com os casais se dando conta de que muito de seu cotidiano não é normal, tanto que considerado uma violência pela lei. Este despertar para o problema, ele sim, pode provocar as mudanças desejadas pela lei no cotidiano.

Melhor ainda que campanhas, seria muito importante que o meio artístico tratasse do tema com competência. Nada de novelas onde o povo na rua fica com raiva do agressor a ponto de falar coisas para o ator nas ruas, como já aconteceu. A ideia é acabar com a violência, não com o violento. Sei que possa ter lá seu papel esse tipo de trabalho. Mas o interessante seria mostrar relações de gênero violentadas pelo machismo do cotidiano, aquele menos explícito, que nem nos damos conta. E mostrar em confronto relações de gênero sem machismo, para que se possa ver como seria. Ver que há luz no fim do túnel, que tem como ser diferente. Vale livros, peças de teatro, novela de televisão, filmes, músicas. Isso, se bem feito, irritaria o sistema suficien temente a ponto de gerar mudanças nas relações de gênero, aplicando-se a teoria de Luhmann.

Uma dica que vem do pensamento científico e que foi objeto de minha monografia na graduação[5]: nada de domínio sobre algo aparentemente incontrolável, do tipo domínio sobre a natureza nos moldes de Francis Bacon. Algo mais para Platão, que relaciona explicitamente amor e conhecimento e aponta que devam ter como fim aumentar as possibilidades de diálogo. Relações, portanto, onde ninguém passe a ser totalmente conhecido pelo outro, submetido, dominado; onde cada um tenha seu espaço, sua vida de relação. E sigam meio que misteriosos um para o outro, até para se manter aceso o desejo, que é do desconhecido. Pessoas que se enriqueçam convivendo umas com as outras; uma mostrando à outra, com sua própria maneira de ser, como ver aspectos da vida com outros olhos; os dois se transformando. Não um certo e outro errado, mas certos em algum ponto, errados em outros, sem que nada predomine, apenas ambos se tornem melhores.

Seria arte e lei juntas transformando o cotidiano. Afinal, como apontei certa vez, segundo o Professor de Filosofia do Direito Arthur Kaufmann, nós obedecemos quando a lei consegue coincidir com nossa moral, nossa lei interna, nossa consciência[6]. Para obedecermos a uma norma, pois, ela tem que guardar relação com nossas normas morais. É preciso, portanto, com a lei e com a arte, convencer vítimas e agressores, inclusive potenciais, d a inaceitabilidade de seu comportamento, agora na linha das teorias de Jakobs no Direito Penal, que deixo para tratar em outra ocasião.

Fato é que na era do direito simbólico, o combate é mais virtual, implícito, inconsciente, subliminar. De fato, não há como seriamente sustentar que o direito esteja mais fraco, ainda que em crise de legitimidade o Estado e cada vez menos eficaz no caso concreto, suave, cheio de penas alternativas, benefícios processuais. Basta ver ou ler os noticiários. O direito é muito presente no cotidiano. Está nos nossos conceitos. Há algo mais forte que isso?

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[1]HESPANA, António Manuel. Cultura Jurídica Europeia: síntese de um milénio. Almedina: Coimbra, 2015. Pág. 569.
[2]Idem, pág. 574-575.
[3]LUHMANN, Niklas. Sistema Social: esboço de uma teoria geral. Tradução de Antonio C. Luz Costa, Roberto Dutra Torres Junior e Marco Antonio dos Santos Casanova. Vozes: Petrópolis-RJ, 2016. Pág. 470-471.
[4]Ibidem, pág. 575.
[5] Oliveira, Luciane Buriasco. Reflexões sobre Gênero e Ciência Jurídica. Arquivos da UFSC: Florianópolis, 1999.
[6] KAUFMANN, Arthur. Filosofia del Derecho. Universidad Externado de Colombia: Bogotá, 1999. Trad. Luis Villar Borda e Ana María Montoya. Pág. 361.

Luciane Buriasco Isquerdo é Juíza de Direito da 2.a. Vara Cível e Criminal de Cassilândia-MS, apresentadora dos programas de rádio Culturativa (http://www.radiopatriarca.com.br/culturaativa.asp) e Em Família, na Rádio Patriarca. Siga-a no Tweeter: @LucianeBuriasco

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